Apontamentos sobre “Ideias para Adiar o Fim do Mundo”, de Ailton Krenak
Muitos
brancos adoram teorizar sobre os índios. Sobre suas necessidades e sobre aquilo
de que, aos olhos ocidentais, não necessitam. A terra, por exemplo. Muitos
brancos adoram dizer que os índios já têm o suficiente e que devem aprender a
viver na cidade, que essa história de “tribo” é coisa de um passado
incivilizado e selvagem. Que essa história de demarcação já deu o que tinha que
dar. O assunto é mais bem complexo do que parece. Por que não nos permitirmos
ouvir dos índios o que eles têm a nos dizer? Comecemos a prestar atenção em
suas palavras lendo a obra de um deles.
Há alguns
meses, a Companhia das Letras publicou o livro “Ideias para Adiar o Fim do
Mundo” (2019), de Ailton Krenak, que reúne três textos desse reconhecido
ativista do movimento socioambiental e de defesa dos direitos indígenas. Desde
os anos 70, Krenak tem se dedicado com afinco em um trabalho educativo e
ambientalista, tendo se destacado na criação da União das Nações Indígenas
(UNI), bem como tendo um papel determinante para a conquista do “Capítulo dos
Índios”, na Constituição de 1988.
O texto que
dá nome ao livro é uma conferência proferida no Instituto de Ciências Sociais
da Universidade de Lisboa, no dia 12 de março de 2019. Como a palestra é
recente, Krenak consegue abordar questões bastante pertinentes – pela sua própria
atualidade - que estão movimentando a política nacional em relação aos direitos
indígenas.
O fato da
palestra ser em Portugal é bastante sintomático, tendo em vista que as lutas
indígenas remontam aos primeiros contatos entre brasileiros e portugueses no
século XVI e de certa forma repercutem até hoje nos modos de vida das
comunidades originárias.
Conceitos
como os de Estados nacionais, humanidade, existência e liberdade são trazidos à
tona por meio do pensamento do autor. O texto aponta para a triste realidade de
uma humanidade que vai sendo “descolada de uma maneira tão absoluta desse
organismo que é a terra”. Distantes do mito do monstro corporativo que ruma em
direção ao “progresso” de uma comunidade entusiasmada com shoppings, prédios
gigantescos, veículos espaciais, entre outros, alguns núcleos ainda se agarram
nessa terra: são caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes, a dita “sub-humanidade”.
Para Krenak, a ideia de nós, humanos, “nos descolarmos da terra, vivendo numa
abstração civilizatória, é absurda. Ela suprime a diversidade, nega a
pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos”.
Educados
desde sempre para sermos clientes, somos adulados pela sociedade até o ponto de
nos tornarmos imbecis, lembra Krenak. Para que estarmos no mundo de uma maneira
crítica e consciente se podemos ser consumidores? Para ele, essa ideia dispensa
a experiência de viver numa terra “cheia de sentido, numa plataforma para
diferentes cosmovisões”.
O pensador
aprofunda a questão observando que nosso tempo é especialista em criar
ausências. Ausências do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da
experiência da vida: “Isso gera uma intolerância muito grande com relação a
quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de
cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que
dança, canta, faz chover”. O tipo de humanidade à qual estamos sendo
convocados, segundo o autor, não tolera tanto prazer e fruição de vida. Não
tolera inclusive a poesia, poderíamos acrescentar. Pregam com recorrência o fim
do mundo, nos convidando ao fracasso alarmante de um amanhã sem esperança e
alegria. Sem sonhos. Daí a provocação que inspira o tema: “adiar o fim do mundo
é exatamente poder contar sempre mais uma história. Se pudermos fazer isso,
estaremos adiando o fim”. Como não lembrar aqui das “Mil e uma Noites”, em que
Sherazade adia sua morte contando sempre uma nova história para o Sultão.
Aliás, ouvir as histórias dos índios é uma forma interessantíssima de
conhecê-los. Como gostar do que não se conhece? Aos conhecê-los melhor, talvez
nós, os brancos, aprendamos a amá-los na fímbria da amizade, transformando o
limite que nos separa no limitar de um contato amoroso. Ao conhecê-los talvez
possamos nos dar a imaginar outras possibilidades de vida em sociedade.
Em um dos
momentos mais marcantes da conferência, Krenak relembra que há centenas de
narrativas de povos que estão vivos, que contam histórias, cantam, viajam e nos
ensinam mais do que aprendemos nessa humanidade. Vem daí um de seus
ensinamentos mais bonitos e importantes: “Nós não somos as únicas pessoas
interessantes no mundo, somos parte do todo. Isso talvez tire um pouco da
vaidade dessa humanidade que nós pensamos ser, além de diminuir a falta de
reverência que temos o tempo todo com as outras companhias que fazem essa
viagem cósmica com a gente”.
Essa
realidade nos convida a promover uma reserva ecológica desse bem que nos salva.
Falo das palavras sábias que vêm do chão mais profundo da terra, respeito pelo
semelhante, pelo meio ambiente, por outras formas de ver e pensar a vida.
Naturalmente, isso tudo deve estar fora da lógica do mercado, dos interesses
pelo minério, do extrativismo sem responsabilidade, tudo aquilo que não é coisa
de índio.
Publicado
originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR),23 de novembro de
2019 - Caio R Bona
Moreira
Nenhum comentário:
Postar um comentário