terça-feira, 7 de maio de 2019

Por que se lê? O livro que lemos, o livro que nos olha







(Camus, Drummond, Garcia Marquez e Mário de Andrade lendo)


Uma pessoa pode ler um livro porque alguém indicou (o que leva uma pessoa a indicar uma obra para alguém poderia ser tema de outro texto), uma pessoa pode ler um livro porque a capa é bonita (ela, por sinal, pode ser até melhor do que um livro, alguns dos melhores que li, no entanto, tinham capas horríveis), uma pessoa pode ler um livro porque está buscando conhecer a cidade retratada por um autor (o que pode ser muito bom tanto quanto surpreendente, apesar de que a cidade de fato às vezes tem pouco a ver com a cidade da foto), uma pessoa pode ler um livro porque está querendo fazer hora (essas leituras são deliciosas, já que a literatura é uma das melhores maneiras de se perder tempo), uma pessoa pode ler um livro porque está querendo aprender algo sobre alguma coisa (leitura quase sempre frustrante, lendo se aprende objetivamente pouquíssimas coisas, a não ser aquelas que vão nos tornando aos poucos e silenciosamente em quem somos), uma pessoa pode ler um livro porque está precisando fazer um resumo (talvez as piores leituras sejam essas, resumir é uma espécie de egoísmo, uma forma de dar sempre menos do que recebemos), uma pessoa pode ler um livro porque está precisando impressionar alguém (já leu tal obra? Esta é uma pergunta geralmente feita apenas depois que se lê quando se quer passar de gabola, pois os verdadeiros leitores são uns desavergonhados ou o contrário), uma pessoa pode ler um livro porque está precisando reduzir a pena (quando a leitura pode ser verdadeiramente útil, é uma ótima maneira de recuperar o tempo que se gasta lendo: um dia de liberdade por livro lido), uma pessoa pode ler um livro porque está querendo ver se ele é melhor do que o filme (ótima forma de ler duas obras diferentes mesmo que falando sobre a mesma coisa; ler o livro antes ainda me parece mais interessante, apesar de que Macunaíma, para mim, não tem outro rosto além daquele de Grande Otelo, às vezes o filme é melhor, mas é raro), uma pessoa pode ler um livro porque está precisando preparar uma aula (professores-leitores são os piores, trocam todos os seus projetos e desejos por umas milhares de páginas lidas e geralmente só gostam de falar sobre os livros que amam), uma pessoa pode ler um livro porque está precisando divertir-se (definitivamente, a melhor leitura: Leio porque é bom! Porque me dá prazer!), uma pessoa pode ler um livro porque está precisando buscar uma citação para a sua fundamentação teórica (2019, p. 01), uma pessoa pode ler um livro porque está querendo passar um tempo em Passárgada (ler é uma das únicas formas, para além do uso das drogas, de viver um outro mundo – por pior ou melhor que ele seja na ficção -, de imaginar outras realidades, ou tentar de alguma forma concebê-las, sem com isso morrer de tédio ou de overdose), uma pessoa pode ler um livro porque gostou do seu cheiro (uma variedade de papeis e tintas geram odores sutis e convidativos aos apreciadores mais sensíveis, ainda não inventaram uma ciência para estudar isso; Ruben Darío perfumava alguns de seus livros de poesia antes de vendê-los), uma pessoa pode ler um livro porque está precisando sobreviver (há casos emblemáticos de livros que salvam uma vida em tempos de adversidade, como nas guerras que acontecem dentro da gente, ou mesmo em conflitos sociais, tempos de homens partidos em ambos os casos), uma pessoa pode ler um livro porque se sentiu misteriosamente atraída por ele (a literatura pode ser uma forma de bruxaria, fazendo suas mandingas de amarração, há livros que nos enfeitiçam pela primeira frase: “Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne”, assim começa o clássico de Nabokov), uma pessoa pode ler um livro porque gostou do título, (“A Insustentável Leveza do Ser”, “Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres”, “5 Bonecas de Olhos Vazados”, “O amante”, “O Amor nos Tempos de Cólera” etc), uma pessoa pode ler um livro porque sente uma necessidade orgânica de lê-lo (a musculatura ocular poderia se viciar no movimento de ir e vir que toda leitura pressupõe?). Vemos nossos livros, mas certamente eles também nos veem. Lemos nossos livros, mas certamente eles também nos leem. O escritor português Valter Hugo Mãe escreveu no texto Bibliotecas: “Os livros têm olhos para todos os lados e bisbilhotam o cima e o baixo, a esquerda e a direita de cada coisa ou coisa nenhuma. Nem pestanejam de tanta curiosidade. Podemos pensar que abrir e fechar um livro é obrigá-lo a pestanejar, mas dentro de um livro nunca se faz escuro. Os livros querem sempre ver e estão sempre a contar”. Pode-se ler por muitos outros motivos, todos eles dignos e merecedores de atenção.

Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), em 05 de maio de 2019

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