Uma carta deseja
sempre encontrar seu destinatário. Quem escreve a missiva geralmente está à
procura de um outro para conversar. As palavras precisam cumprir um destino,
por isso desejam chegar a algum lugar, mesmo que seja dentro daqueles que as
escreveram. Ao mesmo tempo, toda carta é monólogo, conversa com o vazio, embora
a resposta talvez um dia chegue. Aliás, como escreveu Roland Barthes, em um de
seus “Fragmentos de um Discurso Amoroso”, “como desejo, a carta de amor espera
uma resposta”. Nesse sentido, sugeriu o francês, a carta é “ao mesmo tempo
vazia (codificada) e expressiva (carregada de vontade de significar o desejo)”.
Só quem ama escreve, mesmo que seja para não falar de amor. Só quem deseja pode
escrever uma carta de amor.
Mesmo não se
caracterizando como uma série de correspondências – o livro quase nada tem a
ver com o gênero epistolar -, é como carta, ou melhor, como um conjunto delas,
que leio a escrita dançante de Mariana Mello. São textos que viajam até o
leitor, entregando-se ao olhar curioso de quem abre o envelope para espiar
intimidades. A artista curitibana, que se apresenta como um híbrido de bailarina,
diretora cênica, performer, dramaturga e escritora, recentemente lançou o livro
“Anamnese Erótica” (2019), pela editora Medusa (a capa da Eliana Borges é
linda). Não à toa, seus fragmentos se apresentam como um prelúdio, ou seja, como
algo que vem antes de algo, como uma introdução a uma obra que se desenvolverá
depois. Toda a performance do livro se dá nesse prólogo. Aliás, o prelúdio é um
gênero musical bastante comum em balés, o que parece justificar a rica e plural
arte de Mariana Mello, a escrita de seu bailado, a dança de suas palavras em um
constante e bem ensaiado movimento poético. Faz sentido que Barthes, em “O
Prazer do Texto”, tenha escrito que um livro erótico representa menos a cena do
que sua expectativa, sua preparação. Um prelúdio é perfeito sob esse aspecto.
A escritura de
Mariana – evocando em mim, por vezes, a literatura da portuguesa Matilde
Campilho e da brasileira Ana Cristina Cesar - faz lembrar que, na arte da
palavra, antes de qualquer coisa é a própria língua que deseja. Essa parte de
nós cuja sensibilidade se inscreve com mais intensidade no ser. Não esquecer
que a língua da boca, rica em terminações nervosas, é lugar de prazer, de onde
saem as palavras e beijos, ambos objetos de excitação. Tal qual o lóbulo da
orelha, mamilos, nuca, coxas, dedos e sexo, a língua é coisa para ser sentida.
Na literatura, é ela o mais sincero e primevo objeto do desejo amoroso. Não
seria fortuito observar que na narrativa de Mariana Mello a língua e suas
palavras aparecem sempre relacionadas ao erotismo, dobrando-se numa perpétua
coreografia que afirma o desejo em cada um de seus gestos: “Inventava uma
língua ainda mais estranha, afirmava sutilmente, insinuava palavras secretas,
provocava sins e concordâncias. Estruturava frases infinitas para que ele não
pudesse deixar de olhá-los, como se meus lábios fossem a única coisa existente
nessa galáxia, como se todo o universo dependesse daquilo que meus lábios
diziam e de como meus lábios se moviam para fazer o mundo dizer”. A língua, assim,
é a nossa própria existência. Por ela, alimentamo-nos também. Na prosa poética
de Mariana, ao insistir no uso de “titânicas e precárias palavras”, aquela que
escreve descobre uma forma de existir, resistir e inventar o amor.
Uma anamnese, na
acepção médica, alude à consulta inicial que um profissional da saúde faz com o
paciente para diagnosticar uma doença, sendo dessa maneira uma conversa em
busca da cura. No mundo de vertigem da narradora de Mariana Mello, o corpo
parece por vezes padecer de uma doença alimentada pelo desejo, seu phármakon.
Não olvidar que essa expressão grega alude, ao mesmo tempo, a remédio e veneno,
como todo medicamento em algum sentido o é. O desejo que oprime e angustia é o
mesmo que dá vida, alimenta e faz um corpo se mover em seu existir. Numa
espécie de doença a narradora anota que as células mortas de seu corpo são
frutos de “milhares de amores abortados”.
No âmbito
filosófico, o termo anamnese alude ao processo de rememoração por meio do qual
o ser redescobre dentro de si as verdades de um mundo das ideias guardadas no
ente para além da experiência sensível. É por isso que a anamnese erótica de
Mariana é um “tatear a memória”, um rememorar o que passou, um reelaborar o
vivido por meio da escrita, um reencenar a peça de seu teatro amoroso, tentando
promover a partir da experiência da perda, da falta, da ausência um encontro
com ela mesma. Registre-se que a escritora, em 2018, publicou a peça teatral
“Noche de navidad o la familia”, pela Punto Aparte, da Universidad Nacional de
Colombia, em Bogotá, onde Mariana vive ensaiando possibilidades de hibridismo
entre artes e linguagens.
Naturalmente,
falar sobre o desejo se dá inevitavelmente de forma insatisfatória, nada mais
lhe restando além de ser o lugar de uma afirmação, como sugeriu Roland Barthes
sobre o discurso amoroso. Eu desejo. Eu desejo o que não possuo. Por isso
escrevo. Uma carta à procura de seu destinatário. Eu me movo nessa busca. Eu
desejo nesse vazio. Eu me perco. Eu me encontro. Eu me perco de novo. Eu danço.
A escrita de Marina assim observa: “Perpetuávamos um jogo que não agia apenas
para concretizar o desejo senão porque encontrava na impossibilidade e no
postergar do desejo uma chama vibrante e inesgotável. Uma chama capaz de
sobreviver mesmo sem oxigênio por muitos dias seguidos, alimentada apenas pela
promessa de concretização do desejo, ainda que num futuro improvável”.
A narradora de
Mariana Mello tem sempre a cidade como palco de seu teatro, de sua “sede sem
fim”, de suas caminhadas ébrias. A cidade é também o lugar do outro: “Queria
contar-te que sigo pensando nas ruas de teu bairro”. O desejo é também o de
tocar a cidade, “a sensação do sol às 14h17 da tarde ao sair do cinema em
frente ao cais”. O desejo pela cidade é também o desejo pelo outro, aquele que
lhe falta. Um corpo à procura de outro. Entre eles, uma peça de roupa, um
janela de vidro, um texto. São elementos que separam os corpos, no entanto se
abrem para um contato em seu limiar, o cheiro do corpo do outro na roupa como
um vestígio, o ser do outro no texto como um rastro, o botão da roupa como uma
janela ou um envelope da carta que se abre em desejo para o corpo do outro.
Lembremos que, para Barthes, em “O Prazer do Texto”, é a intermitência que é
erótica: a pele que cintila, por exemplo, entre duas peças de roupa, ou ainda,
a “encenação de um aparecimento-desaparecimento”. Ler sempre as páginas do
livro para lembrar – em anamnese - que numa carta amorosa ou erótica o leitor é
sempre o outro desejado. Chama que se acende pela palavra, esse corpo que
deseja. E o outro, mesmo em falta, estando sempre ali. O outro mora sempre um
pouco no nosso desejo. Inelutável vestígio. O livro foi escrito para cada um de
nós.
link: http://www.jornalcaicara.com.br/colunas/a-carta-danca-musica-poesia-de-mariana-mello-apontamentos-sobre-anamnese-erotica/
Nenhum comentário:
Postar um comentário