sábado, 3 de fevereiro de 2018

A visita de Che Guevara a Curitiba nos anos 60



Em 1966, antes de viajar para a Bolívia onde foi assassinado em seu projeto revolucionário, Che Guevara passou alguns dias em Curitiba e no norte do Paraná. Durante suas andanças pelo Estado, o guerrilheiro, que já estava se transformando em mito, carregou consigo uma Bíblia na qual teceu anotações cujo conteúdo nos é desconhecido. A revelação é no mínimo curiosa, já que o líder era um socialista convicto. Décadas depois, o livro se transformaria em objeto de procura e de culto entre ex-militantes da esquerda e colecionadores de obras raras.
A visita de Guevara, que nunca foi confirmada oficialmente, é mote para o enredo do romance “A Bíblia do Che” (Companhia das Letras, 2016), de Miguel Sanches Neto, autor de uma produção literária que nos últimos anos tem caminhado para um alargamento das fronteiras entre a história e a ficção.

Che disfarçado


"1966, sete horas e meia de viagem de São Paulo à Curitiba. O ônibus de Guevara chega atrasado na Rodoviária velha, na João Negrão. Seu contato não o esperava na plataforma conforme combinado. Nos ônibus só se podia fumar cigarros, pensando no que fazer Guevara acende um charuto cubano, com o anel trocado para não denunciar sua origem. Em pé, a maleta entre as pernas, esperou para ver se o contato aparecia. De terno e gravata, óculos, sem barba, e com os cabelos tingidos esbranquiçados mais parecia um pacato burguês de meia idade do que o jovem e temido guerrilheiro"

(Valêncio Xavier, Gazeta do Povo, 09 de março de 1997)

Em “Um amor anarquista”, por exemplo, o autor recria um triângulo amoroso entre moradores da Colônia Cecília (Palmeira-PR), que foi uma primeira tentativa de comunidade anarquista no Brasil do final do século XIX. Em “Chá das 5 com o vampiro”, são reveladas as intimidades do escritor Geraldo Trentini, uma alusão ao escritor Dalton Trevisan, que fora amigo de Miguel. O livro rendeu uma série de polêmicas, e inclusive uma possível resposta do “vampiro”, em um texto ácido que integra uma de suas publicações. O romance trata, em certo sentido, das vaidades que acompanham os literatos no mundo das letras. Em “A máquina de madeira”, narra-se a trajetória do Padre Francisco João de Azevedo, precursor na invenção da máquina de escrever. A narrativa é pretexto para o autor refletir sobre a formação da identidade de nosso país e sobre os processos de modernização no final do século XIX. Em “A segunda pátria”, reconstitui-se a cidade de Blumenau durante o advento da Segunda Grande Guerra. O protagonista, Adolpho Ventura, é um negro que sofre com o racismo e a ascensão do nazismo em Santa Catarina. Em uma das passagens mais curiosas do livro, Hitler visita o Brasil, episódio que permite a Sanches Neto, na liberdade da ficção, inscrever novos sentidos para uma história tal qual poderia ter sido, como faz Tarantino em “Bastardos Inglórios”.

Miguel Sanches Neto

Em todos esses romances percebe-se uma tendência à metaficção historiográfica, um conceito criado e discutido por Linda Hutcheon que pode ser encontrado em obras que tencionam os limites entre a literatura e a história, misturando assim realidade e ficção, o que vemos com recorrência na obra, por exemplo, de Jô Soares. É o que acontece também em “A bíblia do Che”.
O episódio que dá origem ao livro pode não ser verídico, mas é verossímil (documentos oficiais chegaram a abordar a viagem de Che ao Paraná em plena ditadura militar), e tem alimentado o nosso imaginário. Miguel Sanches Neto não foi o primeiro a escrever literariamente sobre o assunto. Em 2003, Valêncio Xavier publicou na “Folha de São Paulo” um conto (aliás, apresentado anteriormente na Gazeta do Povo nos anos 90) que tem como tema a mesma visita secreta. Valêncio, que também era cineasta, sonhava em filmar o argumento. 
“A bíblia do Che” tem como narrador um personagem já conhecido de Miguel, que já aparece no romance “A primeira mulher” (Record, 2008), o professor Carlos Eduardo Pessoa. Alguns anos depois de sua primeira aparição, Pessoa, agora ex-professor, vive recluso em uma sala comercial do edifício Asa, no centro de Curitiba e é convidado a uma nova aventura, envolvendo a procura da Bíblia do Che em meio a uma trama policialesca que conta com empresários corruptos e várias perseguições.
O protagonista envolve-se com Celina, a jovem e sonhadora viúva de um lobista envolvido em um esquema de desvio de verbas de empresas estatais em uma rede de corrupção que integra uma série de partidos. Antes de sua morte misteriosa, o lobista passa a ser investigado em uma megaoperação. Qualquer relação com a Lava Jato não é mera coincidência. À medida que Carlos Eduardo Pessoa procura a Bíblia, uma relíquia, investiga a morte de Jacinto Paes, o lobista que o contratou para encontrá-la.
Celina passa a ser perseguida pelos possíveis assassinos de seu marido e a narrativa acaba migrando para a Bolívia, na localidade onde Che viveu seus últimos dias. Mais do que isso é bom não adiantar. Celina é peça-chave.




Che morto na Bolívia (1967) e "O Cristo morto", de Andre Mantegna (séc. XV)
O mito se consolida


Miguel Sanches Neto se inspira na política contemporânea, bem como na crise da esquerda, para refletir também sobre as ruínas de uma série de ideais revolucionários que não morreram, mas que religiosamente parecem agonizar, enquanto procuram sobreviver em tempos de crise.

Texto publicado originalmente no jornal Caiçara (União da Vitória PR) em 03 de fevereiro de 2018.

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