No ensaio "Psicologia do Dinheiro",
George Simmel apresenta a semelhança psicológica entre a noção de Deus e a
representação do dinheiro na sociedade moderna: "O tertium comparationis é o sentimento de paz e de segurança, que a
posse do dinheiro justamente garante, em contraste com todas as outras formas
de posse, e que, de um ponto de vista psicológico, corresponde àquilo que o homem
deve encontra no seu Deus". Para Simmel, o dinheiro, tal como Deus na
forma da fé, é a "máxima abstração" a que se alçou a razão prática na
forma do concreto. Interessante perceber a atenção que Simmel dá ao dinheiro no
processo de modernização da nossa cultura. Impossível entender o mundo moderno
sem considerar nele o papel do dinheiro (seja de papel ou outros formatos). A
literatura também faz do dinheiro um de seus temas mais recorrentes.
O crítico Victor da Rosa,
no texto em que descreve o encontro que teve com Cesar Aira ("Um encontro com César Aira"), relembra o momento
em que falou ao escritor argentino que achava divertida e também um pouco
perversa a maneira como o dinheiro aparece em seus livros. Ao comentário, Aira observou que, de fato, o dinheiro é um dos grandes temas da literatura. Os
outros seriam o amor, o dinheiro e o nazismo. Na literatura argentina, basta lembrar de "Plata Quemada", de Ricardo Piglia.
Um dos livros de Aira no qual
aparece com frequência o dinheiro é "Haikus". Mais do que aparecer com
frequência, nele o dinheiro é o eixo sobre o qual se move toda a narrativa. "Haikus" é
uma brevíssima novela que se aproxima da forma poética japonesa do haikai não
apenas pelo tamanho, mas também pelo fato de nela o "enredo" mover-se pela
lógica das quatro estações. O livro traduzido pelo Carlito Azevedo foi lançado
no Brasil pela editora Pipa Livros, em uma pequena tiragem numerada. A que
tenho em mãos é de número 120.
Trata-se de um conjunto de cartas
em que o narrador, desesperadamente, tenta cobrar uma dívida de alguém. Não
sabemos quem é o narrador, muito menos o devedor. Nada acontece no livro, a não ser a tentativa desesperada do pagamento da dívida ao lado de uma impressão apocalíptica de fim de mundo, aliada ao fim da História, já que falar do tempo é uma obsessão do narrador; e quando um dos nossos únicos assuntos é o clima, talvez já não faça tanto sentido o "sentido" de História. À medida que o livro corre e
a dívida não é saldada, o narrador tem surtos de ira. Assim como ele,
ficamos na espera de algo. O dinheiro no livro
de Aira é o Godot que nunca vem. Quem leu "Haikus", como eu, deve
ter lembrado de Beckett também. Como o Godot é uma espécie de Deus, na peça,
não nos custa imaginar, no livro, o dinheiro do narrador como sendo uma espécie de Deus. Como vimos,
Simmel soube, com boa percepção, detectar uma afinidade entre as duas coisas.
Como Vladimir e Estragon, o
narrador de Aira repete repete repete, no entanto, estamos agora diante de um
personagem mais impaciente. O narrador de "Haikus" repete a cobrança, gastando a
palavra e a paciência: "Será possível que ainda tenha que repetir,
grandíssimo escroto, filho de mil putas? Com você, repetir é a única forma de
falar. Vamos ver se me entende de uma vez: Pague o dinheiro que me deve. Pague
e me calo para sempre". Naturalmente, o que alimenta a escrita aqui é a
dívida. Sem ela, não haveria o livro. Com a sua quitação, a prosa acaba.
Ao contrário do personagem que
deseja recuperar o seu dinheiro para comprar um par de sapatos (a quantia,
nota-se, é irrisória. Depois, com a desvalorização da moeda, ele decide por
apenas um ou dois pares de meia), Aira gasta a escrita de forma simbólica. Quem
acompanha a trajetória do escritor argentino, percebe que a noção de despesa -
tal como pensou Bataille a partir de Marcel Mauss - parece fazer parte de sua
estratégia literária. Aliás, Bataille, no texto em que discute o "Ensaio sobre a
Dádiva", de Marcel Mauss, observa que a poesia (poderíamos estender aqui para a
literatura) é uma espécie de despesa simbólica que, por sua vez, faz parte das
formas improdutivas no universo da produção. Bataille lembra que a poesia, que
se aplica às formas menos degradadas, menos intelectualizadas da expressão de
um estado de perda, pode ser considerada "como sinônimo de despesa:
significa com efeito, de modo mais preciso, criação por meio de perda". Como
uma espécie de brincadeira, gosto de pensar que, como em um ritual de puro
gasto - potlatch porteño -, Aira produz uma literatura que poderíamos pensar a
partir do princípio da "economia do dom". Com quase 80 livros
publicados - a maioria deles em editoras pequenas - Aira recupera a
noção de despesa de Bataille, fazendo do excesso e do gasto um princípio vital
e um modo de reestabelecer a ligação da literatura com a potência.
Carlito Azevedo, no "biograma"
que escreve para Aira, nas últimas páginas de "Haikus", observa que nem chega a
surpreender que quando anunciaram ao escritor a tradução, o autor manifestou o
desejo de não receber nada pelo livro. O "livrinho"seria "un
regalo para sus amigos brasileños". Como não ver aqui a imagem de um potlatch?
obs: Gasto! gasto! gasto tudo aqui. Talvez a crítica, assim
como a literatura, possa funcionar a partir do
princípio da economia do dom. Estaríamos diante daquilo que Ana Cristina Chiara chamou de Leitura Malvada: "Ler para o gasto de si mesmo e do outro. Lê-se, então, para que se dê a comunicação forte, não submetida à ordem da economia produtiva. Leitura em que a experiência estética compartilha com a atividade erótica, com o jogo, mas também com o submundo do lixo, do resto, dos refugos sociais, seu caráter de resistência à utilidade prática. Não há derivativos possíveis desse gesto. Não há aplicabilidade direta, fórmula, receita".
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