Foto: Acervo Cristiano Moreira
Apreciador da
produção literária paranaense - dos simbolistas aos contemporâneos -, confesso
que, ao longo de minha vida, dediquei pouco tempo à leitura de autores catarinenses. A arte da palavra é uma coisa que não tem fronteiras, mas acabamos
sempre associando autores a seus espaços sociais. E, de certa forma, aqueles
que escrevem são influenciados por esse fator, sendo ao mesmo tempo elementos
capazes de transcender a tal espaço. Para escritores, não existem limites, mas
apenas limiares. Tudo isso para dizer que um escritor está dentro e fora de sua própria casa. De longa data, sou um admirador de Cruz e Sousa, Ernani Rosas,
Lindolf Bell e Péricles Prade. Já li com prazer livros da Urda Alice Kluger,
Enéas Athanázio, Salim Miguel entre outros. Dos contemporâneos conheço quase
nada. No entanto, há algumas semanas tenho descoberto e lido com muito encanto
e interesse poetas do presente como Dennis Radünz e Cristiano Moreira.
Cristiano
Moreira, além de poeta, é o idealizador de um belo refúgio integrado à Mata
Atlântica, no interior do município de Rodeio, em Santa Catarina. Trata-se da Quinta da Gávea, uma propriedade rural que foi transformada num quintal
criativo. Lá, o visitante pode, além de se integrar à bela natureza do Vale do
Itajaí, vivenciar uma experiência poética, conhecendo a Biblioteca Rural,
coordenada pelo Instituto Caracol, bem como a Oficina Tipográfica Papel do
Mato, dirigida pela Papaterra Editora e Produções Culturais. Portanto, a Quinta da Gávea, trabalhando com o conceito de economia criativa, alia o
serviço de hospedagem a um espaço de arte e educação. Com recorrência,
Cristiano promove eventos culturais naquele curioso lugar, que é uma espécie
ecológica de reserva poética.
Foto: Acervo Cristiano Moreira
Foto: Acervo Cristiano Moreira
Foto: Acervo Cristiano Moreira
Foto: Acervo Cristiano Moreira
Há alguns anos,
li dele o belo “Dengo Dengo” (Papaterra, 2016), um livro infantil para todas as idades. Ilustrado
pela artista argentina Yannet Briggiler, o poema, em seu costado e convés, é
uma obra marítima com gosto de sal e cais. Trata de narrar a aventura de um
barco durante uma tormenta em alto mar. Ele só poderia ter sido escrito por
alguém que ama as águas profundas e a elas é fiel. Aliás, Cristiano, esse
calafate de palavras, já morou em Navegantes, onde foi ajudante de carpinteiro
naval. A história do barco e de seu sonho é um livro sobre o amor e a esperança,
evocando em minha memória afetiva o clássico “O velho e o mar”, de Ernest
Hemingway, com o sabor sonoro de um João Cabral de Melo Neto.
O trabalho de
carpintaria é uma atividade que nos ajuda a dimensionar a arte de Cristiano
Moreira. Recentemente, o poeta escreveu e confeccionou em sua Oficina
Tipográfica o precioso “Imagens da Madeira” (Papel do Mato, 2019), que reúne um
conjunto de poemas inspirados no trabalho dos mestres carpinteiros e calafates,
artesãos da ribeira do Itajaí-Açu. Um deles: “O carpinteiro sob sol / segura
cunha contra o barco / como farpa / dentro de um olho vê / o barco, esta
palavra / crescer em seu corpo”. O livro foi impresso pelo próprio Cristiano e
contou com o projeto gráfico de Jakson Chiappa. A tiragem foi de 25 exemplares.
Carpintaria e Tipografia são artes que combinam e inspiram o trabalho literário
do escritor.
Foto: Acervo Cristiano Moreira
Foto: Acervo Cristiano Moreira
Foto: Acervo Cristiano Moreira
A tipografia,
que alia um tipo de artesania a um tipo de técnica, no sentido da maquinaria
que permite a reprodução (o assunto convida a muitas reflexões no âmbito da
literatura), inspira um dos mais recentes livros de Cristiano Moreira.
Refiro-me ao “Dente de Cachorro” (Nave Editora, 2018), que me surpreendeu pela
beleza poética, aliando com força o minucioso trabalho verbal a uma atualidade
política que traz a poesia para o debate de nosso tempo. O livro merece
certamente uma leitura muito mais minuciosa do que aquela presente nas vagas e
imprecisas impressões que apresentamos aqui. Esse dente merece um longo texto
só para ele, um artigo ou um ensaio que esmiuçasse os sentidos do poema que dá
nome ao livro, que lesse de maneira mais aprofundada a beleza dos espaços entre
suas palavras, espaços que fazem jus ao seu título, já que “dente de cachorro”
significa aqui “erro tipográfico caracterizado pela inserção exagerada de
espaços entre letras e palavras”. Esse vácuo, essa lacuna, esse hiato, esse
dente de cachorro aqui se transforma em recurso, em imagem espacial que dá
potência à poesia. Seria necessário atentar para a fotografia da capa trazendo
um tipo gráfico dentro da boca de um cão, o Sumério. Entre seus dentes, a
palavra afiada e potente como um latido. O poeta não morde, late, mas o latido
morde o mundo. Parafraseando o poeta Pádua Fernandes, que figura em uma das
epígrafes do livro, o que temos aqui não são poemas e sim latidos. Não há um
autor, mas uma fera. É uma imagem bonita. No entanto, é claro, existe o poeta e
suas armas são as palavras: “(...) no estado de exceção / importa resistir à
investida / com poemas / e outras formas de vida”. Os versos aqui não conseguem
reproduzir o aspecto visual do poema que é fundamental para a sua apreciação.
Há que se ler no livro.
“Anti-tipografia”,
o primeiro poema da obra (na verdade o segundo, porque o primeiro está na
capa), nos mostra em que terreno pisamos. A arte da tipografia dá lugar a
primeira (má) impressão, infelizmente aquela que fica. Trata-se do que temos
visto reinar atualmente no Brasil: “[bois sem canga no planalto] / puseram o
país na prensa / com imprensa um tanto torpe / lavraram leis, livraram réus /
chutaram alto / e passaram a imprimir o golpe”. “Anti-tipografia” é uma arte
que aponta para a ausência de arte na política de nossa governança, que nem
chega a estetizá-la.
O clima de
intranquilidade e a consciência da desgraça vai imprimindo ao longo das páginas
o tom do livro. O poema “Sinuca”, que imagina uma conversa do poeta com o pai,
inspira-se no jogo aclamado pelo escritor João Antônio para falar de tempos
difíceis. Estamos numa sinuca, diz o ditado popular. O boteco é um microcosmo
do país. Lá o taco ataca a bola como “lá fora o pau come / bala de borracha /
acerta o estudante / feito bola 8”. “Sinuca” aponta para a vida como uma
política de jogo. O que de certa forma vemos também no poema “Infância do
pife”, que a partir de um jogo de cartas elabora um rico jogo de imagens. A
escritura como jogo. Em “Desmoradas”, o poeta aponta para a despolitização dos
corpos e de suas moradas desmoronadas. Em “Novena contra chumbo”, os versos nos
convidam a seguir adiante, já que “o poema ainda é à prova de balas”. Cristiano
Moreira faz o levante com a voz. O enigma de textos como “Deserto, de resto” e
“Zezuíííno”, este um dos mais bonitos do livro, já alimentou muitas releituras
de minha parte. Outro dos mais complexos, pela sua riqueza, é o poema “A palha
alegra o homem”, que insere no mesmo mosaico figuras como o Mágico de Oz, Osman
Lins, Oliverio Girondo, Walter Benjamin, Katharina Detzel, entre outras, que
devolvem potência à imagem do espantalho. Há ali, a meu ver, o verso mais belo
do livro, polifônico com seu sotaque catarinense, “lá há só eco seco
sobre saco de supilho”.
Leio e releio o
livro de Cristiano Moreira. Sinto-me transformado em um cão. O livro afina o
meu faro para o presente da literatura do Estado em que nasci, e afia os meus
dentes para o presente desse país exilado em que ainda vivo.
Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR)
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