quinta-feira, 5 de junho de 2014

FILME DE AMOR, DE JULIO BRESSANE: POR UMA CARTOGRAFIA DOS GESTOS (Parte I)



Em uma entrevista concedida a Vitor Angelo (2009), para a revista Trópico, o cineasta Julio Bressane falou sobre o seu Filme de Amor. Perguntado sobre o processo de criação da obra, Bressane lembrou que a idéia do filme surgiu quando leu o historiador da arte Aby Warburg e o filósofo Giorgio Agamben, na década de 80. Na época em que o filme foi lançado, o cineasta, convidado para uma conversa com o hebdomadário OPasquim21, observou que pretendeu com a obra interpretar o mito das Três Graças e, por meio dele, “mostrar a sobrevivência dos gestos arcaicos do amor” (2004). A questão de fundo do filme era, a seu ver, uma certa interpretação do cinema como “cartografia de gestos”. Assim, e essa é a hipótese que aventamos aqui, a arte de Bressane poderia ser lida como sintoma de um cinema que busca filmar a si próprio, um cinema que se olha no espelho e não vê outra coisa que a repetição e a diferença, fundadas em seus gestos. 
     Reconhecido como representante do chamado Cinema Marginal, geração posterior ao Cinema Novo, o cineasta foi buscar na leitura de dois teóricos, Warburg e Agamben, importantes subsídios para a criação cinematográfica. Essa troca de experiências, a presença da história da arte e da filosofia em seus filmes dá uma dimensão, ao mesmo tempo, criativa e intelectual, e tende mesmo a abolir a fronteira entre esses dois universos. Assim, o universo intelectual (filosófico) em Bressane não está dissociado do universo criativo. E é da ficção, ou melhor, da fricção dessas duas forças que o artista consegue extrair um terceiro elemento que chamaremos aqui, não por mera conveniência, de “cinema de gestos”. Um cinema consciente da dimensão histórica das imagens por ele produzidas.  
Lembremos que Giorgio Agamben, que caracterizou o homem como um animal que vai ao cinema, em um interessante ensaio sobre Guy Debord, se refere ao estatuto da imagem, não só no cinema, mas nos tempos modernos em geral. Recorrendo aos estudos de Gilles Deleuze, o filósofo italiano concorda que a imagem no cinema não é mais algo de imóvel, não é mais um arquétipo, ou seja, alguma coisa fora da história: é um corte móvel, uma “imagem-movimento”, carregada de uma tensão dinâmica:

A experiência histórica se faz pela imagem, e as imagens são elas próprias carregadas de história. Poderíamos considerar nossa relação com a pintura sob esse aspecto: não são imagens móveis, mas antes fotogramas carregados de movimento que provêm de um filme que nos falta. Seria necessário recolocá-los nesse filme (vocês devem ter reconhecido o projeto de Aby Warburg) (AGAMBEN, 1995).

A concepção de história que permeia esse ponto de vista é messiânica, portanto não-cronológica. Nesse sentido, o princípio constitutivo do cinema é a montagem, caracterizada a partir da repetição e do corte. A montagem sempre foi o princípio do cinema, no entanto, agora, com Guy Debord, esse princípio passa para o primeiro plano. Diz Agamben:

A técnica de composição não mudou, é sempre a montagem, mas agora a montagem passa a primeiro plano, e é exibida enquanto tal. É por isso que podemos considerar que o cinema entra em uma zona de indiferença em que todos os gêneros tendem a coincidir, o documentário e a narrativa, a realidade e a ficção (AGAMBEN, 1995).

 Assim, o cinema é produzido a partir de imagens do próprio cinema. É a transição do regime da fábula para o regime da ficção, como diria Michel Foucault[1] (2001), e que podemos muito bem detectar no cinema de Julio Bressane. Quando Agamben fala da repetição, não a considera como o retorno do idêntico, o mesmo enquanto tal que retorna. Filiado na tradição de Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger e Gilles Deleuze, Agamben defende que a força e a graça da repetição, a novidade que ela traz, é o retorno como possibilidade daquilo que foi. Dessa maneira, repetir uma coisa é torná-la novamente possível. Repetição e memória são, assim, dois lados de uma mesma moeda: “Pois a memória não pode nos restituir tal qual aquilo que já foi. Isto seria o inferno. A memória restitui ao passado sua possibilidade” (AGAMBEN, 1995). 
     A memória, como órgão de modalização do real, é “aquilo que pode transformar o real em possível e o possível em real” (AGAMBEN, 1995). Agamben nos lembra que esta é também a definição de cinema, que ao contrário das mídias em geral - que nos dão sempre um fato, o que aconteceu, sem a sua possibilidade -, possui uma potência inexistente no jornal e na televisão. Se pensarmos na imagem cinematográfica como carregada de história, uma história que se repete com diferença - uma diferença potencializada pelo corte, pela fissura, pela ruptura da continuidade história, restituindo ao passado sua possibilidade -, devemos relembrar de Aby Warburg, para que possamos perceber como essa proposição pode ser pensada à luz do cinema de Julio Bressane.
        

Júlio Bressane

Aby Warburg era o primogênito de uma importante família de banqueiros alemães. Seu nome é associado à biblioteca que fundou em Hamburgo e que foi transferida para Londres em 1933. Em 1893, Warburg lançou um estudo sobre as representações da Antigüidade no primeiro Renascimento italiano. A pesquisa ganhou o título: O Nascimento de Vênus e a Primavera de Sandro Botticelli. Warburg tinha em mente com o estudo comparar esses dois quadros mitológicos de Botticelli com as representações equivalentes da cultura poética e teórico-artística contemporânea com o objetivo de verificar quais foram os aspectos da Antigüidade que interessaram a esse artista do Renascimento. 
     O historiador da arte acreditava que era possível seguir passo a passo como os artistas e seus mentores viam na Antigüidade o modelo de um movimento externo intensificado e “como se apoiavam nos modelos antigos sempre que se tratava de representar motivos acessórios em movimento (bewegtes Beiwerk) – tanto na roupagem como nos cabelos” (WARBURG, 2005). Warburg resgata uma passagem do texto em que Poliziano, na sua História da Literatura Italiana, descreve o nascimento de Vênus. A descrição assemelha-se ao quadro de Botticelli. Poliziano, que fora amigo de Lorenzo de Medici, havia tomado um hino homérico como base para a caracterização da divindade. Warburg compara a descrição de Poliziano com um hino homérico para demonstrar que a idéia do movimento sobrevive no texto florentino e por sua vez na pintura de Botticelli. Em ambos, Vênus[2] emerge do mar e é tocada pelo sopro de Zéfiro, sendo recebida pelas deusas das estações. Curiosamente, os movimentos do vento são valorizados por todas as representações elencadas. Um típico caso de sobrevivência. De certa maneira, é o que Didi-Huberman percebe em Brecht. 
Seguindo os passos de Burckhardt, Warburg acreditava que o Renascimento buscara na Antigüidade pagã um modelo de cultura que transcendia o cristianismo medieval e desenvolvera uma experiência global diferente daquela expressada pelas sociedades urbanas e mercantilistas. A “volta à vida do antigo”, como José Emilio Burucua tratou a obra de Warburg, foi o tema central nos textos do historiador. Os movimentos da ninfa, seus cabelos e vestimentas, formaram “um signo privilegiado e manifesto da vitalidade pagã” (BURUCÚA, 2007), que tinha sido obliterada e esquecida durante séculos de civilização. De certa forma é o que Bressane procurou desenvolver em Filme de Amor.


                           
   Estátuas das Três Graças e     Cena de Filme de Amor



Warburg falava da sobrevivência do pathos da Antigüidade, o que chamou de fórmula do pathos, pathosformel. Bressane devolve potência ao mito das Três Graças justamente a partir da sobrevivência dos gestos do amor, tendo em vista que o trio de personagens (um homem e duas mulheres) representa cada uma das facetas do amor: a beleza, o prazer e o amor. Bressane observou que esses traços aparecem na Renascença com Poliziano, íntimo de Botticelli, a quem forneceu os argumentos filológicos para as duas pinturas analisadas por Warburg[3]:

Os gestos espontâneos e automáticos de hoje são os gestos ritualizados de ontem. As posições naturais das pessoas hoje eram feitas de maneira ritual representando aqueles conceitos. Por exemplo: a mulher na ponta dos pés é o sinal do início da reflexão. É o início da dança. Uma indicação do alçar vôo filosófico. Essa mitologia e esses gestos – como se passa no jogo do dar, do receber e do retribuir – são os mesmos até hoje. A metamorfose é como as coisas mudaram de valores através dos tempos. Por exemplo: o arco e a flecha, duas coisas temidas na Antigüidade como instrumentos de morte, com o tempo passaram a ser brinquedo de criança. Enfim: o que é permitido ou não no código e nas regras de um momento da sociedade. Até onde isso foi na imagem? Aí entra o Balthus, um pintor importante, não pelo seu aspecto biográfico – sua mãe foi amante do Rilke – mas por ter feito, como Ravel na Música, a pintura da Pintura. Toda a obra de Balthus é uma parataxe, ou seja, é uma recriação ou um aspecto de determinado quadro. Com esse princípio ele criou o maior repertório de gestos eróticos da Pintura. A chave do filme é essa discussão de como esses gestos vão se transformando e como é possível essa mitologia ter vindo até hoje (BRESSANE, 2004)



[1] Refiro-me ao ensaio “Por Trás da Fábula”, de 1966, em que Foucault contrapõe dois regimes da narrativa, o regime da Fábula, feito de elementos colocados em uma certa ordem, ao regime da Ficção, em que se valoriza a trama das relações estabelecidas.  Fábula é o que é contado (episódios, personagens, funções que eles exercem na narrativa), Ficção é o regime da narrativa, ou melhor, “os diversos regimes segundo os quais ela é narrada” (2001, p. 210).

[2] Um ano depois de pintar O nascimento de Venus, Botticelli coloca o rosto de Vênus em um retrato de Maria, em La Virgen de la granada (1487).

[3] Sobre esse aspecto, Bressane justifica:

A idéia desses homens renascentistas era fazer uma introdução das idéias de Aristóteles e Platão sobre a questão do Belo, valendo-se das traduções e dos comentários feitos pelos árabes (...). A força da Renascença são os conceitos de Platão vistos através da filosofia dos árabes. Poliziano, Laudino, Mattei, todos eles (BRESSANE, 2004, p. 15).

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