Cena do filme que Alberto Pucheu prepara sobre Carlos de Assumpção
Tenho em minhas
mãos um exemplar de “Protesto e outros poemas”, de Carlos de Assumpção, poeta
que descobri recentemente graças ao professor, amigo e também poeta Alberto
Pucheu, que me enviou o livro no mesmo período em que produz um filme sobre o
autor. Carlos de Assumpção é um desses bardos raros e difíceis de serem
encontrados nas livrarias. Seus poemas são urgentes e necessários em tempos tão
obscuros. Aprecio seus versos não apenas por essa urgência, imantada por uma
intenção claramente política, mas também pela beleza que essa poesia na
amplidão de nosso tempo move ao montar tantas peças de um quebra-cabeça
histórico e social que revela o quanto existe ainda de escravidão na vida de um
povo.
Encontrei alguns
vídeos no youtube em que Carlos de Assumpção aparece declamando poemas como “Protesto”,
de uma beleza pujante que vem talvez de uma estranha aliança entre uma suposta
simplicidade do verso e uma imponência poética, uma grandeza que se encontra
não apenas nas palavras do escritor, mas também no seu jeito de dizer, no seu
modo estar diante dos versos, da vida e da câmera. Destaco também a leitura do
poema “Batuque”, lindamente musical quando declamado pelo autor, tudo fruto de
um batuque trazido um dia lá doutro lado do mar.
Foto de: Wilker Maia
O poeta, feito
um griô, cultua o sangue sagrado dos ancestrais, ao mesmo tempo em que protesta
com suas “palavras de fogo” em busca de um mundo menos injusto, menos
arrogante, menos preconceituoso, mais alegre, mais sábio, mais musical, mais
justo. O grito de “Protesto” é o grito do negro que não se cala e que não
aceita mais viver “no porão da sociedade”: “Mesmo que voltem as costas / às
minhas palavras de fogo / não pararei de gritar / não pararei / não pararei de
gritar // Senhores / eu fui enviado ao mundo / para protestar / mentiras
ouropéis nada / nada me fará calar / (...) Senhores / o sangue dos meus avós /
que corre em minhas veias / são gritos de rebeldia”. Convido o leitor a ver e ouvir poema e poeta
no registro para constatar o que digo.
Em muitos dos
textos que integram o livro, Carlos de Assumpção revisita temas e cenas
cotidianas nas quais reconhecemos situações sociais de desigualdade e
injustiça. Em “Destituição”, por exemplo, o poeta relembra o quanto o branco
usurpou o negro ao longo da história: “Cadê o samba / que era meu / o branco
tomou e deturpou / cadê o branco / tá por aí / ganhando dinheiro / com o samba
que roubou”. No mesmo poema, a dimensão religiosa também é evocada: “Cadê
Iemanjá que eu trouxe da África / Cadê Iemanjá que era negra como eu sou / Tá
dependurada na parede / onde o branco a dependurou / pintada de branco como o
branco a pintou”. Em “Eclipse”, encontramos um dos poemas mais profundos do
livro. É quando o poeta negro se olha no espelho e não se vê: “Olho no espelho
/ e não me vejo / não sou eu quem está lá // senhores / onde estão os meus
tambores / onde estão meus orixás?”. Para o poeta, ser negro não é apenas uma
questão cor: “Ser negro não é ser preto / ser preto não é ser negro / cor de
pele não é tudo / negro é quem se sente negro”. E nesse processo de identidade,
Zumbi é um dos heróis evocados em vários poemas: “Eu sou descendente de Zumbi /
Zumbi é meu pai e meu guia / me envia mensagens do Orum / meus dentes brilham
na noite escura / afiados como o agadá de Ogum”. Em outro poema: “Zum Zum Zum /
Guerreiro da Serra / Sob as estrelas acesas / na madrugada / nó do ebó na
encruzilhada”. Em meio a dores e tristes constatações, brotam versos
esperançosos e profundamente poéticos como esses: “Nós somos Dons Quixotes não
importa / de sonhadores o mundo tem precisão / a vida será céu quando todos os
homens / trouxerem as estrelas aqui pro chão”. Em suas raízes o poeta
reencontra o axé que jorra onde a vida faz sentido. Em “Lei Áurea”, o poeta
desconstrói o mito para contar a “história que a história não conta”, lembrando
aqui dos versos do épico samba enredo da Mangueira, em 2019. No poema o mito dá
lugar à realidade: “Viva a princesa Isabel / viva a senhora redentora /
agradecimento profundo / à bondosa princesa que em maio / nos deu de bandeja a
Lei Áurea / Lei Áurea verdadeiro cheque sem fundo”.
Foto: http://unegroriodejaneiro.blogspot.com.br/
Alberto
Pucheu escreveu sobre o contato que teve com Carlos de Assumpção, enquanto
realizava um filme sobre ele: “Ter ficado 3 dias com o poeta Carlos de Assumpção,
entrevistando-o em sua cidade, em sua casa, ter ficado 3 dias inteiros com ele,
é um antídoto para o que hoje vivemos no país. Poderia dizer que seu Carlos é
um outro país, um país à parte, que deveria ser um país de fato majoritário, o
nosso país. Um poeta negro, de 92 anos, com uma capacidade de gerar amor em
torno dele imensa. Tudo nele é generosidade, carinho, afeto, inteligência,
alegria, intensidade e muita vitalidade”. Aguardemos o filme. Aguardemos
felizes por ele.
Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), em 24 de agosto de 2019
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