quinta-feira, 7 de abril de 2016

LUNETA VERSUS CACHIMBO: apontamentos sobre o Catatau, de Paulo Leminski



 Em 2006, defendi uma Dissertação de Mestrado sobre o Catatau, romance-ideia de Paulo Leminski. Depois de alguns anos, relendo o livro, comecei a pensar sobre algumas questões que não foram discutidas por mim na época e que têm, nos últimos meses, chamado a minha atenção. É o caso da lente da luneta, empunhada por Cartesius, pensada aqui como prótese do olhar. Não que a questão tenha passado despercebida na época, em minhas pesquisas, mas apenas agora começo a me ater nela. O conceito de "prótese do olhar", sem dúvida, me chega por meio de um ensaio de Susan Buch-Morss 

ENSAIO



LUNETA VERSUS CACHIMBO


Em 1989, o poeta curitibano Paulo Leminski preparou o texto intitulado “Quinze pontos nos iis”, que foi publicado pela primeira vez na segunda edição do seu romance-idéia Catatau. No texto, Leminski procura indicar alguns caminhos que poderiam orientar o leitor no processo de leitura. Poderíamos imaginar, a título de miragem, que os quinze pontos comentados pelo escritor poderiam ser nada mais do que uma armadilha criada a fim de confundir o leitor, já que Catatau, feito a visão de um Aleph borgeano, parece não se esgotar na leitura apresentada no excerto. O suplemento inserido por Leminski poderia sugerir a ideia do livro como um elemento orgânico, fadado a se transformar ininterruptamente ao longo dos anos, seja pelo poeta, que ao inserir outros comentários em edições posteriores desenvolveria assim uma espécie de work-in-progress, seja pelo próprio leitor, capaz de potencializar outros olhares, outras leituras. Chama a atenção o ponto nº 13, que comenta justamente sobre a questão do olhar:

"Catatau é um texto colocado sob o signo da Ótica, Descartes sendo um dos pais da Ótica como disciplina científica, parte da Física. Está cheio de anomalias óticas: refrações, difrações, desvios, que incidem sobre as palavras, as sentenças, a linguagem e a lógica".


A luneta poderia ser lida como um símbolo do programa científico e da razão européia; o cachimbo, como um símbolo da confusão tropical, que não se encaixava no programa racionalista de Descartes. Mas a questão parece não se esgotar nessas conclusões. 


Luneta Astronômica, de Galileu

O próprio Descartes, numa das passagens do Discurso do método, um de seus textos mais conhecidos, observou que a intuição que o levou a formular a hipótese do cogito, seu princípio da dúvida, nasceu justamente de uma alucinação. Ironicamente, um dos pressupostos mais conhecidos da filosofia moderna – cogito, ergo sum – surgiria justamente de um desvario. O efeito da droga poderia assim ser problematizado. Baudelaire, em Paraísos Artificiais, descreve os efeitos de uma droga, o haxixe. A cena poderia servir para ilustrar a experiência de Cartésio: 

"As alucinações começam. Os objetos exteriores tomam aparências monstruosas. Revelam-se a você sob formas desconhecidas até então. Em seguida, eles se deformam, se transformam e enfim entram em seu ser, ou melhor, você entra neles. Sucedem-se os equívocos mais extraordinários, as transposições de idéias mais inexplicáveis. Os sons têm uma cor, as cores têm uma música. As notas musicais são números e você resolve com uma rapidez espantosa prodigiosos cálculos de aritmética à medida que a música se desenrola em seus ouvidos".


Cena do filme: O homem com uma câmera na mão, de Diziga Vertov

Não seria fortuito observar que Barthes, no curso O Neutro, lembra da descrição dos efeitos do haxixe feita por Baudelaire: “A grande idéia de Baudelaire sobre o H é que ele não altera o indivíduo (a consciência), não o faz ser outro, não o altera (contrariando a dóxa), mas que o amplia, o exagera, o desenvolve em excesso (...)”. Se a droga amplia o indivíduo, impossível no Catatau, dissociar cachimbo e luneta. Não poderíamos esquecer o efeito benéfico do phármakon. Essa hipótese colocaria em questão qualquer tipo de “corte” que concebesse o phármakon apenas como veneno. O que, como mostrou Derrida, aboliria o jogo da escritura.Falo isso pensando em mostrar que se o cachimbo é a causa da confusão, a luneta também não deixa de ser, até porque nos momentos iniciais da narrativa, quando Cartésio empunha o instrumento, já percebemos que a lógica tradicional é posta em xeque:

"Ponho mais lentes na luneta, tiro algumas: regulo, aumento a mancha, diminuo, reduzo a mancha, melhoro a marca. O olho cresce lentes sobre coisas, o mundo despreparado para essa aparição do olho, olho passeia não cresce mais luz, onde faz o deserto chamam paz (...). Imprimindo prosseguimento à análise, um olhar sem pensamento dentro, olhos vidrados, pupilas dilatadas, afunda o vidro, mergulha nessa água, pedra cercada de rodas, o mundo inchando, o olho cresce".


Descartes

Aqui, o pensamento é puro vidro de luneta. O próprio olhar é só palavra: “Trago o mundo mais para perto ou o mando desaparecer além do meu pensamento”.A luneta, erroneamente apresentada como símbolo da razão, poderia ser pensada - e essa é a hipótese que lanço nesta leitura – como uma espécie de prótese do olhar, tal como Susan Buch-Morss, referindo-se ao cinema, analisa no texto “A tela do cinema como prótese de percepção: uma explicação histórica”.

DEPOIS DAQUELE FILME

 Leminski, enquanto escrevia o Catatau, preparava também a sua oficina de criação. Registrado em rabiscos pertencentes hoje ao acervo da Fundação Cultural de Curitiba, esse material ainda não foi devidamente analisado por pesquisadores. Interessa-me aqui comentar apenas uma das anotações. Numa folha solta, datilografada e aparentemente estranha ao conjunto dos demais textos, o escritor curitibano apresenta uma série de nomes de livros e filmes. São eles: Esperando Godot, de Samuel Beckett; Salambô, de Flaubert; Gargantua, de Rabelais; Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis; Robinson Crusoe, de Daniel Defoe; Viagem ao Redor do meu Quarto, de Xavier de Maistre; Galáxias, de Haroldo de Campos; Finnegans Wake, de James Joyce; Assim Falava Zaratustra, de Nietzsche; Rear Window, de Alfred Hitchicock; e Blow-up, de Michelangelo Antonioni. A página é desprovida de comentários. Por um lado, os títulos anotados não possuem relação alguma como o texto de Leminski, por outro, poderíamos imaginar uma rede de associações capazes de aproximar universos tão distantes, praticando assim uma espécie de ficção do olhar.Se tratarmos aqui da lente como prótese de percepção, que se transforma no próprio livro, prótese de prótese, notaríamos imediatamente que a presença de Blow-up (1966), na oficina do Catatau, não é sem propósito. 


Cena de Blow up

Comecemos lembrando que o filme foi lançado no mesmo ano em que Leminski imaginou uma possível visita do filósofo René Descartes ao Brasil – que poderia ser lida como uma metáfora da transposição da lógica racionalista européia para o mundo “bárbaro” tropical. Poderíamos fantasiar imaginando o poeta curitibano saindo eufórico do cinema, lembrando de sua aula de história, das invasões holandesas entusiasmado agora com a “estória” do fotógrafo Tomas, de Antonioni. Blow-up é um filme bastante diferente da estética que Antonioni explorou no chamado movimento neo-realista italiano. Cumpre ressaltar que o seu cinema é tocado intensamente pelos acontecimentos da guerra e do pós-guerra, o que já serviria para demonstrar que seus filmes trariam a marca daquele dilaceramento do olhar, minuciosamente analisado por Martin Jay em Downcast eyes

Se os primeiros filmes de Michelangelo Antonioni, filiados à proposta do cinema verdade – como Roma, Cidade Aberta (1945) -, estavam preocupados com os problemas sociais, sejam eles rurais ou urbanos, presentes na Europa do pós-guerra, os filmes posteriores colocariam em xeque a própria capacidade do cinema em contar uma história. Dessa maneira, as questões políticas seriam apresentadas no nível na linguagem e não mais numa tentativa desenfreada de “copiar” o real. É como se o cineasta percebesse que a tela do cinema não seria mais uma janela para o mundo, mas sim uma prótese de percepção que “não só duplica a percepção cognitiva humana, mas transforma a sua natureza”. Por meio desse olhar, uma câmera não poderia ser vista como um instrumento que capta e reproduz uma realidade, mas como um instrumento que transforma a própria realidade. 

Argumento semelhante pode ser encontrado num dos textos que compõe Sobre a Fotografia, de Susan Sontag, que não se refere necessariamente sobre o cinema, mas que permitiria uma aproximação, já em ambos a existência da câmera é fundamental: “Embora em certo sentido a câmera de fato capture a realidade, e não apenas a interprete, as fotos são uma interpretação do mundo tanto quanto as pinturas e os desenhos”. Isso vale para o cinema.Convém sintetizar algumas cenas do filme para que possamos estabelecer um laço e um desenlaço entre a narrativa experimental de Leminski e o filme de Antonioni. 



Blow-up é um filme que chama de imediato a atenção para a questão dos limites entre o real e a representação. Thomas é um fotógrafo que, cansado do cotidiano estéril de horrível fixidez – lembrando das palavras do poeta Waly Salomão – decide sair para passear por Londres. O personagem, sempre acompanhado de sua câmera fotográfica, depois de visitar uma loja de antiguidades, decide entrar em um parque situado nos arredores da cidade. Lá, encontra um homem e uma mulher. Começa a fotografá-los. A mulher, que percebe o voyeur, não aceita o fato de estar sendo fotografada e tenta convencer Thomas a entregar os negativos. Ele recusa, mas promete devolvê-los em seu estúdio. Passado algum tempo, revela as fotografias e percebe num dos cantos da imagem uma mão que, supostamente, segura uma arma. Nota também que atrás de uma árvore aparece um corpo deitado. Thomas amplia várias vezes a imagem e cada vez acredita mais na sua hipótese. A câmera registrou um assassinato. Será? 



À noite, ele se dirige até o parque e encontra o cadáver. No dia seguinte, tenta convencer os amigos do viu, ou imaginou ter visto. Pensa em avisar a polícia, volta até a cena do crime e não encontra mais o homem morto.Percebe-se que o próprio fotógrafo chega a desconfiar das imagens, ou mesmo de sua percepção das coisas – imagens de imagens. Suas hipóteses e o próprio encontro com o cadáver talvez não fossem nada mais do que uma alucinação provocada pela imagem revelada na foto. A cena final é bastante esclarecedora (ou não). 

O fotógrafo sai do parque e encontra um grupo de mímicos que simulam uma partida de tênis. A bola é imaginária, a raquete é imaginária. Ele se distrai assistindo ao suposto jogo até o momento em que a “bola” sai da quadra e uma jogadora solicita que Thomas apanhe o objeto. Ele hesita, mas cede. Recolhe a bola e a devolve ao grupo. A cena final poderia ser lida da seguinte maneira: Thomas aceita viver o mundo como uma grande rede de imagens. Curiosamente, no mesmo ano, em Havana, Lezama Lima, o poeta da imago, publicava o seu livro Paradiso



Não nos surpreende o fato de que Blow-up tenha sido inspirado no conto de Julio Cortázar “Las babas del diablo”, presente no livro Las armas secretas. O conto ora é narrado em primeira pessoa (Roberto Michel como narrador), ora em terceira (narrador indefinido). Os acontecimentos se passam em Paris. O narrador protela ao máximo o desencadeamento dos fatos ocorridos. As primeiras páginas refletem longamente sobra a dificuldade de narrar:

"Ya sé que lo más difícil va a ser encontrar la manera de contarlo, y no tengo miedo de repetirme. Va a ser difícil porque nadie sabe bien quién es el que verdaderamente  está contando, si soy yo o eso que ha ocurrido, o lo que estoy viendo (nubes, y a veces una paloma) o si sencillamente cuento una verdad que es solamente mi verdad, y entonces no es la verdad salvo para mi estómago, para estas ganas de salir corriendo y acabar de alguna manera con esto, sea lo que fuere".

No conto, como a questão do olhar é significativa para a prática do modo de narrar, a fotografia, como uma espécie de personagem, cumpre o papel de apresentar a realidade, no entanto é a própria fotografia que apresenta os limites de tal realidade. Depois de passear pela cidade, Michel encontrou uma mulher e um menino. Achou a cena convidativa para uma boa fotografia, mas percebeu que se fotografasse estaria interferindo naquela realidade. Sabia que tinha o poder de transformá-la, por isso hesitou em fotografar:

"Michel esperaba, sentado en el pretil, aprontando casi sin darse cuenta la cámera para sacar una foto pitoresca en un rincón de la isla con una pareja nada común hablando e mirándose (...) Levanté la cámera, fingí estudiar un enfoque que no los incluía, y me quedé al acecho, seguro de que atraparía por fin el gesto revelador, la expresión que todo lo resume, la vida que el movimiento acompasa pero que una imagen rígida destruye el seccionar el tiempo (...)."

Depois de fotografar, Michel revela e amplia as imagens. Em seu estúdio, analisa-as com precisão e percebe determinados elementos que não tinha notado durante o momento em que fotografou. Pela foto, começou a reconstituir a cena e agora imaginava que o menino provavelmente seria vítima de um crime. A mulher poderia não ser a sua mãe.

A experiência de Michel só se concretiza completamente na imagem. Ele só consegue ver o conjunto de todos os fatos quando está em seu estúdio e “demora o olhar” na foto. É na foto que percebe um possível crime. E é somente pela foto que o impede quando grita em seu estúdio até que o menino fuja: “Lo importante, lo verdaderamente importante era haber ayudado al chico a escapar a tiempo”. Assim como Thomas, Michel é incapaz de sair da caverna de Platão, o que não é de todo ruim. O personagem entra no jogo das sombras e aceita a realidade como uma grande ficção, ou a única condição para a verdade. A lente não seria mais que um instrumento de construção da própria realidade. Foi a foto que levou Thomas a devolver a bola, poderíamos pensar. Aqui, o filme seria apenas uma prótese de outra prótese, a foto. 



Quando Susan Buch-Morss fala do cinema como uma prótese de percepção, está se referindo ao “ato puro de ver” estudado por Husserl. O cinema protético, levando em conta o jogo inerente do simulacro, colocaria o elemento corpóreo em suspensão.Susan Buch-Morss parte de algumas palestras apresentadas por Edmund Husserl, em 1907, em Götting sobre “A Idéia da Fenomenologia”. O objetivo principal das palestras era evidenciar um método de cognição que, “enquanto mantivesse a análise 'imanente' aos conteúdos da consciência, ainda podia chegar a um conhecimento 'absoluto' e 'universal'”.

A proposta básica de Husserl, que por sua vez se tornaria uma das propostas da Fenomenologia ao longo do século XX, era fazer conhecer o pensamento em sua forma pura, essencial no mundo da experiência. A noção de “experiência”, um dos conceitos fundamentais da Fenomenologia, foi comentada por Merleau-Ponty, em A Fenomenologia da Percepção. O filósofo entende a fenomenologia como uma filosofia que repõe as essências na existência, não acreditando que se possa compreender o homem e o mundo de outra maneira senão a partir de sua “facticidade”. Impossível estocar o conhecimento, impossível a própria possibilidade de conhecimento antes da experiência. Talvez por isso Susan Buch-Morss tenha sugerido que para termos uma visão precisa do objeto puro a que se refere Husserl melhor seria abandonar o texto e ir ao cinema. A partir da experiência do cinema entenderíamos o que Husserl queria dizer com o pensamento-absoluto.
Buch-Morss encontra no cinema as “reduções fenomenológicas” de Husserl. Tais “reduções” colocam entre parêntesis os objetos do ato mental e o sujeito que os pensa. Tanto a proposta de Husserl, quanto a de Susan Buch-Morss, pretende examinar esses objetos. Com isso, a autora do texto não está querendo dizer que o cinema é algo imanente e que questões sociais, históricas ou culturais não devem ser levadas em conta num processo de análise. O que ela pretende mostrar é que a imagem do cinema é o traço gravado de uma ausência. Logo, não seria mais relevante perguntar se as imagens representadas no cinema seriam reais ou não:

"O que conta é o simulacro, o objeto não corpóreo por detrás. Na cognição protética do cinema, a diferença entre documentário e ficção, portanto, é apagada. Claro que ainda “sabemos” que são diferentes. Mas habitam a superfície da tela como equivalentes cognitivos. Ambos o acontecimento real e o encenado estão ausentes".

O texto ainda nos apresenta um paradoxo. Por um lado, a imagem do cinema é construída pelo diretor, pelo homem que opera a câmera, pelo editor, o que faz com que seja possível uma consciência intencional; por outro, os “pedaços” do filme podem ser percebidos como algo “dado”, o que faz com que a verdade não seja intencional. Nesse contexto, esse fato torna possível uma espécie de violência. Uma violência que não diz respeito apenas à montagem que corta a realidade, mas à violência da “própria percepção protética”.

Susan Buch-Morss fundamenta suas questões filosóficas apresentando exemplos do cinema soviético e americano. Não caberia aqui estender a discussão, já que se trata de pensar como o conceito da prótese do olhar pode potencializar uma leitura do romance-idéia Catatau. Poderíamos concluir, com base no argumento da autora, que em alguns filmes soviéticos do início do século XX, por exemplo, a extensão do olhar por meio da prótese foi responsável por fazer a “massa” perceber não apenas as cenas, os personagens, a sua história, mas principalmente ver “(...) a idéia de unidade dos povos revolucionários, a soberania coletiva das massas, a idéia de solidariedade internacional, a própria idéia de revolução”. Lembremos que tratamos de uma prótese do olhar, portanto o que está em questão são os sentidos.

As reduções fenomenológicas de Husserl, que Buch-Morss encontrou nas cenas de cinema, poderiam, ao meu ver, serem encontradas também no Catatau.Lembremos que o livro foi confeccionado a partir de pedaços de papel que o escritor, posteriormente, organizava no corpus textual. Alguns desses fragmentos podem ser encontrados na oficina do Catatau, demonstrando assim que o próprio título do texto admite a potencialização de um sentido de valorização do fragmento: Catatau – Um calhamaço de fragmentos. Muitos deles parecem usar uma lógica semelhante à do haicai.



A DEMORA DO OLHAR QUE VEMOS NO QUE NOS OLHA

 Em janeiro de 1980, alguns meses antes de sua morte, Roland Barthes escreveu o texto “Caro Antonioni”, que seria publicado em maio do mesmo ano nos Cahiers du Cinema. Barthes, ao comentar as três forças que constituem o artista (vigilância – sabedoria – fragilidade), presta uma homenagem ao cineasta de Blow-up. Gostaria aqui de comentar apenas uma das virtudes abordadas, aquela que diz respeito à questão do olhar como fator de fragilidade. Essa fragilidade, que não deixa de ser uma virtude, está ligada à questão do tempo. O artista, segundo Barthes, nunca sabe se a obra que propõe é produzida pela mudança do mundo ou pela mudança de sua objetividade. Para Barthes, Antonioni tinha a consciência dessa relatividade do tempo. Outro motivo de fragilidade seria a firmeza e a insistência de seu olhar:
 "O poder, seja qual for, por ser violência, nunca olha; se olhasse um minuto a mais (um minuto demais), perderia sua essência de poder. O artista, porém, pára e olha demoradamente (...). Isso é perigoso, pois olhar por mais tempo do que o solicitado (insisto nesse suplemento de intensidade) desarranja todas as ordens estabelecidas, sejam elas quais forem, uma vez que, normalmente, o próprio tempo do olhar é controlado pela sociedade".

É justamente essa capacidade de “demora do olhar”, o mesmo gesto praticado pelos fotógrafos Thomas e Michel, e também por Cartésio, que faz do texto algo monstruoso e provocador. Talvez seja essa mesma demora responsável por fazer com que aquilo que vemos também nos olhe, apontando para além de si mesmo, numa espécie de cisão do olhar. Didi-Huberman lembra que o ato de ver não é o ato de uma máquina de perceber o real enquanto composto de evidências tautológicas: “Dar a ver é sempre inquietar o ver, em seu ato, em seu sujeito”. 

O que causa tamanha inquietação não seria pautado necessariamente nem pela falta de sentido, nem pelo seu excesso, mas pelo limiar entre aquilo que vemos e aquilo que nos olha. O que faz com que Didi-Huberman recuse duas posturas que poderíamos chamar de modalidades do olhar: uma delas é a tautologia, em que aquilo que vemos é somente aquilo que vemos; a segunda é a crença, em que o sentido estaria guardado, escondido, sempre em um outro lugar: “Estamos de fato entre um diante e um dentro. E essa desconfortável postura define toda a nossa experiência, quando se abre em nós o que nos olha no que vemos”. Na esteira de Walter Benjamin, Didi-Huberman credita à imagem dialética a superação tanto da crença quanto da tautologia.

Tanto a luneta de Cartésio quanto a câmera fotográfica de Tomas poderiam revelar uma nova realidade como aquela natureza descrita por Baudelaire no poema “Correspondências”, que parece personificar exemplarmente a imagem dialética de que nos fala Benjamin:

La nature est un temple où de vivants piliers 

laissent parfois de confuses paroles

L`homme y passe à travers des forêts de symboles

qui l `observent avec des regards familiers

Talvez a noção da prótese nos ajude a pensar na noção de limiar, trabalhada por Didi-Huberman, ajudando-nos a superar as duas perspectivas do olhar: a modalidade tautológica e a modalidade da crença. Entre o excesso e a falta, a prótese-luneta, em Catatau, apontaria para um texto que não seria uma mera algaravia de palavras, sem sentido algum. Se compactuássemos dessa ideia, diríamos: o que vemos é só o que vemos, uma bagunça, nada mais. 

A tautologia estaria formada. Também não poderíamos concordar com a afirmação de que a verdade estaria escondida e caberia ao leitor decifrá-la. Essa colocação, fundamentada numa pretensa hermenêutica, defenderia que aquilo que vemos nunca é aquilo que vemos.
A luneta de Cartésio, afim das concepções de Susan Buch-Morss sobre a prótese, não estaria nem ampliando nem reduzindo a percepção cognitiva, mas “transformando a sua natureza”, construindo assim uma nova realidade, que é a realidade do texto. Um texto-prótese.
Tida Carvalho aponta para a função invertida que a luneta ganha no contexto do livro, provocando uma visão semelhante à de uma sala de espelhos no qual se criam ilusões de grandeza e proporção:

 "O essencial na luneta não é que aproxime ou aumente os objetos contemplados, mas que transforme o próprio ato de ver, fazendo-o resultar de um ato de pesquisa e reconhecimento. No contexto de Catatau, o aproximar/distanciar é um indício de incongruência, pois o que é aproximado se distancia, perde-se como possibilidade infinita, para se tornar classificável".

No parque tropical, a função do olho não é a mesma da perspectiva cartesiana. Aqui, o olhar não vê com a intenção de aproveitar o que se vê para provar um determinado conhecimento. O olhar de Cartésio tenta reproduzir a realidade sensível. A linguagem cumpriria o papel da própria extensão do olho, a prótese. Os sentidos seriam a crítica da sua razão. Ver e escrever, nas imagens profanas do Catatau, são experiências que não poderiam ser dissociadas. 

Penso nessa questão porque ouço com freqüência, de pessoas que leram o Catatau, a afirmação de que o texto não tem significado. Mas que é o significado senão um deslizar constante que se ramifica feito uma cadeira rizomática? É pelo signo se constituir a partir de diferenças que Derrida observa a impossibilidade de um significado transcendental, pois cada elemento só existe a partir de sua relação com os outros. Esse significado, então, acaba indo sempre para um outro lugar, agora destituído de início, impossibilitado de ser fixado, multiplicando-se no jogo da significação. Essa reflexão é pertinente na leitura de um texto que não só traz a marca desse movimento, inerente a todo processo de intervenção, mas que afirma constantemente o seu devir: “O discípulo descobre o pulo, o centro sai por um furo nessa periferia de truques”. O elogio ao movimento de Heráclito destrona o SER de Parmênides: “(...) dias não dou nem dois pra deixar de onde e mudar de idéia antes que a próxima venha” (...).

O texto não poderia ser pensado sob esse ponto de vista nem como pura presença, nem como pura ausência. Isso acontece porque cada elemento só se constitui a partir de seu “rastro”, um jogo formal de diferenças que, para Derrida, gera um encadeamento, um texto que “não se produz a não ser na transformação de um outro texto”.  Em Catatau, a luneta e o cachimbo parecem formar a figura dessa différance, ao colocarem de lado a presença confortante de uma pura presença do sentido transcendental. O escrever do olhar de Cartésio é lido aqui como superação do fechamento do ver. É como se Cartésio só pudesse escrever vendo e ver escrevendo. O pensamento que não pode ser dissociado dos sentidos do “olhar” poderia assim dizer: “Olho, logo existo!”. Cartésio, tocado pelo olhar de Leminski, talvez preferisse dizer: “Que os sentidos sejam a crítica da minha razão”.

Nenhum comentário: