quinta-feira, 25 de junho de 2020

“Ossama, último livro”, de Dennis Radünz, e a arqueologia poética e política do presente




Em uma passagem do ensaio “O que é o contemporâneo?”, Giorgio Agamben exuma o poema “O século”, de Osip Mandelstam, observando que as vértebras fraturadas do tempo, evocadas pelo texto, dizem respeito não apenas ao tempo que concerne à vida do indivíduo, mas principalmente ao tempo histórico e coletivo no qual o sujeito está imerso. O poeta, no dizer do filósofo italiano, é essa fratura, “aquilo que impede o tempo de compor-se e, ao mesmo tempo, o sangue que deve suturar a quebra”. O presente que a contemporaneidade experimenta tem, então, as “vértebras quebradas” e nós estaríamos exatamente no ponto dessa fratura. O poema foi escrito na Rússia, em 1923, mas salta aos nossos olhos quase um século depois ao lermos “Ossama, último livro”, de Dennis Radünz. A ossatura quebrada de nosso tempo dá a medida da contemporaneidade da obra desse poeta que nasceu em Blumenau e vive hoje em Florianópolis, tendo já publicado uma série de livros. O mais recente, sobre o qual nos debruçamos aqui, veio a público pela editora Letras Contemporâneas, em 2016, ganhando uma segunda edição em 2019.
Penso que “Ossama” pode ser lido como uma espécie de baú de ossos minuciosamente exumados pelo autor em sua lida poética. Aliás, “Exumação” é o nome do poema visual que acompanha a publicação, lançando luz à leitura de uma série de textos que formam um conjunto coeso e coerente. Nota-se que há um projeto muito bem arquitetado por trás de sua construção, seja nos temas evocados, nas relações de parentesco, na exímia sofisticação verbal, na composição de uma poética incomum e capaz de produzir constantemente nos leitores um profundo estranhamento.

      
Desenho de Jules Laforgue

Dennis Radünz, no livro, não parece analisar a decomposição ou a decadência de um corpo – posto que os ossos nus já estão desprovidos de carne. A vida póstuma aqui está posta a nu, cabendo ao poeta, arqueólogo do presente, inventariar os bens de nossas vértebras fraturadas. No entanto, para usar uma expressão de Walter Benjamin, o poeta, mais do que fazer um inventário dos achados, “assinala no terreno de hoje o lugar no qual é conservado o velho”. Mais do que agir de forma informativa, o arqueólogo de “Ossama” sabe indicar o lugar exato onde se apropriou de suas ossadas. Tocar em ossos é, nesse sentido, tocar o tempo. O livro, por sinal, está dividido em duas partes que apontam para essa perspectiva: Datação pelo Carbono e Datação por Luminescência. Pensar o presente na poesia de Radünz é pensar em formas fósseis, ruínas, múmias incas, moedas mortas, museu do mundo, cadáveres. A alegoria da caveira talvez nos ajude a pensar um pouco mais no conjunto desses destroços.
 A caveira, em um sentido benjaminiano, revela-nos a imagem da natureza petrificada que é a marca daquilo que a história chegou a ser. Susan Buck-Morss, leitora de Walter Benjamin, lembra que os poetas alegóricos liam um significado similar no emblema da caveira, “o resíduo esquelético de olhar vazio que alguma vez tinha sido o rosto humano”. Ossadas, esqueletos, ossaturas, carcaças, escombros, ossamas, são alegorias de nosso tempo e de nossas misérias. A mesma caveira e ossos cruzados que indicam a presença de substâncias tóxicas em placas de transporte ou embalagens de produtos químicos é aquela ostentada em emblemas costurados nos uniformes de algumas unidades policiais voltadas para operações especiais. Seus sentidos podem não ser os mesmos mas no fundo o que está em questão é o velho e conhecido sinal que aponta para a morte. Eis o nosso memento mori e sua fácies hipocrática.
Importante observar que para Walter Benjamin alegoria e mercadoria estão intimamente ligadas. A alegoria opera a morte do sujeito clássico. A consequente desintegração dos objetos permite o ressurgimento da alegoria no capitalismo moderno. Ao comentar o pensamento do filósofo alemão, Jeanne Marie Gagnebin conclui que “não há mais sujeito soberano num mundo onde as leis do mercado regem a vida de cada um, mesmo daquele que parecia poder-lhes escapar: do poeta”. No baú de Radünz os ossos/poemas são pensados também à luz da mercadoria. No poema “Cinquenta cruzados novos”, podemos imaginar que o que está em jogo é a perda do valor de troca da célula, bem como a perda do valor de uso da poesia, a partir de uma alusão a Carlos Drummond de Andrade e à cédula que estampou seu rosto nos anos oitenta: “os cruzados novos, custo caro de Carlos, / quando circularam uma soma de ocasos / consumida em cruza de papeis e moeda: / o gasto do rosto no inconsútil da cédula (...)”. Aliás, no último poema do livro, “Economia das formas breves”, especula-se sobre o valor monetário do livro e de cada poema em específico: “são somente trinta e um esses poemas / os objetos de um livro exposto / ao preço de trinta e um reais (apenas) / e a custo de despender os anos (...)”. A ideia de valor parece percorrer “Ossama” no sentido econômico e artístico, o que nos convida a lembrar das observações de Gagnebin sobre Benjamin e na forma como o filósofo leu Baudelaire. A grande questão era pensar como a poesia poderia continuar existindo numa sociedade comercializada e dominada pela técnica. Em Radünz, penso, sua “Ossama”, símbolo da morte, é também um convite a uma reflexão sobre a vida póstuma das coisas, bem como sobre a pervivência da poesia em tempos de pura mercancia.
Que os ossos de “Ossama” sejam o sinal da vida marcada também pela poesia cumpre-nos observar. Vem daí a beleza politicamente poética do trabalho de Dennis Radünz. Uma ossada não é apenas aquilo que nos resta depois da decomposição, de um bombardeio ou de um incêndio. Ossos servem para manterem um corpo em pé, enquanto pulsa ainda a vida em nós. São como poemas que sustentam um livro. E o livro de Dennis nos mostra o quão viva, poética e política pode ser a imagem de um osso.

Foto: Ayrton Cruz

Vida e morte parecem funcionar como os dois lados de uma mesma moeda. A ideia de pervivência está condicionada por essa simultaneidade. Georges Didi-Huberman, em “Ser Crânio”, evoca a palavra “Átrio” para pensar em seus vários sentidos, representando ao mesmo tempo uma ideia de lugar e uma ideia de ser. Átrio representa uma passagem, um pórtico exterior, bem como um terreno livre que serve de ossário ou de cemitério. Serve também para designar a intimidade de um ser, o abismo de seu pensamento. Portanto, esse lugar de morte é também o espaço de vida, da existência do ser. O ensaísta francês aponta para os “átrios da língua” de que nos fala Henri Maldiney, que são “moradas do pensamento”, indicando o estado nascente da língua, singularidade expressada, por exemplo, por um poema, por uma obra de arte. Maldiney certa vez escreveu que só os poetas habitam os átrios da língua. Curioso perceber que no átrio a mesma vocação do poema para os nasceres e brotares da língua é aquela que representa o espaço, o lugar, onde se guardam os ossos. No livro de Radünz, a morte é esse átrio, museu de ossos fraturados, que guarda também a vida pujante da poesia plena, explorando uma composição literária que pelo esmero e dicção faz lembrar por vezes os versos de João Cabral de Melo Neto. 
Contemplemos brevemente algumas peças desse ossário. O poema “Terrábile” relembra o rompimento da barragem de Minas Gerais que tanto terror trouxe à natureza e à população: “um rio irremovível erra / irrompendo nas terrinas / repletas de terror amaro / o barral ruim das minas (...)”. Em tempos de pandemia, a leitura do poema “Entressonho” ganha sentidos proféticos ao filmar uma peste. Nele, figuramos como o “Emparedado” de outro catarinense, o poeta Cruz e Sousa. Não há para onde fugir. E entre os corpos de vítimas, chama a atenção uma enfermeira “tomada por uma luminosidade que lateja sob a transparência da pele – eu sei, ela também foi contaminada”. Em “Olha-Podrida”, encontramos a alusão a uma iguaria culinária estranhamente associada a homens suicidados por ditaduras. São eles os “fulminados”, “os desterrados carcomidos”, os “sem matéria”, fadados a engrossar com sua carne – com seus “dedos decepados” e “revolvidos em retalhos” -, o caldo atroz da violência.  Seus restos estarão fadados a permanecerem desaparecidos até que alguém encontre seus ossos em algum cemitério clandestino. O subtítulo do poema “As Cidades Sedadas” inscreve o livro em uma certa visão de Brasil: Do genocídio indígena à destruição ambiental, uma “carta do achamento do desastre”. São apenas alguns exemplos de um livro profundamente sintonizado com o presente e com a nossa história. “Ossama” não abre mão de pensar poética e politicamente caminhos para seus versos. Que poesia ainda é possível escrever depois de tantos desastres?


Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR)

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