terça-feira, 28 de novembro de 2017

Chimamanda Ngozi Adichie: É coisa de preto!





Na segunda-feira (20), em todo o território nacional, comemorou-se o Dia da Consciência Negra, que acontece concomitante ao Dia Nacional de Zumbi dos Palmares, devido à possível data de sua morte. Aproveito o momento para perguntar aqui quais são os verdadeiros motivos que temos para comemorá-lo. À força do afrodescendente e à alta qualidade da cultura negra em nosso país – fundamentais para a nossa história, para nossa sensibilidade nacional, para nosso presente e futuro – contrapõe-se o racismo velado ou explícito ainda ativo na mediocridade daqueles a quem falta o bom senso. Há alguns dias, por exemplo, redes sociais divulgaram um vídeo no qual um famoso apresentador da Rede Globo, em uma gravação realizada durante as eleições presidenciais dos Estados Unidos - ao irritar-se com o som de buzinas que atrapalhavam a matéria -, cochicha a seu companheiro de trabalho: “É coisa de preto!”. O vídeo viralizou e a emissora acabou afastando o jornalista. As expressões racistas são tão recorrentes ainda no nosso dia a dia que é bem possível que os leitores deste texto já tenham ouvido muitas vezes durante sua vida a frase “É coisa de preto!”. E enquanto ela for proferida, estando consciente ou inconscientemente atravessada por intenções racistas, uma margem da escravidão não terá terminado. Prefiro inverter o seu sentido para celebrar a vida e a força dos negros e de sua cultura entre nós.



É coisa de preto a obra de Machado de Assis, Cruz e Sousa e Lima Barreto. Os três maiores escritores do final do século XIX e início do século XX, no Brasil, eram negros, o que ironicamente desmonta as teorias racistas vigentes naquele período. É coisa de preto a Geografia de Milton Santos, bem como a arte de Emanoel Araújo. É coisa de preto a literatura de Carolina Maria de Jesus e o inventivo talento musical de Pixinguinha, Donga, João da Baiana, entre tantos outros. O samba na casa da Tia Ciata era coisa de preto. A escultura barroca de Aleijadinho também. O Quilombo de Zumbi era coisa de preto. Todos os outros Quilombos também. A prosa de Joel Rufino dos Santos é coisa de preto, assim como a poesia de Elisa Lucinda, ou os textos de Conceição Evaristo. A música de Caymmi, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Luiz Melodia, Djavan, Jair Rodrigues, Wilson Simonal, é coisa de preto. O futebol de Leônidas da Silva, Amarildo, Canhoteiro era coisa de preto também. A capoeira do Mestre Pastinha. O cinema de Milton Gonçalves e Grande Otelo. É coisa de preto a voz de Jamelão, as músicas de Lupicínio Rodrigues, e de Nelson Cavaquinho. O sagrado de Mãe Menininha do Gantois, Mãe Senhora e Mãe Stella. É coisa de preto a poesia de Vinícius de Moraes, que se considerava o branco mais negro do Brasil. O trabalho de Abdias Nascimento, Beatriz Nascimento, Jurema Werneck é coisa de preto. A performance musical de Paulo Moura e Johnny Alf também. Poderia preencher páginas e páginas aqui. Faltaria espaço, então, celebramos todos com um salve à negritude brasileira! Principalmente, àquela negritude anônima que desde as senzalas até os trabalhos contemporâneos menos reconhecidos atua bravamente no cotidiano desse imenso Brasil.




Recentemente, descobri uma jovem escritora africana que muito me encantou. Falo de Chimamanda Ngozi Adichie. Ela ficou conhecida também por alguns vídeos que circulam na internet, nos quais fala sobre questões políticas de grande importância. Em um deles, discorre sobre os perigos de contarmos apenas uma versão da história. Nele lamenta, por exemplo, a ausência de personagens negras em contos de fadas e de heróis em geral.




Gostaria de usar o espaço que me resta para fazer uma referência ao livro de contos “No seu pescoço”, de Adichie, traduzido e publicado recentemente pela Companhia das Letras. No conto que dá nome à coletânea, a escritora relata a vida de uma jovem nigeriana de Lagos que vai tentar a vida universitária nos Estados Unidos. Um aspecto curioso do conto é o fato dele ser narrado em segunda pessoa, mas retratando experiências da primeira pessoa, como se o narrador escrevesse sobre si como sendo um outro, o que demonstra possivelmente um determinada crise de identidade enfrentada pelo ser estrangeiro. Em meio ao choque cultural, social e econômico que Akunna – esse é o nome da personagem – encontra na América, a jovem sente na pele o poder que a pele tem para torná-la vítima de um racismo atroz. A começar pelo desconforto que vivencia em uma faculdade comunitária quando suas colegas olham boquiabertas para o seu cabelo, perguntando se ele ficava de pé quando ela soltava as tranças. Ao invés de responder, Akunna sorria de um jeito forçado. Depois de sofrer tentativas de abuso sexual na casa onde estava hospedada, muda-se para uma cidade que não possuía universidade comunitária. Lá, a jovem trabalha muito por uma remuneração baixíssima e se aproxima de um jovem americano que não a olha como um ser exótico, ao contrário da maioria das pessoas. Com ele se relaciona, mas cedo percebe a distância que marcava fortemente o encontro entre uma negra e um branco: “Pela reação das pessoas, você sabia que vocês dois eram anormais – o jeito como os grosseiros eram grosseiros demais e os simpáticos, simpáticos demais (...)”. Os homens e mulheres brancos diziam “Que casal bonito”, “num tom alegre demais, alto demais, como se quisessem provar para si próprios que tinham a mente aberta”.




Chimamanda Ngozi Adichie é uma escritora feminista que tem levado para seus livros uma intensa reflexão sobre o racismo. Tem, nesse sentido, feito um barulho na literatura contemporânea. Ao invés de lamentar esse barulho, dizendo que é “coisa de preto!”, prefiro saudá-la como uma das grandes revelações da atual ficção nigeriana. A sua arte é também e com muito orgulho “coisa de preto”!       

publicado originalmente no jornal Caiçara, em União da Vitória, 
em 25 de novembro de 2017 

Nenhum comentário: