As cortinas se abriram! Lentilha, promessas, pedidos, roupas brancas, ondinhas, uvas, champanha e tudo (re)começa sempre igual, mas diferente. O que desejo para todos nós em 2020? “Merda!”. No teatro, é muito comum – antes da estreia de uma peça – que os atores, desejando boa sorte uns para os outros, pronunciem a expressão “Merda!”. Vem do francês “merde”. É um costume antigo. Conta-se que, em Paris, quando um espetáculo artístico lotava, o tráfego intenso de muitas carruagens era responsável por uma grande quantidade de excremento animal em frente aos teatros. Portanto, quanto mais veículos e cavalos, maior o sucesso de uma peça. As fezes eram praticamente o sinônimo da prosperidade. Que isso não falte em 2020. Que não esqueçamos o texto, que as bilheterias se esgotem, que possamos brincar, emocionando-nos em cada cena, em cada ato. Que vivamos enfim o show de cada uma de nossas vidas. Que saibamos encenar acima de tudo. Isso é fundamental.
Falando em teatro, informo que comecei o ano lendo a autobiografia de Fernanda Montenegro, a grande dama da nossa dramaturgia. O livro foi escrito com a colaboração da jornalista Marta Góes. As memórias intituladas “Prólogo, ato, epílogo” saíram pela Companhia das Letras, em setembro de 2019. Nelas, os leitores poderão encontrar uma mulher forte e vocacionada, mas principalmente o retrato de uma vida bela e bem vivida. Entre julho de 2016 e novembro de 2017, Marta Góes realizou dezoito entrevistas com a atriz que deram origem ao livro.
O título das memórias é perfeito porque aproxima a vida de Fernanda a uma peça de teatro. Acredito que toda vida intensamente vivida em meio à arte é algo que se funde a ela. A linha divisória entre vida e arte é rompida apenas por grandes artistas. A obra de arte se transforma em um ato de vida, assim como a vida passa a ser a própria obra de arte. Onde uma começa e a outra termina é mistério que não se explica. Aliás, toda vida bem vivida, penso, é uma obra de arte. Cada um dos leitores, se procurar entre aqueles que os rodeiam, encontrará alguns que, mesmo não sendo artistas, vivem a sua vida como uma obra de arte. Talvez todos sejamos um pouco artistas. O título do livro é perfeito também porque, além de amalgamar vida e teatro, relaciona com eficácia a estrutura dramatúrgica de uma peça às fases de uma vida. Prólogo, ato, epílogo. Começo, meio e fim.
Prólogo: As luzes se acendem. Da saga dos antepassados, oriundos da Sardenha, na Itália, à vida difícil de imigrantes em um país desconhecido. Do outro lado da família, a origem portuguesa e suas tradições, moldando um temperamento forte na pequena Fernanda, nascida Arlette Pinheiro da Silva. Criada pelos avós no subúrbio do Rio de Janeiro, Arlette assiste pela Rádio Nacional e pela Rádio MEC às grandes transformações do Brasil e do mundo no século XX, como a Revolução de 30 e a Segunda Grande Guerra. Aliás, na Rádio MEC a jovem inicia a sua carreira artística como locutora. Dali para os palcos não demorou muito. Ela foi professora de inglês também.
Ato: Fim dos anos 40, início dos anos 50. A Arlette vira Fernanda. Casa-se com o ator Fernando Torres e mergulha no teatro. Em um dos momentos mais intensos de suas memórias a atriz, ao recordar o momento em que percebeu que tinha futuro no teatro, escreve: “Os anos vividos foram de coragem e medo. Entreguei meu corpo, daquele momento em diante, a toda e qualquer estética ou jogo cênico que o personagem exigisse de mim. Vejo, hoje, que troquei de pele pela vida afora durante setenta anos. Nunca tive realmente e definitivamente o meu próprio rosto, o meu cabelo, e nem a minha postura. No fundo me pergunto, como faz Cecília Meireles, no seu poema ‘Retrato’: ‘em que espelho ficou perdida a minha face?’”. A passagem é de uma beleza confessional absoluta. Penso que o verdadeiro rosto do ator nunca está atrás da máscara, mas disseminado em todas elas. E é nessa mistura que ele encontra sua essência. No Ato, Fernanda vive com grandeza sua arte, trabalhando em uma grande quantidade de peças, novelas e filmes. Das “Alegres canções na montanha”, de Julien Luchaire, em 1950, até o filme “Vida Invisível”, de Karim Ainouz, de 2019. Como não lembrar de sua participação em obras televisivas e cinematográficas como “Incidente em Antares”, “O auto da Compadecida”, “O Tempo e o Vento”, “Central do Brasil”, “O Amor nos Tempos de Cólera”, “O outro lado da rua”, entre tantas outras. O Ato do livro se encerra com a comovente partida de seu companheiro Fernando Torres. Mas o Ato da vida continua. Fernanda Montenegro está viva e atuante em seus 92 anos.
Na carta que Fernanda enviou a José Aparecido de Oliveira, nos anos 80, recusando o convite para assumir o recém-criado Ministério da Cultura, no governo Sarney, há um trecho em que diz: “Pobre do país cujo governo despreza, hostiliza e fere seus artistas”. No texto, apesar de declinar do convite, ela comemorava o fato de um artista ter sido escolhido, vendo neste fato um amadurecimento político de nosso país: “Não é fácil dizer não. Não vejo que seja mais fácil decidir pelo teatro. O Teatro nunca foi fácil ou seguro. Mas é esse o meu lugar. (…) Pode parecer um frase bombástica e teatral, mas não devemos temer nem o Teatro, nem as palavras: não estou preparada para partir”. A carta completa está no livro. É uma pena que a atriz, uma lenda vida e luz perpétua da dramaturgia nacional, tenha sido recentemente tão desrespeitada por Roberto Alvim, quando ele dirigia a Funarte, devido ao fato de Fernanda ter criticado o presidente Bolsonaro.
Epílogo: As memórias de Fernanda se encerram com uma comovente declaração de amor à vida e ao teatro. Quem ler o livro verá. A atriz inscreve em seu gesto a procura de uma descoberta constante, porque “quando temos muitas certezas sobre o nosso modo de agir, em cena ou na vida, corremos o risco de ficarmos circunscritos a uma técnica que nos imobiliza naquele processo domado, dominado, que nos congela. É a ponte com o imprevisto, o improvável, o absurdo que, muitas vezes, nos leva a renascer. No palco, atingir o impensável é fundamental. Essa é a batalha”. E festejando o dia de seus anos, junto com Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, escreve a artista, de forma trágica e por isso bela, consciente do fim da peça de sua vida, em seus quase 100 anos de idade: “Tudo vai se harmonizando para a despedida inevitável. Inenarrável. O que lamento é a vida durar apenas o tempo de um suspiro. Mas, acordo e canto”. Fernanda vive e permanecerá vivendo, pois sua centelha está plantada em cada talentoso artista brasileiro. Celebro essa presença!
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