Humana, demasiadamente humana, a poesia
de Ribamar Bernardes passeia entre girassóis e urubus com sua sanha e
arma/palavra de franco-atirador. Remonta um mundo desmoronado e com suas
vísceras nos apresenta uma imagem de seu eterno recomeçar. Ela, a poesia, nos
faz vislumbrar aquilo que Warburg dizia sobre o artista como aquele que faz com
que se compreendam mutuamente os astra
e os monstra, a ordem celeste e a
ordem visceral, o corpo celeste das estrelas e o corpo aberto em dissecação, o
mundo da beleza e o mundo dos horrores, o mundo dos astros e o mundo dos
desastres. Curiosamente, a flor do girassol está na terra olhando para o céu e
o urubu no céu olhando para a terra:
(...) tons de amarelo
a se completar
no inverno do girassol
sem Sol
sem carnaval
pobre
Van Gogh
a miséria
do girassol
(...)
corvos
crepusculares
até hoje tranquilos
passeiam
sobre os
girassóis
de
Van Gogh.
A poesia é esse mundo que nos cala para nos fazer gritar. Celebrando o que nos falta, ela é esse varal sem roupas, que nos move para muito além de nós. Trata-se de um vazio que não é o nada, mas o neutro, que nos permite ver mais longe, até onde o olhar permitir olhar, lá onde o mar faz a curva. Sua poesia, nesse sentido, é a rosa que, drummondianamente, nasce separada, mas não de todo apartada de nós. No meio dos urubus, um girassol nos seus cabelos. Da torre de marfim, seu palacete de papel, melhor se descortina aos leitores o inverno em que estamos mergulhados nas quatro estações do ano, nas quatro estações da vida. De janeiro a janeiro, da torre de marfim melhor se vê. Sua distância aprofunda o olhar e apartados olhamos mais e melhor. A poesia de Ribamar dessa forma é carne inquieta em sua abertura dissecada. Nela, versa-se sobre uma certa queda ou decadência que está na origem de um drama que mora dentro do poeta e que lhe dá a insígnia de estrangeiro (aquele que está fora), mas que o conduz paradoxalmente e de forma expressionista à sua lúgubre, porém delicada e doce interioridade. E do interior se abre feito flor para um espaço muito mais imenso. Sua obra, assim, é coisa mental. Mas – não esqueçamos - a mente está no corpo e só nele encontra a devida animalidade que, simultaneamente, o anima e atordoa. Poesia é coisa para ser amada ou deixada de lado. Celebro a chegada desses poemas como a vinda daquele anjo noturno que beira o caos das noites de insônia e de chuva numa xilogravura de Goeldi. As sonoridades delirantes, dançando melopaicamente seu jazz em fúria, com sabor noir, tal qual Contrane em Blue Train, tocam delicadas mas não por isso menos rudes. Nunca olvidar o abismo. Nunca esquecer a barra pesando, o mundo pesado equilibrando-se nas costas de um deus/homem. E a poesia nos carregando nas costas na labuta diária da vida. Esse é o nosso único e verdadeiro mapa. Esse é o nosso Atlas. E a nossa mesa de (des)orientação. Nunca esquecer que o jazz é música se fazendo à medida que se toca, mas para atingir com presteza tal improviso é necessária muita criatividade, prática e disposição corajosa. Só assim é possível se equilibrar no abismo. Nesse quesito, Ribamar nada fica devendo. Tudo vibra em seus versos, tudo arde na arte de seu tom. O poema arde porque é palavra que vibra. A disposição peralta de seus versos evoca um Mallarmé lançando seus dados do alto do Cristo Rei, colina/bairro onde vive o poeta, em União da Vitória, interior do Paraná, sul do Brasil, pedaço do mundo. A aliteração, tão presente em seus versos, sugere o que chamo de dicção do desespero, uma certa figura que nos permite imaginar não só a visceralidade de sua poesia, mas uma certa intencionalidade vocal que reconstitui sua voz em uma virtual declamação, promovendo a apresentação do poeta a quem estiver disposto a ouvi-lo nesse palco que é o livro (poesia na voz é poesia no corpo). Som e sentido em suas linhas quebradas avizinham-se com presteza e clareza. Esses poemas são urgentes. Há que se ter pressa em lê-los, antes que o fogo apague e as cinzas voem para longe efetivando a transmutação de um estado da matéria em outro. Mas há quem diga ainda que é na iminência de seu desaparecer que a chama queima mais bela. Leia-se o poema “44 invernos”, dedicado a Jim Morrison:
entre o aroma
deixado pela tarde
e a cor do céu na
noite de julho
é que existo
após
demasiado drama
demasiada Brahma
após
aquele excessivo
amarelo doença
recobrindo meu obeso
corpo
existo
após o Sol
após o Som
silêncio
sombra
após
décadas de Dor
de axila nova
sem bolor
existo
novo
no
mundo
acordo
da boca aberta
escorre
uma
saliva
cor de rosa
cor de vida
a gotejar na minha
velha pança
por isso sei
agora
existo
tudo ao meu redor
se quebra e dança.
Há portanto uma beleza no sentimento de decadência que aponta não necessariamente para algo que está em extinção mas que revela antes de qualquer coisa a força simbólica de uma ruína, que em sua decadência nos apresenta a pervivência do que se extingue, revelando, assim seu eterno vir a ser, ou seja, seu originar-se. É o que talvez escrevesse Walter Benjamin depois de ler Ribamar. O poema de Riba (pela sua disposição gráfica, mas não apenas por isso) é sangue escorrendo pela parede da vida e pela página do livro. Sangue coagulado com cor de tinta da pena, ou tinto como o sangue de cordeiro imolado. Poeta visceral: aquele que expõe suas próprias vísceras, vísceras que são também, paradoxalmente, alheias. Eis a sua pena: a mesma palavra que nomeia uma condenação (pena) é aquela que representa a parte do corpo de uma ave que voa (o poeta é um albatroz) e também sua parte usada como instrumento de escrita, bem leve mas também afiada. Uma pena pode deixar uma cicatriz no corpo, na alma, ou no papel. O mar de seu nome (Riba-MAR), no entanto, é também aquele que faz cicatrizar uma dor como quando o sal é posto pela mãe sobre a ferida depois de uma surra no filho. A violência de suas palavras é excesso de amor pela vida, é amor de mãe (poeta) pelo filho (mundo/palavra). Mas seu nome me diz outra coisa. O dicionário informa que RIBA quer dizer "Margem alta de um rio", "pequena elevação sobranceira a um rio ou mar". RIBA-MAR. A elevação que se precipita sobre o mar. Como a Garganta do Diabo, em Cascais, onde Fernando Pessoa ajudou a forjar o desaparecimento de um bruxo (Aleister Crowley). Um salto em direção ao abismo. Um convite ao caos. Do alto se vê melhor a imensidão. Mas não se trata de forjar nos versos a sujeira do mundo, desistindo da vida, trata-se de ver na dor de toda lida o signo não só de um substantivo (lida é trabalho, esforço fora do comum, labuta), mas também o signo de um verbo disposto a ler o seu mundo e a descortiná-lo para nós em aurora (obra que se lê é obra lida). E isso tudo rima com vida. A beleza da poesia, com dor ou sem dor, é sempre a chama de um novo amanhecer. Quem lê-lo com atenção o achará em cada um de seus versos.
(...) tons de amarelo
a se completar
no inverno do girassol
sem Sol
sem carnaval
pobre
Van Gogh
a miséria
do girassol
(...)
corvos
crepusculares
até hoje tranquilos
passeiam
sobre os
girassóis
de
Van Gogh.
A poesia é esse mundo que nos cala para nos fazer gritar. Celebrando o que nos falta, ela é esse varal sem roupas, que nos move para muito além de nós. Trata-se de um vazio que não é o nada, mas o neutro, que nos permite ver mais longe, até onde o olhar permitir olhar, lá onde o mar faz a curva. Sua poesia, nesse sentido, é a rosa que, drummondianamente, nasce separada, mas não de todo apartada de nós. No meio dos urubus, um girassol nos seus cabelos. Da torre de marfim, seu palacete de papel, melhor se descortina aos leitores o inverno em que estamos mergulhados nas quatro estações do ano, nas quatro estações da vida. De janeiro a janeiro, da torre de marfim melhor se vê. Sua distância aprofunda o olhar e apartados olhamos mais e melhor. A poesia de Ribamar dessa forma é carne inquieta em sua abertura dissecada. Nela, versa-se sobre uma certa queda ou decadência que está na origem de um drama que mora dentro do poeta e que lhe dá a insígnia de estrangeiro (aquele que está fora), mas que o conduz paradoxalmente e de forma expressionista à sua lúgubre, porém delicada e doce interioridade. E do interior se abre feito flor para um espaço muito mais imenso. Sua obra, assim, é coisa mental. Mas – não esqueçamos - a mente está no corpo e só nele encontra a devida animalidade que, simultaneamente, o anima e atordoa. Poesia é coisa para ser amada ou deixada de lado. Celebro a chegada desses poemas como a vinda daquele anjo noturno que beira o caos das noites de insônia e de chuva numa xilogravura de Goeldi. As sonoridades delirantes, dançando melopaicamente seu jazz em fúria, com sabor noir, tal qual Contrane em Blue Train, tocam delicadas mas não por isso menos rudes. Nunca olvidar o abismo. Nunca esquecer a barra pesando, o mundo pesado equilibrando-se nas costas de um deus/homem. E a poesia nos carregando nas costas na labuta diária da vida. Esse é o nosso único e verdadeiro mapa. Esse é o nosso Atlas. E a nossa mesa de (des)orientação. Nunca esquecer que o jazz é música se fazendo à medida que se toca, mas para atingir com presteza tal improviso é necessária muita criatividade, prática e disposição corajosa. Só assim é possível se equilibrar no abismo. Nesse quesito, Ribamar nada fica devendo. Tudo vibra em seus versos, tudo arde na arte de seu tom. O poema arde porque é palavra que vibra. A disposição peralta de seus versos evoca um Mallarmé lançando seus dados do alto do Cristo Rei, colina/bairro onde vive o poeta, em União da Vitória, interior do Paraná, sul do Brasil, pedaço do mundo. A aliteração, tão presente em seus versos, sugere o que chamo de dicção do desespero, uma certa figura que nos permite imaginar não só a visceralidade de sua poesia, mas uma certa intencionalidade vocal que reconstitui sua voz em uma virtual declamação, promovendo a apresentação do poeta a quem estiver disposto a ouvi-lo nesse palco que é o livro (poesia na voz é poesia no corpo). Som e sentido em suas linhas quebradas avizinham-se com presteza e clareza. Esses poemas são urgentes. Há que se ter pressa em lê-los, antes que o fogo apague e as cinzas voem para longe efetivando a transmutação de um estado da matéria em outro. Mas há quem diga ainda que é na iminência de seu desaparecer que a chama queima mais bela. Leia-se o poema “44 invernos”, dedicado a Jim Morrison:
entre o aroma
deixado pela tarde
e a cor do céu na
noite de julho
é que existo
após
demasiado drama
demasiada Brahma
após
aquele excessivo
amarelo doença
recobrindo meu obeso
corpo
existo
após o Sol
após o Som
silêncio
sombra
após
décadas de Dor
de axila nova
sem bolor
existo
novo
no
mundo
acordo
da boca aberta
escorre
uma
saliva
cor de rosa
cor de vida
a gotejar na minha
velha pança
por isso sei
agora
existo
tudo ao meu redor
se quebra e dança.
Há portanto uma beleza no sentimento de decadência que aponta não necessariamente para algo que está em extinção mas que revela antes de qualquer coisa a força simbólica de uma ruína, que em sua decadência nos apresenta a pervivência do que se extingue, revelando, assim seu eterno vir a ser, ou seja, seu originar-se. É o que talvez escrevesse Walter Benjamin depois de ler Ribamar. O poema de Riba (pela sua disposição gráfica, mas não apenas por isso) é sangue escorrendo pela parede da vida e pela página do livro. Sangue coagulado com cor de tinta da pena, ou tinto como o sangue de cordeiro imolado. Poeta visceral: aquele que expõe suas próprias vísceras, vísceras que são também, paradoxalmente, alheias. Eis a sua pena: a mesma palavra que nomeia uma condenação (pena) é aquela que representa a parte do corpo de uma ave que voa (o poeta é um albatroz) e também sua parte usada como instrumento de escrita, bem leve mas também afiada. Uma pena pode deixar uma cicatriz no corpo, na alma, ou no papel. O mar de seu nome (Riba-MAR), no entanto, é também aquele que faz cicatrizar uma dor como quando o sal é posto pela mãe sobre a ferida depois de uma surra no filho. A violência de suas palavras é excesso de amor pela vida, é amor de mãe (poeta) pelo filho (mundo/palavra). Mas seu nome me diz outra coisa. O dicionário informa que RIBA quer dizer "Margem alta de um rio", "pequena elevação sobranceira a um rio ou mar". RIBA-MAR. A elevação que se precipita sobre o mar. Como a Garganta do Diabo, em Cascais, onde Fernando Pessoa ajudou a forjar o desaparecimento de um bruxo (Aleister Crowley). Um salto em direção ao abismo. Um convite ao caos. Do alto se vê melhor a imensidão. Mas não se trata de forjar nos versos a sujeira do mundo, desistindo da vida, trata-se de ver na dor de toda lida o signo não só de um substantivo (lida é trabalho, esforço fora do comum, labuta), mas também o signo de um verbo disposto a ler o seu mundo e a descortiná-lo para nós em aurora (obra que se lê é obra lida). E isso tudo rima com vida. A beleza da poesia, com dor ou sem dor, é sempre a chama de um novo amanhecer. Quem lê-lo com atenção o achará em cada um de seus versos.
Publicado originalmente no jornal Caiçara de União da Vitória (PR), no dia 26 de outubro de 2019
Um comentário:
Valeu , Caio Bro... irmão do Sol, da Lua, da rua...me comovi ao ler...belo...lindo...valeu... abraço...
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