sábado, 6 de outubro de 2018

Bernardo Carvalho e o horror da guerra e do amor





A violência é o eixo em torno do qual giram as duas grandes questões abordadas por Bernardo Carvalho em seu mais novo romance. Tanto a relação amorosa entre dois homens (ou três, já que estamos diante de um triângulo amoroso), quanto conflitos envolvendo o terrorismo contemporâneo estão atravessados pela perversidade em “Simpatia pelo Demônio”, lançado pela Companhia das Letras, em 2016.
Considero Bernardo Carvalho um dos escritores mais importantes de sua geração. Particularmente, um dos cinco prosadores brasileiros da atualidade que mais têm chamado a minha atenção nos últimos anos. Entre um curioso livro de contos intitulado “Aberração” (1993) e os mais recentes “O Filho da Mãe” (2009) e “Reprodução” (2013), o autor produziu uma série de romances que o consolidaram entre os melhores da literatura brasileira contemporânea. Refiro-me a pérolas como “Nove Noites” (2002) e “Mongólia” (2003) - fundamentais para quem deseja conhecer sua obra -, bem como outros títulos: “Onze” (1995), “Os Bêbados e os Sonâmbulos” (1996), “Teatro” (1998), “As iniciais” (1999) “Medo de Sade” (2000) e “O sol se põe em São Paulo” (2007) ("Onze", "As iniciais" e "O sol se põe em São Paulo" ainda não tive a oportunidade de ler, estão na fila). Bernardo Carvalho é também jornalista da Folha de São Paulo, onde escreve sobre arte em geral. Parte de sua produção jornalística está reunida no livro “O mundo fora dos eixos” (2005), composto por crônicas, resenhas e demais ficções.  


 “Simpatia pelo Demônio” possui um enredo complexo e cheio de nuances, como é comum na obra do autor. O livro apresenta a história de Rato, funcionário de uma agência humanitária nos Estados Unidos, que é convocado para viajar até uma zona de guerra para entregar o resgate para um grupo terrorista com a finalidade de libertar um refém. A primeira parte da trama é escrita com o ritmo tenso e veloz que faz lembrar os filmes de guerra passados em alguma zona do oriente como a Síria ou o Iraque. No hotel em que se hospedara, Rato vivencia um ataque terrorista que fará contraponto a um outro tipo de violência, refiro-me à perversidade de uma relação amorosa que será o foco do romance. O protagonista, que escrevera uma tese sobre a violência em zonas de conflito, acaba sofrendo bem mais com as adversidades do amor. Vivendo uma crise no relacionamento com a esposa, Rato se apaixona por um neurocientista mexicano, o Chihuahua, também chamado no livro de raposinha. Esta personagem, profundamente narcisista, seduzirá o protagonista e com ele viverá um caso doentio que, aos poucos, revelará ao protagonista a perversidade que pode morar no amor, com seus jogos cruéis e repletos de mentiras. Chihuahua vive com um ator, chamado no romance de Palhaço, uma personagem que contribuirá para fazer do livro o palco de uma zona de conflito não apenas social, mas também amoroso.
Após a leitura do livro, uma espécie de parábola sem moral (os personagens com nomes de bichos sinalizam para essa perspectiva), fica clara a proposta de Bernardo Carvalho que é a de, em tempos de guerra, relacionar a violência social - centrada na questão do terrorismo contemporâneo - a uma violência muito mais sutil, mas não menos agressiva que é a violência do amor. Tal violência não está ligada apenas à agressão física – que por sinal aparece nas últimas páginas do livro, constituindo-se, também como um ato de barbárie -, mas principalmente à relação cruel entre o desejo e a perversão que – inspirada, por exemplo, no pensamento de Georges Bataille, aprofunda uma reflexão sobre a dimensão monstruosa do amor. Uma questão que poderia ser traduzida pela seguinte pergunta: O que fazer depois da catástrofe de um amor que nos destrói?

São Cristóvão Carregando o Menino Jesus, Hieronymus Bosch, 1490, óleo sobre tela, 113 x 72 cm. Museum Boijmans van Beuningen.
A capa do livro é um detalhe do quadro. Em um dos capítulos do livro o narrador analisa o quadro relacionando-o com o enredo do livro

Rato vive um paradoxo no livro, pois ao chegar aos cinquenta anos, com a falência de seu casamento, descobre que o novo amor lhe dá vida à medida que lhe tira o equilíbrio, a ordem, a razão. A personagem precisa do amor de Chihuahua para continuar viva, mas é esse mesmo amor que, com seus jogos mortais, lhe destrói o ego e o coração. Aliás, o autor, em uma entrevista, observou que a personagem Chihuahua tem para ele muito a ver com o mundo de hoje, com o jeito como nos relacionamos com o próximo. Ou seja, com a incapacidade de nos relacionarmos com o outro. Chihuahua alimenta o ego de Rato para logo depois diminui-lo, numa espécie de jogo animal no qual o rato é brinquedo de uma raposa. Segundo Bernardo Carvalho, o Chihuahua tem uma relação narcisista com o mundo, uma relação na qual o outro não existe de fato. Brotam daí todas as manipulações possível que podem alimentar uma relação doentia.
Assim como o livro de Bernardo Carvalho aborda as desrazões do amor, como palco de uma espécie de conflito bélico, acaba fazendo também o inverso ao abordar as desrazões da guerra, como palco de uma fé ou de um amor completamente irracional. O autor permanece, assim, profundamente contemporâneo. Como em outros livros seus, as identidades são postas em suspensão, e as estabilidades caem por terra, em um jogo no qual os narradores ou sujeitos da narrativa não são senhores de si, sendo apresentados com seres desterritorializados ou títeres de um teatro criado por eles mesmos.

Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), em 06 de outubro de 2018.

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