sexta-feira, 4 de abril de 2014

Cruz e Sousa e outros simbolistas, bailarinos trágicos


Que experiência é essa que toma o corpo da poesia, ou que ganha corpo na poesia trágica de Cruz e Sousa? Penso aqui no poeta de Desterro como alguém que tirou o trágico para dançar. Nesse sentido, Cruz é um bailarino trágico, para usar uma expressão de Georges Didi-Huberman que, no livro dedicado a Israel Galván, El bailaor de soledades, caracteriza Galván como um bailaor do nascimento da tragédia:

Bailaor trágico, porque no baila sino hasta renunciar a sí mismo, porque está dislocado como individuo; trágico porque se ve metamorfoseado por su penetración en una naturaleza extraña, y entonces las fronteras de la individuación saltan por los aires. Trágico porque crea, no sólo una representación, sino una musicalidad, y esa musicalidad siempre deja estallar el conflito, la disjunción, el eterno antagonismo, padre de todas las cosas. Esto es, musicalmente hablando, la disonancia (2008, p.91).   

Didi-Huberman conclui seu estudo lembrando que Eisenstein explica que Dionísio representa a imagem da montagem encarnada, "pues danza continuamente con la embriaguez de la vida y se disloca bajo el cuchillo de los Titanes con na experiencia de la muerte" (2008, p. 178). Segundo a mitologia, os Titãs teriam tomado seu nome do gesso ou cal branca  (titanos) que os cobriam como estátuas de deuses. Uma vez que despedaçaram a sua vítima, assando-a e servindo-a em um ritual de sacrifício, Zeus os reduziu a cinzas, brancas, pó de onde nasceria o gênero humano. Cal branca é também o pó com o qual Cruz e Sousa parece se maquiar em seu sacrifício de negro-branco na belle époque que nos legou um dos capítulos mais curiosos de nossa vida literária e social.
Se por um lado Eisenstein concebe o nascimento da montagem como sinônimo de Dionísio, a máquina de produzir imagens, ou seja, o cinema, em Cruz e Sousa, e em outros simbolistas, seria o dispositivo propulsor de gestos dionisíacos. Dionísio, "deus da ebriedade bem-aventurada" - para usar uma expressão do ensaio não assinado que abre uma das edições da revista Acephale (2006) -, seria, assim, uma espécie de mentor do homem trágico - porque não dizer Cruz e Sousa - que prova o sofrimento mais áspero, sendo bastante forte, pleno e divinizador, ao contrário do cristão, para quem o sofrimento é o de um ser santificado. Daí apostar numa oposição entre o sofrimento de sentido cristão e o de sentido trágico. Para esse ser trágico, o sofrimento não é sintoma de uma maldição sobre a vida, mas de uma conjuração, onde se renasce eternamente e onde se volverá eternamente da destruição, como num lance de cinema, ou seja, de um corte e de uma repetição, de uma decomposição e  de uma composição sucessivas, em outras palavras, de uma montagem de heterogeneidades (DIDI-HUBERMAN, 2008).      
Didi-Huberman escreve que o deslocamento nietzscheano resulta exemplar porque sabe que é capaz de exigir o futuro da arte só na medida em que convoca uma nova memória - uma nova filologia, uma nova arqueologia - que se aglomere alegremente em torno da questão trágica (2008, p. 17). O bailaor, nos diz ainda, faz a beleza mais visível que a ferida, enquanto o toureiro faz a ferida mais visível que a beleza (2008, 41). No caso de Cruz e Sousa, carrasco e vítima, em sua própria poesia, o trágico estaria situado no hiato que jaz entre as duas figuras. Cruz faz beleza com a ferida e vice-versa. É touro e toureiro, um poeta assinalado. Em uma das cenas do filme Cruz e Sousa, o poeta de Desterro, de Sylvio Back (1995), a personagem do poeta declama o soneto "Escravocratas" (1993), ilustrado por cenas onde um touro é abatido (lembrando um ritual de sacrifício) depois da projeção de cenas (verídicas) de uma farra do boi, típicas no Estado de Santa Catarina: "Eu quero em rude verso altivo adamastórico / vermelho, colossal, d'estrépito, gongórico / castrar-vos como um touro - ouvindo-vos urrar". Aqui, o poeta além de tomar o lugar o algoz, alude ao barroco, cujas dobras seriam capazes de castrar o escravocrata. A politização que se apresenta aqui não está desvinculada da trágica linguagem barroca. O que se destaca é justamente o fato do poeta delegar à linguagem - verso altivo adamastórico, vermelho, colossal, d'estrépito, gongórico - o seu poder político.
Se a palavra "trágico", em Cruz e Sousa não deve ser entendida no sentido tradicional é porque, assim como os gestos trágicos de Israel Galván, são gestos de quando o trágico ainda não existe como gênero. São gestos antes de todo gênero (2008, p.92). Um trágico para aquém ou além da forma. Seria possível pensar o trágico em Cruz apenas como gênero? O trágico como ruína ou sobrevivência, gesto e ritmo, um descompasso do verso para além da serenidade apolínea do verso alexandrino, por exemplo. Lembremos que a dança de Israel Galván é considerada trágica justamente porque cria não apenas uma representação, mas uma musicalidade e essa musicalidade sempre deixa emergir o conflito, ou seja, a dissonância.
A relação entre ritmo e dissonância parece na poesia simbolista iluminar a experiência de aproximação entre o trágico e a linguagem. O crítico Batista Pereira, por exemplo, em um texto de 1902, ao analisar os poemas de Jacques D'Avray (Freitas Valle),  define-os como tragi-poemas, ou seja:

(...) pequenas peças de verso nas quais um caso humano, que impressionou violentamente o autor, é fixado com a nitidez, com a precisão, com a verdade de uma água-forte de Dürer. (...) Combinai estes dois princípios de D'Avray: o princípio do teatro e o princípio do ritmo e tereis a explicação artística dos tragi-poemas. A valorização do ritmo é oriunda da ideia de que é por meio dele que se dá a expressão dos sentimentos imprecisos, das coisas obscuras, que não se podem traduzir, mas apenas sugerir (PEREIRA in CAROLLO, 1980, p. 283).

Muitas vezes é na própria poesia que se dá essa reflexão sobre o trágico, uma reflexão presente também na estrutura (corpo) do próprio poema, revelando uma consciência concreta bastante sofisticada, ao chamar a atenção para um "reaprendizado da leitura como tomada de consciência dos mecanismos significantes" (CAROLLO, 1996, p. XVI). É o caso da estrofe inicial do poema "Frontispício" do simbolista Péthion de Vilar:

Por que não pode a Rima, em duplo diapasão,
como um lábio gemer e urrar como um trovão?...
Sintetizar a dor num grito lancinante,
ter do raio o bramir - torva cacofonia -
e exclamar pavorosa a música sombria,
que eu quero que ela cante?
(VILAR in CAROLLO, 1981, p. 116).

Em outro exemplo, o simbolista Neto Machado encerra o curioso poema "Ritmopéia", de título bastante sugestivo, apontando para o suicídio do metro, aludindo às personagens trágicas das Heroides, de Ovídio, Leandro e Hero, precursores ao lado de Píramo e Tisbe, das personagens de Romeu e Julieta, equiparando a tragédia ao enjambement:

Na imemore canção que se alteia e se abranda
o metro avança a passo isocrono de prece,
como um rio caudal que a vaga clara expanda.  

e despenha-se enfim do mais remoto ponto
sobre a rocha imortal do mármore da ideia
lembrando a visão de Hero e as águas de Helesponto.

em sobrenatural e helena ritmopéia
(NETO MACHADO in CAROLLO, 1981, p. 118).

Luiz Murat percebendo a ascensão do enjambement no Brasil, escreve em 1885 - ou seja, dez anos antes de Mallarmé publicar seu Crise de Verso - que esse procedimento poético facilita a manifestação do pensamento, "excarcera" o cérebro do processo obsoleto e inconveniente de uma "mecânica refratária à plena liberdade da rima, da ideia e da inspiração" (in CAROLLO, 1980, p. 30). Para ele as regras fixas da métrica destruíam os movimentos dos versos, em outras palavras, sua dança trágica, o mergulho no abismo de Helesponto, que é o mergulho de um verso em outro, em outras palavras, a perda de compasso. Diz ainda que: "o enjambement tem a suprema vantagem de variar o ritmo e sons musicais e acompanhar o pensamento sem coagi-lo, a ideia sem localizá-la, distribuindo profusamente por toda a paisagem uma melodia de cores (...) (idem, p. 30). Como não lembrar aqui da frase de Didi-Huberman, bailando las soledades de Galván: "Un gesto poético es un gesto que abre una noche, que desmesura las cosas del dia. El poeta, escribe Bergamin, no es solo poeta quando canta, sino cuando pierde el compás. Cuando el poeta pierde el compás ya no puede medir sus versos" (2008, p. 71). Perder o compasso, ou seja, experimentar a impossibilidade de medir seus versos, e produzir a dissonância são elementos trágicos que, de fato, encontramos, nos simbolistas.
Talvez pudéssemos concordar em partes - friso, apenas em partes - com José Veríssimo, se não com o artigo preconceituoso que escreve sobre Cruz e Sousa, pelo menos com parte da frase na qual considera que os versos do poeta têm a "monotonia barulhenta do tam-tam africano" (1977, p.229). Só não consigo concordar que o barulho do tam-tam africano e da poesia de Cruz sejam monótonos. Pelo contrário, quem já visitou um terreiro de umbanda ou candomblé, onde ressoam sobrevivências sonoras da senzala, percebeu que o canto está para o êxtase e para o inebriamento. No candomblé, ainda podemos encontrar rituais de sacrifício. Aliás, Sylvio Back, em um artigo que celebra o sesquicentenário do nascimento do poeta, vê em Cruz e Sousa a pomba-gira que baixou no terreiro da poesia brasileira, "desossando-a de toda e qualquer possibilidade de duplo" (2011, p.1). Como não ver nesse êxtase as marcas de um sagrado selvagem que Bastide (2006) percebeu invadir o Brasil - e por que não dizer, a poesia simbolista - no final do século XIX? As torções sonoras, via sinestesia, aliteração, assonâncias, e outros pecados poéticos - feito a dança de serpente de Salomé - são fundamentais em Cruz, e capazes de inserir um suplemento no lirismo simbolista, acrescentando um "de", no lyrio, logo de-lyrio. Por isso, penso que não seria fortuito imaginarmos a polifonia e o enjambement como dois dos elementos que acentuam o trabalho com a linguagem no poema simbolista, fazendo ecoar reminiscências trágicas. A polifonia a que me refiro não é a bakhtiniana, mas aquela propriamente sonora que, ao lado do cromatismo, foi incorporada ao teatro primeiramente pelo coro na tragédia grega e depois por Wagner.
Nada mais estranho à monotonia que a polifonia ou mesmo o enjambement que faz com que o verso perca a sua vocação para o natural, para o sentencioso e para o aforístico, produzindo aquela crise de verso, esmiuçada por Mallarmé. Uma crise que talvez seja reflexo de outra, uma crise de nervos, com ar trágico de um canto estranho não mais entendido pelo cantor. Aliás, a própria pesquisadora assimila a crise de verso à crise de nervos, ou seja, à nevrose do decadentismo. Mario da Gama Kury, por exemplo, chamou a atenção para a importância do enjambement na tragédia grega. Em uma das passagens de sua tradução de Édipo, termina o verso com as palavras "...sua mulher e mãe" e desloca as palavras "dos filhos dele" para o início do verso seguinte, procurando conservar o efeito do original onde a sequência das palavras, interrompida por um enjambement, "dá lugar a uma ambiguidade momentânea, condizente com as verdadeiras relações entre Jocasta e Édipo, ainda desconhecidas a essa altura" (in SÓFOCLES, 1990, p.100).
Vera Lins já apontava que os simbolistas são da linhagem trágica, que, como Pascal e Kant acreditavam que a razão é insuficiente , não pode conhecer, imitar ou usar como ideal a Natureza, a substância, o ser em si mesmo (1998, p.4). Por terem a consciência trágica de que o mundo não é o que parece, preocuparam-se com a verdade, fazendo da linguagem um problema central. Tal conhecimento trágico, segundo Nietzsche, encontra socorro e proteção na arte contra o locus horrendus da vida. Nessa perspectiva, a poesia não é apaziguadora, mas permite ao poeta a possibilidade de imaginar outras formas de vida e, consequentemente, de comunidade. Daí a aproximação com o expressionismo, cuja postura está pautada pela equação arte = pensamento + linguagem, ou ainda desejo + linguagem; e não pela equação impressionista, pautada pela arte = natureza + linguagem.
 Nesse contexto, a torre de marfim dos simbolistas foi um gesto político por excelência. Tal argumento não estaria distante do enfoque dado por María Negroni (1999) ao castelo gótico. Ao se referir aos castelos sonhados por William Beckford - que aqui poderiam ser associados às torres de marfim do poeta simbolista -, María Negroni sustenta que se equivoca quem imputa a essa estética um afã reacionário: "Deles deriva uma nova mirada, um pathos que levanta o inatual como estandarte e faz da errância imaginária um baluarte contra a cena iluminada da História" (1999, p.21). O castelo-torre se identifica aqui com a poesia, ou melhor, com seu "devir lírico transformado em interrogação" (idem, p.22). Nesse sentido, um devir trágico: "Contra o nobre ou exemplar do ser humano, a poesia, como o castelo gótico, opõe a violência de um movimento que, uma e outra vez, é fiel às suas tristezas" (idem, p. 22). Lembremos que, para Agamben (2009), contemporâneo é aquele que consegue se afastar de seu tempo para lê-lo melhor. Lembremos que, em janeiro de 1989, numa entrevista que talvez seja a última de Paulo Leminski (in GUIMARÃES, 1989), realizada por Denise Guimarães, para o Jornal Nicolau, o poeta discorreu sobre o simbolismo, e lembrou que o movimento soube perceber com mais profundidade as transformações sociais do final do século XIX do que o realismo socialista, o que bastaria para colocar em xeque a ideia da turris ebúrnea como mera evasão ou como gesto de covardia do artista nefelibata. Na revisão do simbolismo, em pleno fin-de-siècle, agora o XX, o poeta encontrava na ilha de televisão uma espécie de torre-de-marfim.
  Em um outro ensaio do mesmo livro, Negroni lembra que a melancolia também é uma estética e a sensibilidade gótica finissecular (a nossa) talvez seja um de seus nomes" (1999, p.27):  

Villiers de Lisle-Adam, Théophile Gautier, Mary Shelley, Swinburne ou Renée Vivien, souberam já nos fins do século passado (...) que a respiração asmática, como toda ostentação, tem a ver com a carência. Por isso, a beleza decadente de sua produção, cheia de emblemas, martírios, intrigas e lamentos, como a luz que ilumina nos quadros barrocos o desenho obscuro da alegoria, é um efeito de opostos. Reduzido a um estado de ruína, a linguagem já não serve para a comunicação mas está mais perto do incognoscível (1999, p. 29)



Nenhum comentário: