Dedicado ao professor e amigo Antonio Carlos dos Santos, o Caco,
que um dia, no Campeche, tocou Estate de forma primorosa
(Em 2008, quando
comecei a prestar mais atenção em João Gilberto, entre audições de música e a
leitura de “Balanço da Bossa e Outras Bossas”, de Augusto de Campos, escrevi o
texto abaixo, que releio agora depois de tantos anos, ao saber da partida do
mestre da Bossa Nova. Caetano Veloso, na bela canção “Pra Ninguém”, citou
muitos intérpretes da MPB, como Gilberto Gil, Nana Caymmi, Tim Maia, Gal Costa,
Cauby Peixoto, Dalva de Oliveira, Carmem Miranda, Djavan, Paulinho da Viola,
etc, para finalizar dizendo: “Melhor do que isso só mesmo o silêncio, melhor do
que o silêncio só João”)
Talvez fosse possível escrever um roteiro poético sobre uma cena de cinema. Lembro-me de algumas cenas que são antológicas, como a dança ingênua de Fred Astaire e Cyd Charisse, em “A Roda da Fortuna”, ou mesmo o nascimento de Macunaíma, protagonizado pelo grande Grande Otelo, na belíssima adaptação (ou melhor transcriação) de Joaquim Pedro de Andrade. Outras são menos conhecidas, mas não menos interessantes: o momento em que um anjo ganha cor, quando resolve se tornar um humano por causa de uma paixão pela bailarina do circo, em “Asas do Desejo”, de Wim Wenders. A serenata que Vadinho faz para Dona Flor, cantando Noite Cheia de Estrelas, de Vicente Celestino: “Noite Alta, céu risonho...”.
Há uma linda e
comovente interpretação de João Gilberto, cantando “Estate”, na Itália.
Geralmente um roteiro deve ser escrito antes da filmagem. Neste caso, tomei a
liberdade de inventar um depois de assistir ao filme “Bahia de Todos os Sambas”,
de Leon Hirzman e Paulo César Saraceni, gravado em Roma, em 1983. O filme
registra um dos maiores shows de MPB que já aconteceu na Europa. Eu, com apenas
dois anos na época, nem sonhava com aquilo: “O que é que a Bahia tem?”. E o
show não era apenas musical. A Bahia baixou em Roma – com seus atabaques e pais
de santo, suas rezas, acarajés, danças e candomblés. Um encontro para gringo
nenhum botar defeito. O encontro foi organizado por Gianni Amico, um italiano
que juntou figuras como Caetano Veloso, Dorival Caymmi, Gal Costa, Moraes
Moreira, Naná Vasconcelos e o grande João. O roteiro poético que segue não tem
pretensão alguma de aproximar-se do formato oficial – até porque nunca será
filmado, como o roteiro esquecido de Mário Peixoto, “Outono – jardim
petrificado”. Por isso poético. Instruções: Para ser lido ao som de “Estate”.
CENA 1 (Plano de conjunto)
Noite. Um palco, pouca luz, um banquinho, um violão
e João Gilberto. O suficiente. Terno azul-cinza, paletó aberto. João olha para
o violão. Atrás dele, uma orquestra. Começa: “Estate sei calda come i baci che
ho perduto / sei piena di un amore che è passato / che il cuore mio vorrebbe
cancellare”.
CENA 2 (Corte para Plano médio)
João balança a cabeça. Toda a história da Bossa Nova se resume nesse breve movimento de João, como que hesitando entre uma voz e um olhar, ou mesmo expressando a letra por meio do gesto. João frisa a testa, talvez para alcançar a precisão. Não, seria a perfeição: “Estate il sole che ogni giorno ci scaldava / che splendidi tramonti dipingeva / adesso brucia solo con furore”.
João olha para o céu. Não, olha para cima. Não, olha para cima, mas para coisa nenhuma. Um lugar, sim. Só ele pode saber. Torna a olhar para o violão. Quase fecha os olhos. J.Joyce, em Ulysses, diria: “Fecha os olhos e vê”: “Tornerà un altro inverno / cadranno mille petali di rose / la neve coprirà tutte le cose / e forse un po' di pace tornerà”
Os pitagóricos acreditavam (e acreditam) que o segredo do universo estaria explicado na matemática. A precisão dos números revelaria a ordem de todas as coisas. A música, por incrível que pareça, está mais próxima da matemática do que se pode supor. Se a música pode ser registrada numa partitura é porque sua matemática de tempos e de tons a permite. João volta a olhar para o céu. É, agora é para o céu. Talvez sua partitura esteja registrada na ordem das estrelas: “Estate che hai dato il tuo profumo ad ogni fiore / l'estate che ha creato il nostro amore / per farmi poi morire di dolore”
CENA 3 (Zoom-in no rosto de João. Plano de detalhe)
A cena é comovente. Agora, o que se vê é uma sequência de alguns minutos no rosto de João. Sua testa sua. Seu olhar é suave e contínuo, feito fio de água antes de explodir em rio. O pai da Bossa Nova olha para o violão como quem a ninar o primeiro filho. Como quem olha apaixonado a amada ainda sem saber se tem também o seu amor. Como quem abraça um triste amigo, feliz por sabê-lo um dos seus. Levemente, sorri. E esse sorriso é para o violão, como a agradecê-lo por não estar sozinho. Todo o mistério de João se revela nessa sequência. E toda a potência de seu comedimento também. João repete a letra. No entanto, sabe que toda repetição traz em seu bojo a força de uma diferença. João nunca repete. Bossa-cancione sempre outra a mesma.
CENA 2 (Corte para Plano médio)
João balança a cabeça. Toda a história da Bossa Nova se resume nesse breve movimento de João, como que hesitando entre uma voz e um olhar, ou mesmo expressando a letra por meio do gesto. João frisa a testa, talvez para alcançar a precisão. Não, seria a perfeição: “Estate il sole che ogni giorno ci scaldava / che splendidi tramonti dipingeva / adesso brucia solo con furore”.
João olha para o céu. Não, olha para cima. Não, olha para cima, mas para coisa nenhuma. Um lugar, sim. Só ele pode saber. Torna a olhar para o violão. Quase fecha os olhos. J.Joyce, em Ulysses, diria: “Fecha os olhos e vê”: “Tornerà un altro inverno / cadranno mille petali di rose / la neve coprirà tutte le cose / e forse un po' di pace tornerà”
Os pitagóricos acreditavam (e acreditam) que o segredo do universo estaria explicado na matemática. A precisão dos números revelaria a ordem de todas as coisas. A música, por incrível que pareça, está mais próxima da matemática do que se pode supor. Se a música pode ser registrada numa partitura é porque sua matemática de tempos e de tons a permite. João volta a olhar para o céu. É, agora é para o céu. Talvez sua partitura esteja registrada na ordem das estrelas: “Estate che hai dato il tuo profumo ad ogni fiore / l'estate che ha creato il nostro amore / per farmi poi morire di dolore”
CENA 3 (Zoom-in no rosto de João. Plano de detalhe)
A cena é comovente. Agora, o que se vê é uma sequência de alguns minutos no rosto de João. Sua testa sua. Seu olhar é suave e contínuo, feito fio de água antes de explodir em rio. O pai da Bossa Nova olha para o violão como quem a ninar o primeiro filho. Como quem olha apaixonado a amada ainda sem saber se tem também o seu amor. Como quem abraça um triste amigo, feliz por sabê-lo um dos seus. Levemente, sorri. E esse sorriso é para o violão, como a agradecê-lo por não estar sozinho. Todo o mistério de João se revela nessa sequência. E toda a potência de seu comedimento também. João repete a letra. No entanto, sabe que toda repetição traz em seu bojo a força de uma diferença. João nunca repete. Bossa-cancione sempre outra a mesma.
CENA 4 (Zoom-out do rosto de João. Volta para Plano médio)
A música termina. O menino levemente sorri. As luzes se apagam...
Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória, em 13 de julho de 2019
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