terça-feira, 15 de abril de 2014

Imagem e memória


Nascimento de Venus, de Botticelli

Poderíamos pensar, seguindo os passos do poeta cubano Lezama Lima, na imagem como a última das histórias possíveis. Nesse lugar, não nos caberia a possibilidade de desvendar um segredo, tal como nos é dado nos romances policiais, em que os fatos se justificam numa rede causal em que o investigador, por meio de seus dotes interpretativos, alcança o sentido final. Se é verdade, como nos dizia Lezama, que uma imagem ondula e se desvanece se não se orienta, ou ao menos consegue reconstituir um corpo ou um ente, é também verdade que o homem sempre se sentiu como um corpo que se sabe imagem, pois o corpo “ao tomar a si mesmo como corpo,verifica tomar posse de uma imagem” (LEZAMA LIMA). Poderíamos arriscar dizer que mais importante do que tomar consciência do mundo como uma grande rede de imagens, é perceber como essas imagens nos chegam, transformadas por um eterno retorno, que as faz diferentes. Se partirmos do pressuposto de que uma imagem sempre está carregada de história, perceberemos que o retorno dessa mesma imagem, em outras condições, instaura uma diferença que lhe confere uma potência capaz de colocá-la em rede, fazendo-a funcionar, ao mesmo tempo como sintoma, mediante uma interrupção no saber, e como conhecimento, mediante uma interrupção no caos. Nesse sentido, uma das características mais relevantes da imagem é funcionar simultaneamente como carrasco e como vítima, lembrando aqui do poema heautontimoroumenos, de Charles Baudelaire. Essa diferença, que faz com que uma imagem possa ser dialética, tal como Walter Benjamin sugeriu sobre poemas do próprio autor das Flores do Mal, nos interessa de maneira especial.  Poderíamos partir da ideia, presente nos trabalhos de Georges Didi-Huberman, de que diante da imagem, estamos diante do tempo (já discuti esse assunto no blog há algum tempo). Em Ante el tiempo, o filósofo chama a atenção para um dos afrescos do Convento de São Marcos, em Florença, pintado no século XV pelo Frei Angelico. O contraste entre as paredes pintadas a cal e o quadro roxo salpicado de “manchas erráticas”, que se perpetuou como uma constelação de fogos de artifício ou estrelas fixas, gera uma deflagração do tempo, capaz de mostrar que “ante una imagen – tan antigua como sea -, el presente no cesa jamás de reconfigurarse” e que “ante una imagen – tan reciente, tan contemporánea como sea -, el pasado no cesa nunca de reconfigurarse” (DIDI-HUBERMAN). O problema que se coloca, segundo Didi-Huberman, é como estar à altura de todos os tempos que as imagens diante de nós conjugam sobre tantos planos? O que está em questão é a própria ideia de um regime do olhar. Colocar-se diante de um objeto não significa somente interrogar o objeto, mas principalmente atentar para a questão do tempo. Essa é a aposta do trabalho do filósofo francês: desenvolver uma arqueologia crítica dos modelos de tempos, dos valores do uso do tempo. A necessidade é a de um anacronismo, que aparece no interior dos próprios objetos, sendo “el modo temporal de expresar a exuberancia, la complejidad, la sobre-determinación de las imágenes” (DIDI-HUBERMAN). Nesse sentido, a imagem deveria ser pensada como uma construção da memória.

Esse é o interesse de um crítico como Raúl Antelo, ao observar que as imagens produzem um regime de significação que apela aos processos da memória psíquica e, elaborando-se como sintoma, “sobrevivem e deslocam-se no tempo e no espaço, exigindo que se alarguem, consequentemente, os modelos da temporalidade histórica e que se acompanhe a sua sobrevivência para além do espaço cultural originário” (ANTELO). Se adotarmos um outro modelo de temporalidade, como nos sugere Antelo, e levarmos a cabo a afirmação de Giorgio Agamben, de que a “história não pode ser o progresso contínuo da humanidade falante ao longo do tempo linear, mas é, na sua essência, intervalo, descontinuidade, epoché” (AGAMBEN), perceberemos que acompanhar a sobrevivência da imagem, tal como nos é dada no torvelinho da história, e consequentemente no jogo de um anacronismo fundante, pode ser uma forma ainda possível de ler o próprio presente. Aby Warburg, que foi um dos pioneiros dessa perspectiva, no campo da história da arte, apresentou uma concepção rememorativa da história. Nela, as imagens criam, no movimento de sobrevivência e de diferimento que lhes é característico, “determinadas circulações e intricações de tempo, intervalos e falhas, que vão desenhando um percurso, um regime de verdade, uma densidade constelacional própria” (ANTELO). Ainda acompanhando o raciocínio de Raúl Antelo, perceberemos que o conceito de sobrevivência, central na teoria de Warburg, e que foi desenvolvido previamente por Edward Tylor, nos fornece uma saída para o impasse do presente, e as fórmulas do passado, tocadas pela fórmula do pathos, pathosformel, no dizer de Warburg, ainda podem ser equacionadas como problema.  Há um texto de Aby Warburg que pode nos ajudar a pensar a questão das sobrevivências na arte. 

Em 1893, o historiador alemão escreve um estudo que seria de suma importância para as suas pesquisas posteriores. Warburg intitulou-o como “O Nascimento de Vênus e a Primavera de Sandro Botticelli”. O texto consistia em uma investigação sobre as representações da Antiguidade no primeiro Renascimento italiano. Nele, o historiador da arte propõe comparar os conhecidos quadros mitológicos de Sandro Botticelli com as representações equivalentes da literatura poético e teórico-artística contemporânea com o objetivo de estudar os aspectos da Antiguidade que interessaram a Botticelli e a outros artistas do Renascimento. O elemento dos quadros que chama a atenção de Warburg é principalmente o movimento dos cabelos e da roupagem das personagens, que se caracterizam a partir de representações da Antiguidade e de textos literários em que sobreviveram tais representações. Warburg resgata uma passagem do texto em que Poliziano, na sua História da Literatura Italiana, descreve o nascimento de Vênus. A descrição assemelha-se ao quadro de Botticelli. Poliziano, que fora amigo de Lorenzo de Medici, havia tomado um hino homérico como base para a caracterização de sua Vênus. Warburg compara a descrição de Poliziano com um hino homérico para demonstrar que a ideia do movimento sobrevive no texto florentino e por sua vez na pintura de Botticelli. Em ambos, Vênus emerge do mar e é tocada pelo sopro de Zéfiro, sendo recebida pelas deusas das estações. Curiosamente, os movimentos do vento são valorizados por todas as representações elencadas. Outro poeta da Antiguidade lembrado por Warburg é Ovídio, que também valoriza a ideia de movimento semelhante nas suas "Metamorfoses". Seguindo os passos de Burckhardt, Warburg acreditava que o Renascimento buscara na Antiguidade pagã um modelo de cultura que transcendia o cristianismo medieval e desenvolvera uma experiência global diferente daquela expressada pelas sociedades urbanas e mercantilistas. 

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