domingo, 15 de março de 2020

A carta-dança-música-poesia de Mariana Mello: apontamentos sobre Anamnese Erótica






Uma carta deseja sempre encontrar seu destinatário. Quem escreve a missiva geralmente está à procura de um outro para conversar. As palavras precisam cumprir um destino, por isso desejam chegar a algum lugar, mesmo que seja dentro daqueles que as escreveram. Ao mesmo tempo, toda carta é monólogo, conversa com o vazio, embora a resposta talvez um dia chegue. Aliás, como escreveu Roland Barthes, em um de seus “Fragmentos de um Discurso Amoroso”, “como desejo, a carta de amor espera uma resposta”. Nesse sentido, sugeriu o francês, a carta é “ao mesmo tempo vazia (codificada) e expressiva (carregada de vontade de significar o desejo)”. Só quem ama escreve, mesmo que seja para não falar de amor. Só quem deseja pode escrever uma carta de amor.
Mesmo não se caracterizando como uma série de correspondências – o livro quase nada tem a ver com o gênero epistolar -, é como carta, ou melhor, como um conjunto delas, que leio a escrita dançante de Mariana Mello. São textos que viajam até o leitor, entregando-se ao olhar curioso de quem abre o envelope para espiar intimidades. A artista curitibana, que se apresenta como um híbrido de bailarina, diretora cênica, performer, dramaturga e escritora, recentemente lançou o livro “Anamnese Erótica” (2019), pela editora Medusa (a capa da Eliana Borges é linda). Não à toa, seus fragmentos se apresentam como um prelúdio, ou seja, como algo que vem antes de algo, como uma introdução a uma obra que se desenvolverá depois. Toda a performance do livro se dá nesse prólogo. Aliás, o prelúdio é um gênero musical bastante comum em balés, o que parece justificar a rica e plural arte de Mariana Mello, a escrita de seu bailado, a dança de suas palavras em um constante e bem ensaiado movimento poético. Faz sentido que Barthes, em “O Prazer do Texto”, tenha escrito que um livro erótico representa menos a cena do que sua expectativa, sua preparação. Um prelúdio é perfeito sob esse aspecto.


A escritura de Mariana – evocando em mim, por vezes, a literatura da portuguesa Matilde Campilho e da brasileira Ana Cristina Cesar - faz lembrar que, na arte da palavra, antes de qualquer coisa é a própria língua que deseja. Essa parte de nós cuja sensibilidade se inscreve com mais intensidade no ser. Não esquecer que a língua da boca, rica em terminações nervosas, é lugar de prazer, de onde saem as palavras e beijos, ambos objetos de excitação. Tal qual o lóbulo da orelha, mamilos, nuca, coxas, dedos e sexo, a língua é coisa para ser sentida. Na literatura, é ela o mais sincero e primevo objeto do desejo amoroso. Não seria fortuito observar que na narrativa de Mariana Mello a língua e suas palavras aparecem sempre relacionadas ao erotismo, dobrando-se numa perpétua coreografia que afirma o desejo em cada um de seus gestos: “Inventava uma língua ainda mais estranha, afirmava sutilmente, insinuava palavras secretas, provocava sins e concordâncias. Estruturava frases infinitas para que ele não pudesse deixar de olhá-los, como se meus lábios fossem a única coisa existente nessa galáxia, como se todo o universo dependesse daquilo que meus lábios diziam e de como meus lábios se moviam para fazer o mundo dizer”. A língua, assim, é a nossa própria existência. Por ela, alimentamo-nos também. Na prosa poética de Mariana, ao insistir no uso de “titânicas e precárias palavras”, aquela que escreve descobre uma forma de existir, resistir e inventar o amor.




Uma anamnese, na acepção médica, alude à consulta inicial que um profissional da saúde faz com o paciente para diagnosticar uma doença, sendo dessa maneira uma conversa em busca da cura. No mundo de vertigem da narradora de Mariana Mello, o corpo parece por vezes padecer de uma doença alimentada pelo desejo, seu phármakon. Não olvidar que essa expressão grega alude, ao mesmo tempo, a remédio e veneno, como todo medicamento em algum sentido o é. O desejo que oprime e angustia é o mesmo que dá vida, alimenta e faz um corpo se mover em seu existir. Numa espécie de doença a narradora anota que as células mortas de seu corpo são frutos de “milhares de amores abortados”.
No âmbito filosófico, o termo anamnese alude ao processo de rememoração por meio do qual o ser redescobre dentro de si as verdades de um mundo das ideias guardadas no ente para além da experiência sensível. É por isso que a anamnese erótica de Mariana é um “tatear a memória”, um rememorar o que passou, um reelaborar o vivido por meio da escrita, um reencenar a peça de seu teatro amoroso, tentando promover a partir da experiência da perda, da falta, da ausência um encontro com ela mesma. Registre-se que a escritora, em 2018, publicou a peça teatral “Noche de navidad o la familia”, pela Punto Aparte, da Universidad Nacional de Colombia, em Bogotá, onde Mariana vive ensaiando possibilidades de hibridismo entre artes e linguagens. 


Naturalmente, falar sobre o desejo se dá inevitavelmente de forma insatisfatória, nada mais lhe restando além de ser o lugar de uma afirmação, como sugeriu Roland Barthes sobre o discurso amoroso. Eu desejo. Eu desejo o que não possuo. Por isso escrevo. Uma carta à procura de seu destinatário. Eu me movo nessa busca. Eu desejo nesse vazio. Eu me perco. Eu me encontro. Eu me perco de novo. Eu danço. A escrita de Marina assim observa: “Perpetuávamos um jogo que não agia apenas para concretizar o desejo senão porque encontrava na impossibilidade e no postergar do desejo uma chama vibrante e inesgotável. Uma chama capaz de sobreviver mesmo sem oxigênio por muitos dias seguidos, alimentada apenas pela promessa de concretização do desejo, ainda que num futuro improvável”.   
A narradora de Mariana Mello tem sempre a cidade como palco de seu teatro, de sua “sede sem fim”, de suas caminhadas ébrias. A cidade é também o lugar do outro: “Queria contar-te que sigo pensando nas ruas de teu bairro”. O desejo é também o de tocar a cidade, “a sensação do sol às 14h17 da tarde ao sair do cinema em frente ao cais”. O desejo pela cidade é também o desejo pelo outro, aquele que lhe falta. Um corpo à procura de outro. Entre eles, uma peça de roupa, um janela de vidro, um texto. São elementos que separam os corpos, no entanto se abrem para um contato em seu limiar, o cheiro do corpo do outro na roupa como um vestígio, o ser do outro no texto como um rastro, o botão da roupa como uma janela ou um envelope da carta que se abre em desejo para o corpo do outro. Lembremos que, para Barthes, em “O Prazer do Texto”, é a intermitência que é erótica: a pele que cintila, por exemplo, entre duas peças de roupa, ou ainda, a “encenação de um aparecimento-desaparecimento”. Ler sempre as páginas do livro para lembrar – em anamnese - que numa carta amorosa ou erótica o leitor é sempre o outro desejado. Chama que se acende pela palavra, esse corpo que deseja. E o outro, mesmo em falta, estando sempre ali. O outro mora sempre um pouco no nosso desejo. Inelutável vestígio. O livro foi escrito para cada um de nós.

Publicado originalmente no dia 14 de março de 2020, no Jornal Caiçara, de União da Vitória (PR).

link: http://www.jornalcaicara.com.br/colunas/a-carta-danca-musica-poesia-de-mariana-mello-apontamentos-sobre-anamnese-erotica/

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