sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Micronotas: uma editora apaixonada e apaixonante









Imagino poeticamente a evolução da espécie consoante a quantidade de escritores, livrarias, sebos, bibliotecas e editoras existentes neste planeta que chamamos Terra. O nível cultural de um país poderia ser medido também por esses fatores. Livrarias, infelizmente, vão sendo fechadas dia após dia, numa crise que foi instaurada por motivos variados e que vem aumentando a cada ano. O que não significa que bons livros não estejam sendo escritos, editados e vendidos. Tome-se como exemplo a sobrevivência da Estante Virtual, bem como o surgimento de pequenas editoras, que têm apostado em autores desconhecidos ou quase, publicando pérolas literárias que dificilmente viriam a lume de outra forma. Aliás, o curioso e corajoso investimento em um mercado editorial mais artesanal e independente tem motivado a proliferação dessas pequenas (grandes) empresas para a alegria de amantes do livro. Uma delas é a Micronotas, de Joinville, que descobri recentemente.

Voltada predominantemente para a literatura, com ênfase na poesia (a menos culpada de todas as ocupações, como nos diria Waly Salomão), ensaios e artes visuais, a Micronotas é coordenada pela escritora Katherine Funke. Os livros dessa editora são produzidos a partir de uma confecção carinhosa, desde o trato visual, a diagramação, passando pelas capas artesanais, não esquecendo da qualidade literária de cada trabalho, minuciosamente escolhido e cuidado pela editora. 



A Micronotas acaba de lançar o belo “Pedra, poro, pele”, da poeta Maria Cecília Takayama Koerich, uma daquelas publicações que dá gosto de pegar além do prazer de ler. O livro é um corpo feminino cujos poemas são suas partes feitas de carne e palavras com toques de desejo e paixão. Esse livro é um escândalo de bom, a começar pelas lindas ilustrações de Isadora Weber, com destaque para a capa, um conjunto de flores derretendo. Suas pétalas pingam o prazer do corpo que é também a paixão da linguagem. E mora aí – na superfície da pele/papel - a política mais profunda que é a do corpo que pensa e deseja: “Desejo desejos / como trilhar no mundo / sem ser feita deles? / só é possível existir / na Via Láctea / por ele, apesar dele, com ele e para ele: início e fim”. O erotismo com toques de luxúria é a medida do corpo(poema) cultivado por Maria Cecília: “Pequena e voraz / flor sem espinho / úmida e quente / doce e cítrica /vermelha e rosada / macia / sutil / esconderijo / para um segredo íntimo /que nesse mundo / é só teu”. “Pedra, poro, pele” é um livro que deseja. Por isso talvez venha a ser sempre e profundamente desejado por seus leitores.     


A editora acaba de publicar também o estranho, bem escrito/montado e tragicômico “Tamanduá/Bandeiras”, de Eduardo Silveira. Esse livro de poemas é profundamente atual e difícil de ser abordado em um simples comentário, dois motivos que por si só já bastariam como um convite à leitura. Nem tudo o que se faz agora – no presente - é atual e naturalmente há uma necessidade de distanciamento fundamental para uma possível assimilação daquilo que foi feito. Mas não precisamos esperar o tempo passar e as formigas desaparecerem para lermos esse Tamanduá. Pelo contrário, há uma urgência de leitura em sua atualidade que penso contribuir para os sentidos e para a importância desse livro. A dimensão trágica e cômica da obra aparece, por exemplo, no poema “O amor possível”: “no instante mesmo em que / doidos doentes drogados / mendigos migrantes marielles / velhos violados violetas / dormem morrem vazam // dois jovens, um homem e uma mulher, / se amam num beliche / - e bem que eles fazem”. No livro de Eduardo Silveira podemos encontrar um banco, “desses para onde brasileiros enviam dinheiro ilegal”, uma tribo sem nome em uma floresta prestes a desaparecer (tanto a floresta quanto a tribo), um bombeiro velho e cansado de apagar o fogo, a canção do Roberto nos levando para Além do Horizonte, “Boldonaro” (personagem de nome simbólico – assim mesmo grafado-, amargo e fonicamente presidencial): “militarmente cansado / como se não descansasse mais do que duas horas / desde 1964”. Há uma opção claramente política no livro que faz o poeta defender uma história com “menos adornos e mais Adornos”. A obra, nesse sentido é um gesto potencialmente forte e, segundo o autor, o gesto ainda é “nossa única e verdadeira arma / muito antes de tacapes e bombas / os gestos”. O poema “Antes II” se encerra com um gesto que é também um convite: “dia e noite / até que a estrela exploda / haveremos de militar // militar / sem limites // abaixo a ditadura limitar”. A estrela do verso, o vermelho da capa, a palavra Bandeiras (no título), são signos que estão consciente ou inconscientemente atravessados por uma vontade política, mas não se trata de sua mera estetização. Tamanduá politiza a arte. E faz disso sua paixão. Assim como Maria Cecília, Eduardo Silveira é movido por desejo e paixão. São paixões diferentes, mas mesmo assim paixões: “acredito sobretudo nos que se movem por paixão”, diz um verso do livro.  


É também com paixão que se move a escrita de Katherine Funke em “Sem pressa”, que saiu no ano passado pela mesma editora. Trata-se de uma série de textos escritos entre 2010 e 2011, quando a autora/editora morava em Salvador. O título combina perfeitamente com o ritmo do livro, a lembrar um jazz deliciosamente tocado por alguém que sabe executar bem um instrumento e compor a música à medida que toca. Combina também com o tema de cada um dos seus textos com sabor de poesia e reportagem jornalística, desde um ensaio que divaga sobre um trabalho arqueológico deveras paciencioso no Museu Náutico do Forte de Santo Antônio da Barra até uma cósmica e curiosa narrativa sobre um chocolate artesanal, produzido sem pressa como a boa literatura. Outros textos lentamente saborosos se somam a esses, como aquele que aborda o trabalho do fotógrafo Christian Cravo, um dedicado ao cineasta Bernard Attal, outro à Stella Caymmi - neta de Dorival -, e um ensaio baianamente sonoro sobre Tamima, percursionista e luthier de pandeiros, confeccionados com muita paciência e amor, tal qual a escrita de Katherine, que trata tudo com muita atenção, concentrando-se em detalhes, mirando em minúcias, o que só enriquece seu texto. Sem pressa se vai longe! 
Eis aí três livros que honram o trabalho da editora. Penso que só é possível ser uma editora apaixonante se a mesma estiver permanentemente apaixonada pelos seus próprios livros. É o caso da Micronotas. 

Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória - PR,  no dia 14 de setembro de 2019.

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