Em uma passagem
do ensaio “O que é o contemporâneo?”, Giorgio Agamben exuma o poema “O século”,
de Osip Mandelstam, observando que as vértebras fraturadas do tempo, evocadas
pelo texto, dizem respeito não apenas ao tempo que concerne à vida do
indivíduo, mas principalmente ao tempo histórico e coletivo no qual o sujeito
está imerso. O poeta, no dizer do filósofo italiano, é essa fratura, “aquilo
que impede o tempo de compor-se e, ao mesmo tempo, o sangue que deve suturar a
quebra”. O presente que a contemporaneidade experimenta tem, então, as
“vértebras quebradas” e nós estaríamos exatamente no ponto dessa fratura. O
poema foi escrito na Rússia, em 1923, mas salta aos nossos olhos quase um século
depois ao lermos “Ossama, último livro”, de Dennis Radünz. A ossatura quebrada
de nosso tempo dá a medida da contemporaneidade da obra desse poeta que nasceu
em Blumenau e vive hoje em Florianópolis, tendo já publicado uma série de
livros. O mais recente, sobre o qual nos debruçamos aqui, veio a público pela
editora Letras Contemporâneas, em 2016, ganhando uma segunda edição em 2019.
Penso que “Ossama”
pode ser lido como uma espécie de baú de ossos minuciosamente exumados pelo
autor em sua lida poética. Aliás, “Exumação” é o nome do poema visual que
acompanha a publicação, lançando luz à leitura de uma série de textos que
formam um conjunto coeso e coerente. Nota-se que há um projeto muito bem
arquitetado por trás de sua construção, seja nos temas evocados, nas relações
de parentesco, na exímia sofisticação verbal, na composição de uma poética
incomum e capaz de produzir constantemente nos leitores um profundo
estranhamento.
Dennis Radünz,
no livro, não parece analisar a decomposição ou a decadência de um corpo –
posto que os ossos nus já estão desprovidos de carne. A vida póstuma aqui está
posta a nu, cabendo ao poeta, arqueólogo do presente, inventariar os bens de
nossas vértebras fraturadas. No entanto, para usar uma expressão de Walter
Benjamin, o poeta, mais do que fazer um inventário dos achados, “assinala no
terreno de hoje o lugar no qual é conservado o velho”. Mais do que agir de
forma informativa, o arqueólogo de “Ossama” sabe indicar o lugar exato onde se
apropriou de suas ossadas. Tocar em ossos é, nesse sentido, tocar o tempo. O
livro, por sinal, está dividido em duas partes que apontam para essa
perspectiva: Datação pelo Carbono e Datação por Luminescência. Pensar o
presente na poesia de Radünz é pensar em formas fósseis, ruínas, múmias incas,
moedas mortas, museu do mundo, cadáveres. A alegoria da caveira talvez nos
ajude a pensar um pouco mais no conjunto desses destroços.
A caveira, em um sentido benjaminiano, revela-nos
a imagem da natureza petrificada que é a marca daquilo que a história chegou a
ser. Susan Buck-Morss, leitora de Walter Benjamin, lembra que os poetas
alegóricos liam um significado similar no emblema da caveira, “o resíduo
esquelético de olhar vazio que alguma vez tinha sido o rosto humano”. Ossadas,
esqueletos, ossaturas, carcaças, escombros, ossamas, são alegorias de nosso
tempo e de nossas misérias. A mesma caveira e ossos cruzados que indicam a
presença de substâncias tóxicas em placas de transporte ou embalagens de
produtos químicos é aquela ostentada em emblemas costurados nos uniformes de
algumas unidades policiais voltadas para operações especiais. Seus sentidos
podem não ser os mesmos mas no fundo o que está em questão é o velho e
conhecido sinal que aponta para a morte. Eis o nosso memento mori e sua fácies hipocrática.
Importante
observar que para Walter Benjamin alegoria e mercadoria estão intimamente
ligadas. A alegoria opera a morte do sujeito clássico. A consequente
desintegração dos objetos permite o ressurgimento da alegoria no capitalismo
moderno. Ao comentar o pensamento do filósofo alemão, Jeanne Marie Gagnebin
conclui que “não há mais sujeito soberano num mundo onde as leis do mercado
regem a vida de cada um, mesmo daquele que parecia poder-lhes escapar: do
poeta”. No baú de Radünz os ossos/poemas são pensados também à luz da
mercadoria. No poema “Cinquenta cruzados novos”, podemos imaginar que o que
está em jogo é a perda do valor de troca da célula, bem como a perda do valor
de uso da poesia, a partir de uma alusão a Carlos Drummond de Andrade e à
cédula que estampou seu rosto nos anos oitenta: “os cruzados novos, custo caro
de Carlos, / quando circularam uma soma de ocasos / consumida em cruza de
papeis e moeda: / o gasto do rosto no inconsútil da cédula (...)”. Aliás, no
último poema do livro, “Economia das formas breves”, especula-se sobre o valor
monetário do livro e de cada poema em específico: “são somente trinta e um
esses poemas / os objetos de um livro exposto / ao preço de trinta e um reais
(apenas) / e a custo de despender os anos (...)”. A ideia de valor parece percorrer
“Ossama” no sentido econômico e artístico, o que nos convida a lembrar das
observações de Gagnebin sobre Benjamin e na forma como o filósofo leu
Baudelaire. A grande questão era pensar como a poesia poderia continuar
existindo numa sociedade comercializada e dominada pela técnica. Em Radünz, penso,
sua “Ossama”, símbolo da morte, é também um convite a uma reflexão sobre a vida
póstuma das coisas, bem como sobre a pervivência da poesia em tempos de pura
mercancia.
Que os ossos de
“Ossama” sejam o sinal da vida marcada também pela poesia cumpre-nos observar.
Vem daí a beleza politicamente poética do trabalho de Dennis Radünz. Uma ossada
não é apenas aquilo que nos resta depois da decomposição, de um bombardeio ou
de um incêndio. Ossos servem para manterem um corpo em pé, enquanto pulsa ainda
a vida em nós. São como poemas que sustentam um livro. E o livro de Dennis nos
mostra o quão viva, poética e política pode ser a imagem de um osso.
Foto: Ayrton Cruz
Vida e morte
parecem funcionar como os dois lados de uma mesma moeda. A ideia de pervivência
está condicionada por essa simultaneidade. Georges Didi-Huberman, em “Ser
Crânio”, evoca a palavra “Átrio” para pensar em seus vários sentidos,
representando ao mesmo tempo uma ideia de lugar e uma ideia de ser. Átrio
representa uma passagem, um pórtico exterior, bem como um terreno livre que
serve de ossário ou de cemitério. Serve também para designar a intimidade de um
ser, o abismo de seu pensamento. Portanto, esse lugar de morte é também o espaço
de vida, da existência do ser. O ensaísta francês aponta para os “átrios da
língua” de que nos fala Henri Maldiney, que são “moradas do pensamento”,
indicando o estado nascente da língua, singularidade expressada, por exemplo,
por um poema, por uma obra de arte. Maldiney certa vez escreveu que só os
poetas habitam os átrios da língua. Curioso perceber que no átrio a mesma
vocação do poema para os nasceres e brotares da língua é aquela que representa
o espaço, o lugar, onde se guardam os ossos. No livro de Radünz, a morte é esse
átrio, museu de ossos fraturados, que guarda também a vida pujante da poesia
plena, explorando uma composição literária que pelo esmero e dicção faz lembrar
por vezes os versos de João Cabral de Melo Neto.
Contemplemos
brevemente algumas peças desse ossário. O poema “Terrábile” relembra o
rompimento da barragem de Minas Gerais que tanto terror trouxe à natureza e à
população: “um rio irremovível erra / irrompendo nas terrinas / repletas de
terror amaro / o barral ruim das minas (...)”. Em tempos de pandemia, a leitura do
poema “Entressonho” ganha sentidos proféticos ao filmar uma peste. Nele,
figuramos como o “Emparedado” de outro catarinense, o poeta Cruz e Sousa. Não
há para onde fugir. E entre os corpos de vítimas, chama a atenção uma
enfermeira “tomada por uma luminosidade que lateja sob a transparência da pele
– eu sei, ela também foi contaminada”. Em “Olha-Podrida”, encontramos a alusão
a uma iguaria culinária estranhamente associada a homens suicidados por
ditaduras. São eles os “fulminados”, “os desterrados carcomidos”, os “sem
matéria”, fadados a engrossar com sua carne – com seus “dedos decepados” e
“revolvidos em retalhos” -, o caldo atroz da violência. Seus restos estarão fadados a permanecerem
desaparecidos até que alguém encontre seus ossos em algum cemitério
clandestino. O subtítulo do poema “As Cidades Sedadas” inscreve o livro em uma
certa visão de Brasil: Do genocídio indígena à destruição ambiental, uma “carta
do achamento do desastre”. São apenas alguns exemplos de um livro profundamente
sintonizado com o presente e com a nossa história. “Ossama” não abre mão de
pensar poética e politicamente caminhos para seus versos. Que poesia ainda é
possível escrever depois de tantos desastres?
Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR)
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