Em
2019, Wilson Bueno completaria setenta anos. Como o escritor não morre mais,
entabulo com ele essa conversa no escuro.
“Lembra, caro Bueno,
que em maio de 2010, dois dias antes de ser brutalmente assassinado em tua casa,
você enviou por e-mail para Mariana Camargo, da revista “Ideias”, tua última
crônica, intitulada “Para Sempre”, que vinha com uma indicação: “Para ler na
noite profunda”. Nela, você dançava tuas palavras, como de costume, mas talvez
mais profético ao quem sabe pressentir naquela madrugada a queda mortal: “Pela
primeira vez, em muitos anos, eu me disse que a felicidade podia ser mais que
uma esperança – essa ilusão sempre renovada para não morrermos de nós mesmos –
precocemente”. Neste mundo, você encerrava precoce e docemente tua carreira de
literato com as últimas palavras que fechavam um ciclo de vida e arte, vividos
intensamente: “Agora que estou morto e vigora em mim o seu cadáver simples, agora
posso dizer – também pela primeira vez sem mentir – que não sonho. Você vive em
mim e eu em você, eternamente”. Com quem você falava? Alguém ou algo? Com a
própria poesia? Com a arte que moveu e com a qual foi movido desde tenra idade?
E se abro essa conversa com as palavras que fecharam tua porta é para dizer que
todo fim talvez seja só começo, como nas Memórias Póstumas que Machado
imortalizara há mais de um século. Curvo-me à tua sepultura como quem se dobra a
um texto. Dancemos um bolero ou um tango. Talvez você não saiba, mas teu amigo
de infância Luiz Manfredini escreveu tua biografia, “A pulsão pela escrita”
(Ipê Amarelo, 2018). O título dela é perfeito para ilustrar a história de
alguém que certa vez confessou que não se concebia sem a escrita, que não
concebia o mundo sem a expressão literária: “Literatura, para mim, é isso: uma
pulsão vital, absoluta”. Se você pudesse lê-la, relembraria – talvez com uma
boa dose de saudade - tua vida de sangue, suor e sêmen, tristezas rubras e
alegrias marafas, canto nas manhãs de passarinho, vida nas madrugadas ácidas de
boteco. Ali, em tua biografia, relembraria a infância no interior do Paraná, a
mudança para Curitiba, e depois os anos loucos no Rio de Janeiro, em tempos de
chumbo grosso. Reencontraria Madame Satã, que frequentou tua quitinete em
Ipanema. Relembraria o Solar da Fossa, pensão e reduto carioca dos artistas nos
anos 60 e 70. Passearia novamente com a amiga Clarice Lispector pela orla do
Leme a fantasiar imensidões. Clarice te chamava de Quixote, lembra? Quem seria
teu Sancho? Leria mais uma vez a correspondência que trocou avidamente com João
Antonio em meio a Malaguetas, Perus e Bacanaço. Daria de cara com Carlos
Drummond de Andrade mais uma vez no apartamento de tua amiga e com ele trocaria
impressões sobre uma nova obra. Aliás, lembra que ele elogiou com candura teu
livro de estreia, “Bolero´s Bar”? Saiba que Luiz Manfredini, na biografia,
abordou temas privados de tua vida sem se esquivar da polêmica ao abordar os
anos de alcoolismo e a tua sexualidade vivida com urgência. E isso em nada
macula teu ser. Quem ler esse panorama, o da biografia, entenderá o motivo de
você ser chamado de Rimbaud Brasileiro ou de personagem de Jean Genet. Como
poucos da tua geração, você fez de tua vida a própria obra de arte. Por isso Curitiba
foi pequena para você e outros grandes da cidade, curitibanos ou não, Leminski,
Marcos Prado, Jamil Snege, Manoel Carlos Karam, Valêncio Xavier e tutti quanti.
O crítico Manuel da Costa Pinto, na
seção “Ilustrada”, da Folha de São Paulo, escreveu sobre “Bolero´s Bar” que
tanto você como Dalton Trevisan farejam perversões na calada da noite, mas
enquanto o vampiro desvia para o escárnio e para a tara, você acaba “criando uma
atmosfera tardo-simbolista, povoada por gigolôs, michês, travestis e outras personagens
da fauna underground”. Essa atmosfera tardo-simbolista parece perviver em toda
a tua obra. Ao ler a observação do crítico, começo a entender o motivo de tanto
encanto exercido pelo teu texto em mim. É a paixão pela linguagem – dança
erótica e delicada de sons e sentidos - que me liga a você, caro Bueno. É uma
pena que tenha sofrido como tantas Marias – a mais famosa no Paraná também
Bueno – com a violência masculina que ceifou tua vida. Mas falemos de projetos.
Está aí a compor aqueles que não cumpriu aqui? Aquele misto de memória (existencial)
e de reflexão sobre teu processo criativo que pretendia escrever: “uma espécie
de laboratório do escritor”? Ou mesmo aquele livro de memórias ensandecidas
sobre os ensandecidos anos 60 e 70 no Rio de Janeiro? E qual será a próxima viagem?
Qual a próxima revista, depois da grande Nicolau, que fez um barulho enorme por
aqui? Qual a próxima estação? Enfim, tanta coisa pra perguntar, pra lembrar,
que me falta tempo e espaço. Contento-me em encerrar com as palavras de Chico
Buarque, na famosa carta que enviou em música a um amigo: “Aqui na terra tão
jogando futebol / tem muito samba, muito choro e rock´n´roll / uns dias chove,
noutros dias bate sol, mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá
preta”. No Brasil, a coisa tá feia, mas melhor não entrar em detalhes e torcer
por dias melhores”.
Com admiração e saudade, de teu fiel e vagau leitor, Caio Moreira
Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), no dia 20 de abril de 2019.
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