quarta-feira, 17 de outubro de 2018

“Machado”, o romance-ensaio de Silviano Santiago




“Machado”, o mais recente livro de Silviano Santiago, ganhador da 59ª edição do prêmio Jabuti, faz jus ao reconhecimento das qualidades de seu trabalho crítico e literário. O escritor, aliás, neste trabalho borrou com propriedade as fronteiras entre a crítica e a ficção. Com uma epígrafe elucidativa de Jean-Paul Sartre, acerca de seu estudo sobre Flaubert, a obra demonstra o quanto um trabalho ensaístico pode ganhar com uma certa mistura entre a ciência e a arte: “Escritor é sempre um homem que escolheu mais ou menos o imaginário: precisa de certa dose de ficção. No que se refere a mim, encontro-a no meu trabalho sobre Flaubert que, aliás, pode ser considerado um romance”. É exatamente nesse sentido que deve ser lido o livro de Silviano Santiago. É um estudo sobre a obra de Machado de Assis – ou melhor uma aula ou um curso sobre a literatura do Bruxo do Cosme Velho -, mas é principalmente um romance no qual o romancista Silviano forja para o leitor os últimos anos de vida daquele que, sem dúvidas, é um de nossos maiores escritores.

Talvez a última foto
Machado de Assis na revista argentina 'Caras y Caretas', de 25 de janeiro de 1908(Foto: Caras y Caretas/Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional de España)

O ensaio de Silviano Santiago é profundamente criativo ao inventar seus modelos de leitura. De um lado, apresenta uma série de ilustrações que o ajudam conceber um procedimento de análise a partir de recortes de jornal, fotografias da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX, charges, anotações do autor de “Dom Casmurro”, etc. De outro lado, encena seu olhar sobre a obra de Machado a partir de uma ideia de teatro, como se a crítica fosse uma espécie também de encenação. Depois de apresentar uma fotografia de Félix Nadar, de 1854, na qual vemos um Pierrot operando uma máquina fotográfica, Silviano escreve que “o mistério da escrita artística se revela tanto na escolha da pessoa a ser imitada quanto da decisão de representá-la como já sendo parte integrante do corpo do escritor”. 


Félix Nadar - Pierrot, o fotógrafo, de 1854

Como na arte teatral, a arte literária (e tome-se aqui a arte da crítica também), ao representar o sujeito que escreve, está representando um outro também. Se por um lado essa arte ensaística formulada por Silviano está próxima do teatro - ao comparar inclusive Machado com Buster Keaton -, por outro está também próxima do cinema. Para falar da relação entre Machado, José de Alencar e Joaquim Nabuco, o crítico apela para um recurso cinematográfico. Diz ele: “Prefiro descrever com a trucagem usada na montagem cinematográfica os encontros desencontrados das figuras. Esfumam-se três fotos acronológicas e distintas num único e intrigante fotograma. A imagem do abalroamento das sensibilidades afins nos anos 1870 se enriquece com o súbito aparecimento do rosto de Joaquim Nabuco a se sobrepor aos rostos fraternos de Alencar e de Machado (...)”.


Mário de Alencar

“Tudo só vivido seria monótono; tudo só imaginado seria cansativo”. É assim que Silviano Santiago resolve situar sua escritura, no limiar entre o documental e o imaginado, entre o analítico e o literário. Machado é objeto de estudo e ao mesmo tempo protagonista do livro de Silviano que, por sua vez, se apresenta como personagem nesse criativo processo ensaístico: “As estradas das respectivas vidas perdem as balizas cronológicas para que, em rebeldia à sucessão dos anos e dos séculos, se transformem num único caminho, transitável por ele, o protagonista Machado, e por mim, o personagem Silviano (...)”. Aliás, Silviano nasce no mesmo dia em que morre Machado, só que quase 30 anos depois, em 29 de setembro.
No seu romance-crítica, ou melhor na sua crítica-romanesca, Silviano ensaia uma ficção a partir do estudo das últimas cartas que Machado de Assis trocou com seus amigos, em especial Mário de Alencar, que além de possuir as mesmas iniciais de Machado, M. de A., sofria como ele de epilepsia, daí as crises de ambos serem um dos assuntos recorrentes das cartas trocadas por eles. Machado acompanha a polêmica eleição do amigo – que era filho de José de Alencar – para a Academia Brasileira de Letras e os dois colegas trocam, por meio da correspondência, receitas medicinais com a finalidade de amainar suas crises abruptas. Uma delas, aliás, é retratada pelo fotógrafo Augusto Malta, em setembro de 1907, no cais Pharoux, quando Machado - ao recepcionar Paul Doumer, que vinha da Europa -, sofre um ataque em público.

Crise de Machado no Cais Pharoux
Foto de Augusto Malta

A agonia que acompanha Machado é semelhante àquela que segue o Rio de Janeiro antigo à beira da modernização que se intensifica na primeira década do século XX, com a reforma urbana levada à cabo pelo prefeito Pereira Passos. A cidade de Machado parece morrer junto com ele, em meio a espasmos convulsivos de uma crise atroz.
Enquanto o correspondente Mário de Alencar insiste nas suas receitas homeopáticas, Machado desconfia de seus efeitos e insiste que o amigo deve se consultar com o Dr. Miguel Couto, seu médico de confiança. O bruxo acredita no poder farmacológico de algumas substâncias para minimizar as crises e chega a indicar algumas para Alencar. O romancista crê na ciência, mas diante da arte da escrita desconfia do cientificismo literário presente no naturalismo de Zola e ridiculariza a nova moda – como podemos perceber em textos como “O alienista”.

Silviano Santiago

É interessante perceber como Silviano Santiago relaciona a questão da doença de Machado com sua produção literária, observando que a ideia de convulsão está no cerne de sua obra. Segundo ele, a principal eficácia da atitude crítica de Machado de Assis não está no compromisso da escrita romanesca com a história social que lhe é contemporânea, a do liberalismo econômico. Sua poética está fincada na farsa. Na comicidade do “discurso sem pé nem cabeça, no absurdo que se revela verdadeiro por estar colado à desconstrução do saber humano pelo gestual impassível do sofredor e pelas caretas abusivas que ele arma lá dentro, no íntimo do artista, pelo descalabro nervoso que torna o corpo convulsivo, involuntariamente.” Silviano encerra o livro fazendo uma bela análise da relação entre as crises de Machado e o quadro “Transfiguração”, de Rafael Sanzio, obra, aliás, analisada por Stendhal, de quem Machado era fiel leitor. Nunca Machado nos pareceu tão forte e frágil ao mesmo tempo.

Transfiguração, de Rafael Sanzio

Caio Ricardo Bona Moreira

Publicado também no jornal Caiçara, de União da Vitória, em 17 de novembro de 2018.


Nenhum comentário: