sábado, 14 de junho de 2014

FILME DE AMOR, DE JULIO BRESSANE: POR UMA CARTOGRAFIA DOS GESTOS (Parte II)


Balthus, citado por Bressane como um dos pintores que influenciou a concepção estética do seu Filme de Amor, merece um comentário à parte, já que várias cenas do filme são re-criações de quadros desse pintor francês morto em 2001, aos 92 anos de idade.
Balthasar Klossowski de Rola ficou conhecido por pintar adolescentes, retratadas em cenas aparentemente banais, como em um momento de leitura, sentadas no sofá, ou dormindo. Nem meninas, nem mulheres, as jovens que posaram para Balthus, à maneira de Lolita, de Nabokov, ganharam por meio de seu traço, uma conotação erótica, como na obra Menina e Gato, de 1937, e O jogo de Cartas, de 1948-1950. As personagens, geralmente pré-adolescentes e adolescentes, oscilam entre a ingenuidade da infância, conotada, por exemplo, pelo gato que aparece no quadro de 1937, e a perversidade, o erotismo, sintoma de um despertar do poder da sexualidade. No entanto, isso não significa que sua obra seja pornográfica.





                 
    (Pinturas de Balthus)                                       (Cenas de Filme de Amor)

Balthus, como o seu amigo George Bataille, talvez intentasse representar a natureza sagrada do erotismo. Tendo como incentivador Rainer Maria Rilke, que foi amante de sua mãe, Balthus construiu uma obra anacrônica. Suas adolescentes habitam interiores[1] e oscilam entre o tempo moderno do pintor e o tempo remoto, renascentista, já que suas personagens trazem no rosto expressões parecidas com as das imagens retratadas por Piero Della Francesco, cujos afrescos foram estudados por Balthus.
No texto “O doutor inglês e o paciente argentino ou o médico e o monstro”, publicado em Cinemancia, Julio Bressane observa a sobrevivência da literatura de Browne na obra de Jorge Luis Borges. Bressane recorre às reflexões de Aby Warburg sobre os quadros de Durer e Botticelli, para mostrar que Borges estava interessado em buscar um “signo modular” fora de seus contemporâneos, “fora da espessa indiferença contemporânea” (2000). Relembra o passeio de Borges e Emir Rodrigues Monegal, em plena época do peronismo, pelas noites suburbanas de Buenos Aires, nas quais o autor de História da Eternidade mergulhava nos labirintos da literatura inglesa para buscar fora do espírito da época, do gosto dos criadores da época, “uma influência, uma alusão, que convém a uma intuição, para com ela encontrar-se, misturar-se (BRESSANE, 2000). 
Em um outro texto do mesmo livro, dedicado ao estudo da obra de Emerson, e de como ela sobreviveu no cinema, Bressane escreve uma interessante passagem, aquela em que associa a última estrofe do poema “Brahma”, de Emerson ao filme Je vous salut Marie, de Godard. O cineasta francês, segundo o olhar de Bressane, teria assimilado o mito, bem como traduzido a sua força na tela de cinema, percebendo que mito e poesia se confundem desde sempre:

Je vous salut Marie: A luz, sobretudo a luz, luz soberana e altiva, no alto das árvores e no rosto de toda gente. O mito em movimento, o mito fruindo em nossos dias e influenciando-os. Palestina em Paris. Maria, a água, sua pela branca lavada e revelada. A pele branca em movimento, a película branca, transparente como a água, em movimento transpassado pela luz. Nada fixo, tudo escorrendo na natureza, na vida. O poeta liga-se a sua amada na loucura poética, diz Platão. E prossegue: mas na loucura erótica liga-se o indivíduo à forma de divindade que lhe é própria. Maria traz com ela a sombra de Nossa Senhora ou de Cleópatra. Ave Maria, flor de orquídea, abrindo-se desde a origem do mundo. Gruta encantada, deleitosa, úmida. Água de onde tudo emana. Mito e poesia se confundem desde sempre, desde a aurora do mundo. Aqui o mundo eleva-se com voz e diz: Os deuses desejam minha morada. Meigo amante do bem, une-te a mim! (2000).    

O que Bressane percebe em Je vous salut Marie é de certa forma o que produz em Filme de Amor. Os temas são diferentes, mas em ambos o mito sobrevive, mesmo que em forma de uma ruína. O filme de Jean-Luc Godard apresenta uma versão para a concepção da Virgem. Maria é uma jovem estudante que joga basquete e trabalha no posto de gasolina de seu pai. José é um jovem taxista. Ao saber da gravidez de Maria, José a acusa de traição. O anjo Gabriel tenta convencer José para que ele aceite a gravidez.  Em Filme de Amor, que contou com a belíssima fotografia de Walter Carvalho, as Três Graças são pessoas comuns que vivem no subúrbio carioca e se refugiam em um pequeno sobrado no fim de semana para viver uma experiência amorosa, erótica e pornográfica. No mito, Vênus surge na praia. A beleza indescritível faz brotar flores na areia. A trindade que Vênus projeta se revela nas Três Graças. Eufrosina, Aglaê e Talia eram as deusas do banquete, da dança e de todas as diversões e das belas-artes. Sobre as Graças, escreve Spenser, dando-lhes um aspecto apolíneo:

Ofertam as três ao homem os dons amáveis
Que ornam o corpo e ornamentam a inteligência:
Aspecto sedutor, bela aparência,
Voz de louvor e gestos de amizade.
Em suma, tudo aquilo que, entre os homens,
Se costuma chamar Civilidade
(SPENSER apud BULFINCH).

Aby Warburg, que não dissocia o traço apolíneo e dionisíaco na cultura renascentista, lembra que Vasari viu os dois quadros de Botticelli na vila Castelo, propriedade do duque Cosimo. Vasari considerava Vênus como um elemento central dos quadros de Botticelli, sublinhando a correspondência entre eles. O Nascimento de Vênus representando a origem de Vênus e Primavera representando o momento posterior, em que a divindade aparece em seu reino, tendo como fiéis assistentes Hermes, que dissipa as nuvens, as Graças como a beleza juvenil, a deusa da Primavera e o vento Oeste (WARBURG, 2005). Assim, o pintor florentino, seguindo os conselhos de Alberti, deu corpo às Graças. Na alegoria, tomada de Sêneca, a primeira Graça dá um benefício, a segunda recebe e a terceira devolve. A representação é recorrente em vários trabalhos literários e pictóricos da Antigüidade e do Renascimento. Um dos exemplos pode ser encontrado em uma moeda cunhada em homenagem a Giovanna Tornabouni. Um dos lados da moeda mostra as Graças nuas entrelaçadas da forma já conhecida e do outro lado aparece Vênus que exibe novamente um intenso movimento nos cabelos e na vestimenta, traço sobrevivente da iconografia da Antigüidade.      
Na leitura criativa de Bressane, uma das Graças é um barbeiro, protagonizado por Fernando Eiras. As outras Graças são vividas pelas atrizes Bel Garcia e Josie Antello, uma acessorista e uma manicure. Três pessoas comuns que se encontram num cortiço no centro da cidade e, por meio da embriaguez, do prazer sexual, entram em contato com as três divindades, vivendo uma espécie de “hiato” no sofrimento da vida. Assim, as personagens têm “um pendor, um dom” de criar um intervalo no sofrimento, vivendo um momento de descoberta e prazer. Penso que a leitura de Bressane não deve ser considerada apenas como uma adaptação do mito. Dizer apenas isso seria ainda muito pouco. O cineasta trans-cria – para usar uma terminologia de Haroldo de Campos - o mito numa espécie de movimento centrífugo, já que não é apenas o mito que está em questão, mas também as leituras desenvolvidas a partir dele ao longo da história. É o caso dos textos de Poliziano e Alberti que fizeram sobreviver o mito na obra de Botticelli. Dessa maneira, arriscamos dizer, o filme não é sobre o mito, mas é sobre os gestos. Os gestos do amor, da Antigüidade aos tempos contemporâneos, os gestos da escritura e da iconografia renascentistas, os gestos da pintura de Balthus, os gestos do próprio cinema. Relembremos a hipótese inicial, de que o cinema de Bressane busca filmar a si próprio. Uma obra sobre os clichês cinematográficos do amor. Essas colocações, à guisa de uma conclusão, nos fazem pensar que a tarefa do cineasta é extremamente requintada, já que o que está em jogo é a montagem de tempos. Tarefa que Giorgio Agamben defende como fundamental no trabalho do artista contemporâneo. Para ele, o contemporâneo não é apenas aquele que, percebendo o escuro no presente, “nele aprende a luz resoluta”, é também aquele que, dividindo e interpolando o tempo, “está à altura de transformá-lo e de colocá-lo em relação com outros tempos (...)” (AGAMBEN, 2009). O que Julio Bressane consegue fazer com destreza.



[1] Raúl Antelo, no texto “La comunità che viene, ontologia da potência”, lembra que Thomas Carl Wall associou o livro A comunidade que vem, de Giorgio Agamben, à análise que Antonin Artaud faz da pintura de Balthus, valorizando o aspecto anti-real, ou mesmo anti-moderno de sua linguagem, capaz de funcionar como uma decreatio da vida disciplinada, em que ele (Balthus) captou a impureza ideal da arte:

Não interessavam a Artaud essas cenas de rua tanto pelo aspecto inacabado ou fetal das formas, um pouco à la Dali, que facilmente permitiriam extrair delas uma leitura imprevista ou fantástica da vida moderna. Ao contrário, anti-real, a linguagem de Balthus tinha sentido para Artaud somente quando inserida em contexto. Aí passava a brilhar seu efeito de trompe-l´oeil: quando essa linguagem fisga, no real, no esclarecimento artificial da tela, o sentido secreto, congelado, detido dessa vida, que, no entanto, flui na rua. Mas ainda: Artaud diz, em ensaio posterior, que Balthus fez uma mise à nu da vida banal. Ora, é nesse sentido que caberia falar do livro de Agamben, como uma decreatio (um trompe-l´oeil, uma mise à nu) da vida disciplinada, comunitária. Balthus, ou melhor, seu intérprete, Artaud, bem como Agamben, segundo Wall, teriam assim captado a impureza ideal da arte, de tal maneira que, partindo de uma forma contingente e eventual, a ontologia da potência que todos, de algum modo, perseguem, visa à formalização secundária de uma forma ou potência captada como informe (ANTELO, 2007).

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