sábado, 18 de novembro de 2017

Matilde Campilho: Salvando momentos





Lembro de ter chorado, copiosamente – e a expressão não é hiperbólica –, quando assisti, há uns quinze anos, à sequência final de Cinema Paradiso (1988), filme do italiano Giuseppe Tornatore. Recentemente, emocionei-me profundamente lendo o último capítulo do romance “Vida e Proezas de Aléxis Zorbás”, do grego Nikos Kazantzakis. Em ambos, a emoção suscitada parece brotar de uma certa beleza que não sei explicar. Não costumo me derramar em lágrimas diante de qualquer dor ou estímulo artístico, mas, às vezes, acontece. Nem sempre as emoções que a arte nos proporciona são sublimes. O susto, o horror, o medo e a raiva, por exemplo, fazem parte do universo artístico que também nos aprimora e que nos move para dentro e fora de nós mesmos.  A literatura que mais me encanta é aquela que deixa em meu ser cicatrizes. Diante da boa arte, transformo-me, nunca mais restando em mim o mesmo que sou. E a marca que trago comigo é o resultado desse contato. São coisas que nos constroem. Ando repleto, assim, de cicatrizes. O crítico e escritor José Castello escreveu que a literatura é uma “máquina de perfuração do espírito. Nele deixa marcas contundentes e feridas que nunca cicatrizam por completo (...) Dor interminável, que se transforma em uma iluminação”. E a iluminação nos salva.
A jovem poeta Matilde Campilho - nascida em Cascais, em 1982 -, uma das grandes revelações da poesia portuguesa, acredita que a arte pode não salvar o mundo ou uma vida, mas salva momentos. Nos últimos cinco minutos de Cinema Paradiso, ou nas últimas dez páginas de Zorbás, a arte salvou um momento meu e por causa disso minha vida ficou mais bela e plena.  Em uma entrevista concedida ao jornalista Eric Nepomuceno, Matilde defendeu que a arte fraqueja os joelhos quando é preciso, tira a atenção da dor em alguns momentos e, em outros, leva a nossa atenção para a dor, porque, às vezes, estamos distraídos para perceber seu real valor. Por isso escrevi que as emoções propiciadas pela arte nem sempre são sublimes. Kafka, por exemplo, não me trouxe conforto algum e, no entanto, saí de sua leitura positivamente transformado.  


Tenho me emocionado lendo os poemas do livro “Jóquei”, de Matilde Campilho, lançado no Brasil em 2015, um ano depois de vir a lume em Portugal. Principalmente quando os leio em voz alta, tentando imitar seu lindo sotaque, tal como ele pode ser ouvido em vídeo-poemas disponibilizados pela escritora no Youtube. Poemas portugueses lidos em voz alta pedem uma leitura espirituosa. Chego a pensar, às vezes, que o sotaque que simulo não chega a ficar tão falso quanto aquele de Caio Castro, na novela das 18h, a imitar D. Pedro I.



Admiradora de poetas estrangeiros como Antonio Cisneros, Octavio Paz, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, e dos conterrâneos Antonio Franco Alexandre e Fernando Dias Pacheco, Matilde se apaixonou pelo Brasil e aqui morou durante alguns anos. Depois de sua participação na Flip (Feira Literária de Parati), em 2015, a poeta se tornou mais conhecida no Brasil. Ler seus poemas é como passear pelo Rio de Janeiro de seu coração, porque ali toda a cidade é poesia: “Hoje se eu pudesse / eu voltava à cidade / só pra beijar / a cidade na boca”, diz Campilho no poema “Eu já escuto teus sinais”, no qual faz referências à famosa canção de Alceu Valença. O amor pela cidade parece ser suplantado apenas pelo amor por uma pessoa, que paira como interlocutor e como fantasma durante boa parte do livro. E essa comunhão com o outro é também uma comunhão com a vida. E para a poeta ela é sempre mais importante que razão, a ciência, a política ou a matemática. No poema “Dia de São Tomé”, ela escreve: “Com partido político / dá sempre zero a zero / e vantagem do serviço / com partido alto / dá sempre dez a dez / e vantagem do amor / você levou meu samba”. Em outro poema, um sentimento semelhante: “Aprenderei a amar as casas / quando entender que as casas / são feitas de gente / que foi feita por gente / e que contém em si a possibilidade / de fazer gente”. Trata-se de perceber a natureza da vida como algo acima do cálculo. O tema reaparece no poema “A primeira hora em que o filho do sol brincou com chumbinhos”: “A matemática não é difícil se você comparar tudo ao aparecimento de um cardume”. 



No poema “Veleiro”: “A filosofia é uma matemática muito esclarecedora e qualquer dia ainda vai salvar o mundo (...) No que depender do amor, para além da paixão e para além do desejo: ninguém mais se afogará”. A poeta vai passeando pela vida e guardando momentos: as mãos do ser amado desenhando uma dança, o cheiro da maresia, o rosto doce de Antonio por ela fotografado (talvez o poeta Antonio Cicero), os lábios de Dadá pintados de vermelho, as folhas crescendo no vaso, o “brilho natural que diariamente resplandece no peito da terra”, enfim, a vida acontecendo. A poesia, assim, salva o instante da vida e a vida de nossos instantes.
Em uma das passagens do poema “Notícias escrevinhadas na beira de estrada” a poeta escreve que não é de choro fácil a não ser quando pensa em determinados milagres que ainda não aconteceram. Ela olha com atenção para a vida e conclui que “a raça humana é toda brilho”. Ao salvar esse momento talvez chore, como eu, ao assistir ao final de Cinema Paradiso. E assim a arte vai salvando momentos.


 Publicado originalmente no jornal O Caiçara, 
em 18 de novembro de 2017,
União da Vitória

Nenhum comentário: