quinta-feira, 21 de abril de 2016

Cícero França (da série Origens da poesia em Porto União da Vitória)


Cícero França (1884-1908), figura quase esquecida das nossas letras, foi incluído por Andrade Muricy no Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro. Dos primeiros poetas da região, foi o que mais se projetou no cenário literário brasileiro. Filho de Napoleão Marcondes de França e de Francisca Olímpia Silveira de França, e sobrinho do Coronel Amazonas, o local de seu nascimento é incerto. Alguns biógrafos apontam a Fazendinha (Rosal do Cruzeiro), em Palmas, como sendo o local de seu nascimento. Outros indicam União da Vitória.

Como os arquivos do Cartório de União da Vitória anteriores a 1938 foram perdidos, o mistério provavelmente perdurará. Independente de sua origem, é certo que a família do poeta viveu em União da Vitória, projetando-se no cenário político e econômico da região. Com base nos poucos relatos biográficos, podemos afirmar que Cícero França possuía um espírito viajante e aventureiro, pois além de morar em União da Vitória, viveu em Curitiba, Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo.

 

Cícero França 

Raul de Almeida Faria, em seus diários, compilados por Paulo Roberto Karam, relembra sua grande amizade com o poeta de Necrotério D'Alma, nascida no Colégio Paranaense, quando eram ainda estudantes, e onde Cícero publicou seus primeiros poemas no jornal O Estudo, periódico cultural do Colégio. Raul lembra que Cícero "sempre que podia deliciava-se em estudar a metrificação do verso". Por volta de 1900,  o jovem foi à Bahia se preparar para a Faculdade de Medicina. Lá, hospedado no Hotel Sul Americano, trocou correspondência com o amigo Raul de Almeida Faria e aproximou-se do grupo simbolista Nova Cruzada. No fascículo VII da revista simbolista Nova Cruzada, de Salvador, publicada em novembro de 1901, há uma nota que informa a admissão de Cícero França como novo membro do grupo: "Em sessão extraordinária, de 21 do corrente, receberam a investidura de cavaleiros da Nova Cruzada os ilustres moços Barros Leal e Cícero França sendo respectivamente saudados por seus paraninfos Rafael Leal e Galdino de Castro". 

A pesquisadora Cecilia de Lara, que estudou a atuação do grupo simbolista baiano e a revista por ele fomentada, observou que essa sociedade literária tinha reuniões ordinárias e extraordinárias, feitas para admissão de novos sócios ou por outros motivos, e sessões comemorativas. Ela informa também que as sessões de ingresso eram memoráveis e fascinadoras pelo conjunto artístico que "apresentavam nos melhores matizes do pensamento aprimorado, perduravam nos motivos de palestras em todos os meios da velha Salvador. A revista Nova Cruzada foi uma das mais importantes do simbolismo. Não nos foi possível apurar se Cícero França chegou a conhecer e travar amizade com Pedro Kilkerry, um dos grandes poetas brasileiros do início do século que também integrou o grupo. No entanto, é bem possível que tenham se conhecido.  


 

Foto rara (sem data) de Cícero França ao lado do Dr. Helvidio Silva, publicada na revista ilustrada A Bomba, em Curitiba, 1913. O poeta está de chapéu e livro na mão:o dandismo característico dos poetas da belle époque 

Em fins de 1901, Cícero se reencontra com Raul de Almeida Faria e ambos vão para São Paulo, com a finalidade de se matricularem na Faculdade de Direito. Foram morar em um apartamento na rua José Bonifácio. Tratava-se de um quarto "nada consolador", localizado no andar superior de uma casa importadora de azeite, querosene e bacalhau que davam ao ambiente um cheiro peculiar que desagradava os seus moradores. Nesse momento se intensifica a produção de Cícero. Raul lembra do ritual segundo o qual se submetia o poeta, fumante e bebedor inveterado de café, quando escrevia: "Tinha o meu companheiro de quarto uma graciosa esquisitice: Não escrevia a não ser com as pernas estiradas numa cadeira que, cuidadosamente, punha a certa distância daquela em que se sentava". Depois de desistirem da Faculdade de Direito, os dois amigos foram para o Rio de Janeiro, em uma pensão. Cícero se aproximou do poeta Emilio de Meneses, participando, assim, do ambiente cultural da belle époque carioca. 

O diário de Raul de Almeida Faria apresenta um episódio que demonstra o gênio bondoso de Cícero França: "Espírito de uma sensibilidade excessiva, dotado de um caráter forte e de um grande coração, praticou o Bem , a Caridade com grande devotamento. Um dia chegava a pensão um moço maltrapilho que fez entrega à dona da casa de um bilhete que meu amigo lhe endereçava dando ordem para ser entregue ao portador um terno de roupa já seu usado. Por engano foi-lhe entregue roupa nova, chegada de véspera do alfaiate a quem tinha sido paga com algum sacrifício. Cícero, chegando em casa, ciente do engano, não censurou a precipitação do nosso senhorio: riu-se rematando o fato com essa expressão de bondade:...'e o manata meteu-se na minha roupa nova'". Foi nessa época que Cícero, depois de cuidar de um "serenatista" que havia contraído tuberculose, começou a piorar da doença que lhe tiraria a vida.Em Curitiba, muito doente, Cícero organiza o livro de poemas Necrotério D'alma, lançado em 1905, no mesmo ano em que fundou o jornal O Rebate, em União da Vitória. 

A obra Necrotério D'Alma, uma das mais decadentistas da moderna poesia brasileira, é comentada em jornais paranaenses, como A Notícia que, durante todo o mês de novembro daquele ano, informa que o livro estava sendo vendido na Livraria Econômica, em Curitiba, Paranaguá e Ponta Grossa. Ainda no final de 1905, entra em circulação mais uma edição da revista simbolista Stellario, de Curitiba, que conta com a colaboração de Cícero. O que demonstra que o poeta consegue se projetar na literatura paranaense que, por sua vez, era o cenário mais fecundo do simbolismo brasileiro.  


 
Propaganda do livro, veiculada em 1905 pelo jornal paranaense A Notícia 

Os primeiros poemas que integram o Necrotério D'alma são datados de 1901 e 1902 e indicam que foram escritos na Bahia, o que demonstra que a participação do poeta do grupo da Nova Cruzada foi bastante motivador para o seu trabalho. No entanto, ao folhear as páginas da revista, não encontramos nenhum trabalho seu publicado. Esse fato talvez se dê pelo pouco tempo que Cícero França passou em Salvador, pois logo voltou ao Paraná. Independente do fato de ter colaborado ou não na revista, as impressões deixadas pelo grupo no poeta foram fortes, a ponto da capa de seu livro indicar que o autor do livro pertencia ao grupo baiano. 



Poema que integra Necrotério D'Alma 

Necrotério D'Alma é composto por 26 sonetos. Em todos, o tom é cinzento e lúgubre, fazendo lembrar o tipo de melancolia presente em vários poetas simbolistas, principalmente naqueles em cujo trabalho transparece o sentimento de decadência fin du siècle. Seus versos, de métrica predominantemente alexandrina, estão atravessados pelo sentimento de spleen baudelaireano que motivou boa parte da produção poética do final do século XIX. É provável que Cícero França seja um dos poetas mais decadentistas do seu tempo. Temas como a morte, a dor e o tédio formam um eixo sob o qual se move uma poesia interessada em imagens como a da sepultura, a da caveira, a da tuberculose, a do cadáver, a das trevas, entre outras. Ao longo das páginas, à medida que lemos, assistimos a um desfile de horrores: fantasmas rindo, esqueletos nus gargalhando, corvos e mochos grasnando, sinos de igreja tocando. O sentimento de decadência é eximiamente materializado no poema "Porque", no qual observa que a rosa murcha que levava na lapela simbolizava o padecer de um torturado. A flor murcha, sintoma de uma natureza decaída, parece uma imagem bastante adequada para traduzir o spleen de um eu-lírico imerso em um sentimento de decadência.


O primeiro poema do livro, "Entrae", uma espécie de preâmbulo, é importante para situar o universo da obra. Nele, ela é apresentada como um necrotério. O poeta convida o leitor a entrar sem nojo para mirar e "autopsiar" o cadáver de sua alma. Não há podridão ou pus, já que um "cadáver de alma essas coisas resiste". Todavia, o sentimento de decomposição - decadência - percorre todas as páginas. O convite é reforçado no poema "Finis", quando o poeta constata a sua própria morte, descreve a chegada do cadáver ao necrotério e instiga o leitor a pegar o bisturi para abri-lo. A impressão é a de que estamos caminhando pelo necrotério de Paris, estabelecimento que, na segunda metade do século XX, foi aberto para visitação. Tratava-se de um espetáculo mórbido, em que a morte era transformada em show.


Capa de Necrotério da Alma (1905) 

No poema intitulado "Tédio", Cícero França explora o topos do já citado spleen baudelaireano, recorrente em vários poetas simbolistas: "Um tédio monacal - tédio feroz, maldito - / Mortifica meu peito! a gargalhar, me invade, / Sarcástico, fatal o coração precito / E deixa-m'o ferido e cheio de ansiedade." Como não aproximá-lo aqui do poema "Tédio", de Júlio Pernetta: "Vês que trago o coração sangrando / Pela perfídia de um amor enorme? / Alma de Jó, sou bem desventurado / Dentro da treva a soluçar-te o nome" (in MURICY, 1987, p. 419). Enquanto o tédio de Júlio Pernetta é alimentado pela impossibilidade de possuir a amada, em Cícero França é a própria vida, acompanhada da doença, o motivo do tédio. No entanto, o sentimento de decadência vem acompanhado de uma esperança: "E quando a extrema-uncção d'um Pôr de Sol de Agosto / No meu corpo cair bem de mansinho e brando / E a luz de outro viver banhar-me todo o rosto...". Esse é o momento em que o tédio do poeta acabará. Portanto, a morte para o poeta não tem o sentido negativo de finitude, mas sim de transcendência, uma filosofia comum no simbolismo, aproximando-se assim do poema "Tédio", de Saturnino de Meireles, publicado em 1903, e que via nesse triste desalento o sentimento de um céu que fazia fluir neblinas.


Nos versos de "Phtisica", expressão comum na época para designar a tuberculose, o poeta prevê o seu de seus dias movidos pela doença. À meia-noite, o poeta ouve o som tenebroso dos sinos de uma igreja, e tem uma visão: "É a Phtisica maldita... Essa visão fatal / Murmura ao meu ouvido um prenúncio de morte / E diz-me porque tusso e a causa do meu mal...". O poeta luta, mas sente que a tuberculose lhe rói o corpo e a alma. Em "Augural", Cícero escreve: "Segreda-me uma voz que cedo morrerei". Como o prenúncio se fez como previsto, o poema acaba por ganhar uma força bastante trágica. Não seria fortuito lembrar que o crítico simbolista Gonzaga Duque, no ensaio "Imagistas e nefelibatas", publicado na revista Kosmos, em maio de 1906, sublinha o gosto decadista pelo tema da tuberculose, vendo nela um dos traços espirituais da poesia de B. Lopes. O último poema do livro, "D'alem Túmulo" é uma espécie de texto post-mortem, pois é escrito como se o poeta já se encontrasse no além fazendo uma espécie de balanço de seus feitos na terra. Impressionou-nos o fato de termos encontrado um poema psicografado pelo médium Chico Xavier atribuído a Cícero França. O confronto da linguagem desse texto com os poemas de Necrotério D'Alma demonstra uma semelhança significativa.  

         
Fotografia do poeta publicada na revista Olho da Rua,em 7 de setembro de 1907 

Em 1908, bastante debilitado, o poeta decide visitar a família em Porto União, mas morre no Hotel Palermo, na Praça da Matriz, em Ponta Grossa, na noite de 10 de julho, sendo assistido pelo irmão mais novo Vespertino França, responsável pelo seu espólio. O corpo foi transportado para União da Vitória, onde foi cuidado pelos membros da loja maçônica Amor e Caridade. O corpo está sepultado no Cemitério Municipal. No texto que integra a segunda edição do livro, Vespertino escreveu: "(...) poucas horas antes de expirar recordou comigo passagens de nossa vida em família, fez algumas recomendações e já alta madrugada, mandou que me deitasse para repousar. Pela manhã, quando acordei, encontrei-o morto. Assim, fui eu, que contava apenas meus 12 anos de idade a única pessoa presente nas suas derradeiras horas de vida".

2 comentários:

Unknown disse...

Excelente amigo Caio parabéns pelo resgate histórico poético de nosso Vale, Viva Cícero e seu Necrotério da Alma ...

Unknown disse...

👏👏👏