terça-feira, 12 de setembro de 2017

O mez da grippe, de Valêncio Xavier, carregando o mundo nas costas (Parte I)




Valêncio Xavier, em uma entrevista concedida a Joca Reiners Terron, ao avaliar a narrativa de O Mez da Grippe, lembrou do fascínio nele exercido pelo romance Conversa na Sicília, de Elio Vittorini, cujas fotografias de Luigi Crocenzi lhe ensinaram o papel que a imagem tem que ter no texto: “ser ao mesmo tempo uma coisa alheia, mas inteirada” (1999, p. 53). Entender a imagem como “coisa alheia, mas inteirada” talvez nos ajude a ler a ficção daquele que hoje é chamado de o Frankenstein de Curitiba e que poderíamos chamar também de trapeiro da memória, numa franca alusão à observação de Walter Benjamin lendo Charles Baudelaire. Dentre as definições para o vocábulo “alheio”, está aquilo que é de outrem, que é estrangeiro, estranho, isento, livre, distante, indiferente. Dessa maneira, estar alheio pressupõe um afastamento daquilo que é próprio do ser ao reivindicar uma enlevação para o que deve ser absorto ou extasiado. Por outro lado, essa coisa alheia a que se refere o autor é inteirada, ou seja, tornada ciente, informada, constituída num todo, no absoluto. O absoluto, aqui, é pensado em um sentido monadológico, tal como aparece na imagem de Atlas segurando o mundo nas costas e não como sinônimo do poder soberano, do monarca, do imperioso, daquilo que não padece de contradição. Assim, está mais para o jogo do que para a lei, fazendo lembrar das palavras de María Negroni, em seu Pequeño Mundo Ilustrado que, ao propor uma leitura de “A moralidade do brinquedo”, de Baudelaire, retoma a figura do jogo como epifania do absoluto: “Jugar: amurallarse, componer un cuento fantástico, buscar ese objeto único e imposible que podría permitir no solo saber todo, sino experimentarlo todo a la vez” (2011, p. 77).    

Página de Elio Vittorini

No caso das imagens de Valêncio Xavier, parece que estamos mais próximos do impróprio que é apropriado do que do “alheio” como sinônimo do ignorante, do não sabedor. Inteirar o alheio, fazendo do ready-made seu lance de dado, talvez seja um dos traços mais sintomáticos do jogo por ele proposto. Talvez pudéssemos pensá-lo, aqui, como um puzzle.
Georges Perec, no preâmbulo de “A vida modo de usar”, observa que a arte do puzzle não se caracteriza como uma mera soma de elementos que teríamos inicialmente de isolar e analisar, mas um conjunto, uma forma, uma estrutura. Nesse sentido, “o elemento não preexiste ao conjunto, não é nem mais imediato nem mais antigo; não são os elementos que determinam o conjunto, mas o conjunto que determina os elementos” (PEREC, 2009, p. 11). A colocação, ao sustentar que o conhecimento de um conjunto não é passível de ser deduzido do conhecimento separado das partes que o habitam, torna explícito o procedimento de confecção do livro, chamando a atenção para o fato de que a única coisa que importa é a possibilidade de “relacionar uma peça a outras peças”. Os sentidos depreendidos dessa configuração armada pelo jogo demonstram que a imagem não é nem nada nem total, como sugeriu Didi-Huberman, em Imágenes pese a todo (2004), ao mesmo tempo que fazem repercutir Aby Warburg, em seu projeto Atlas Mnemosyne, cujo procedimento de confecção está pautado pela montagem como princípio constitutivo do texto como tecido, como teia, como rede. Não se trata, necessariamente, de refutar a singularidade do objeto, em detrimento do conjunto, mas de perceber a montagem como método e forma de conhecimento. Não é à toa que Didi-Huberman tenha comparado o projeto de Warburg a um puzzle:

Mnemosyne es un objeto intempestivo en la medida en que se atreve, en la época del positivismo y del historicismo triunfante, a funcionar como un puzzle o un juego de tarots desproporcionados (configuraciones sin límites, número de cartas a jugar infinitamente variable) (2009, p. 438). 

A diferença é que na arte do puzzle comum, cada peça tem o seu lugar, sendo impossível armar um mosaico com uma outra disposição que não aquela prevista pelo corte da máquina, diferente de um Atlas que, por colecionar o mundo, permite também trocar de lugar seus objetos, remanejar posições, observar os intervalos, dando a ele novos sentidos e aos seus objetos outra potência. É o caso, por exemplo, das imagens do já citado Atlas Mnemosyne, que tiveram sua posição por Warburg modificada ao longo dos anos, dependendo do interesse do historiador, o que, por sua vez, já demonstra o jogo que subjaz na combinatória incessante das peças em questão.

         Página de O Mez da Grippe

É também como um atlas que Valêncio Xavier parece ter pensado sua ficção. O escritor observou que o O Mez da Grippe deveria ser lido como um jornal, em que “a pessoa olha a manchete, pula para a página de esportes, se detém na foto de uma atriz e já vai para o crime do dia, e assim por diante” (1999, p. 52-53), chegando a confessar ter descoberto que em seus livros cada página poderia ser lida isoladamente, como se ela fosse um texto completo. Essa espécie de mônada seria, assim, estranha a um quebra-cabeça convencional.

Página de O Mez da Grippe

Em O Mez da Grippe e outros livros de Valêncio, o puzzle entra em delírio, já que a ficção, por não delimitar-se a um corte de guilhotina previamente produzido, exige uma leitura mais complexa, ao passo que nos permite imaginar a conexão com outras peças que não apenas àquelas apresentadas no livro, como veremos. Dessa maneira, os desafios impostos pelo que gostaria de chamar aqui de um “puzzle incomum” se por um lado apresentam-se como mistérios-enigmas e não meramente como segredos – aproximando-se, assim, das imagens de W.G. Sebald -, por outro lado, e também por isso, reivindicam uma rede de imagens que lhe devolva força, fazendo-a funcionar a partir da fricção-ficção entre outros corpos. Estamos diante de imagens que, sabendo-se imagens, contaminam-se ao entrar em contato com a rede, aquela máquina que, ao produzir o absoluto, consegue carregar o mundo nas costas. A referência, aqui, é à apresentação escrita por Didi-Huberman da exposição “Atlas – Como levar o mundo nas costas”, ocorrida no Museu Reina Sofia, na Espanha, entre novembro de 2010 e março de 2011. Nela, o historiador da arte relembra que o titã chamado Atlas, junto com seu irmão Prometeu, quis enfrentar os deuses do Olimpo para tomar o poder deles e dá-lo aos homens. Ambos foram castigados. Prometeu, condenado a ter seu fígado arrancado por um abutre e Atlas, obrigado a sustentar com seus ombros o peso da abóboda celeste inteira, fadado, assim, a conviver com um paradoxo: o prazer de um conhecimento infranqueável e uma sabedoria desesperante. Didi-Huberman (2011) lembra que o nome inspirou uma forma visual de conhecimento, ou seja, um conjunto de mapas geográficos reunidos em um volume, convertendo-se em um gênero científico a partir do século XVIII e desenvolvendo-se consideravelmente no século XIX e XX.

              Página de O Mez da Grippe

No caso de Warburg, o modelo do Atlas científico tradicional dá lugar a uma espécie de constelação, que nos permite desenvolver relações impensadas e redes inimaginadas: “Fazer um atlas é reconfigurar o espaço, redistribuí-lo, desorientá-lo em suma: deslocá-lo ali onde pensávamos que era contínuo, reuni-lo ali onde supúnhamos que houvesse fronteiras” (DIDI-HUBERMAN). Mesmo tendo um projeto bastante diferente do de Valêncio, não podemos nos furtar de perceber que em ambos os casos (Valêncio-Warburg) estamos diante de uma espécie de uma máquina de produzir imagens, de um aparelho de tempos heterogêneos produzidos a partir do alheio e do absoluto.

Atlas

Seguindo a colocação de que o trabalho imagético de Valêncio está pautado por uma dialética, a do alheio e do absoluto, talvez fosse possível imaginar não apenas os gestos que oscilam entre a repetição e a diferença, entre a memória e o esquecimento, depreendidas de seus jogos de armar esse “puzzle incomum” - ou talvez um baralho -, mas também aqueles que inserem o livro numa teia cujos fios parecem ligá-lo a uma tradição imagética que percorre a arte produzida no Paraná desde o simbolismo, passando pelo trabalho de Poty, fiel parceiro criativo de Valêncio, e por revistas literárias contemporâneas editadas no Estado.

Susana Scramim, ao analisar o procedimento de montagem de tempos heterogêneos nos bestiários de Wilson Bueno, já havia chamado a atenção para o fato da visualidade do trabalho do autor poder ser lida também à luz de sua convivência com a forte prática do trato com as imagens da literatura produzida no Paraná, uma prática que vai da “intensa atividade dos poetas simbolistas até as interessantes revistas ali editadas, nas quais a visualidade contribui e constitui as próprias revistas” (2007, p. 136). É o caso, por exemplo, da revista simbolista Pallium, da modernista Joaquim, das contemporâneas Medusa, Coyote, Oroboro, entre outras. Tavez fosse possível inserir Valêncio nessa comunidade a que se refere Scramim. Para pensar nessa relação pautada pela imagem dialética que brota do contato e do contágio do escritor-cineasta com uma tradição das imagens - imagens também contagiam e contaminam - recorro a uma figura que está ligada não só à temática da ficção do autor de O Mez da Grippe e outros artistas do Paraná, como também à própria noção de escritura. Falo da morte, falo da caveira.

Um comentário:

Herick disse...

Opa, com licença, estava vasculhando a internet, caçando não sei o quê do Valêncio Xavier, e acabei esbarrando em teu blog. Aliás, bonito texto. Mas o que me trouxe aos comentários (defeito meu) foi uma destas citações de Roland Barthes que você fixou na lateral do blog; essa que começa com "O poder, seja qual for, por ser violência, nunca olha;". Você pode me dizer a referência?

Obrigado desde já.