domingo, 27 de dezembro de 2020

Viagem ao redor do jardim: folhescendo



Cavo aqui a língua, labuto lento a linha, avio feito um vate aqui a via, abrindo assim um sulco, esse ventre agrário da página, essa vinha que é fonte da vida. Vegeto na semeadura e, depois de regá-la, assisto ao broto que cresce em ramo na refloresta da roça. Essa morada é a seu modo uma mônada de minhocas, uma galáxia de formigas e lesmas. Cruzo o templo em meio a um bosque de segredos e seus aromas frescos num poema de Baudelaire, assim como quem dignamente cultiva o hábito de lavar as mãos antes de mexer na terra ou como quem sente que só a Natureza com seus vivos pilares é que sabe mesmo o tempo do verbo madurar. Descobri essas coisas em um livro do século XVIII. Leio nele que Goethe amava a poesia e as plantas. Leio também que Salomon Maimon, pensando obviamente no autor de Fausto, se perguntava o que a arte da poesia tem a ver com o estudo dos vegetais. Decerto a vocação para as semelhanças, o poder de escolher entre uma e outra, como quando falamos assim pra dizer assado e no fim elas se correspondem. E vamos percebendo que ambas diferem mas se tocam nos seus quereres. Folhescer é, de fato, a arte de se desdobrar de si mesmo, ou melhor, de metamorfosear pecíolos em folhas. Urge em seu eito também soltá-las à terra, abandoná-las ao vento, (in)ventando-as, deixando que ele as vire, do seu jeito, vertendo-as, assim, ao seu avesso. É pelar o galho uma vez ao ano para que as folhas, sinfonicamente, brotem de novo em seu eterno retorno tocando um pianíssimo ou ainda seu menos vivaz mezzo piano. Isso diz muito sobre a vida secreta das árvores, de como elas se comunicam entre si ou sobre a unidade no múltiplo, de como a folha guarda nela mesma uma carta na manga, a planta originária. Sobre como um alemão encontrou em outro um modelo para o seu modelo de história. Sobre como o poema está na palavra ou como ela ou um conjunto delas estão contidas nele. Assim como a folha está na semente e assim como esta desfolhada ou aberta está naquela ou em qualquer outra. Assim como um poeta tropical escreveu que “variados são os modos como uma coisa está em outra coisa”, ou que “o homem não está na cidade como uma árvore está em outra” ou que “uma árvore está em qualquer de suas folhas”. Assim como o cientista e o observador estão na coisa observada e num átimo se fundem a ela.  Assim como o anarquismo das trepadeiras nos convida à revolução ou como o veneno num copo-de-leite ou numa coroa-de-cristo nos ajuda a entender a vocação política das plantas. Assim como os matos são sempre rebeldes dentro ou fora do levante. Assim como carpir ou roçar é uma forma de organizar o caos mas também furtar a liberdade do jardim. Assim como a obra está na arte da natureza mais do que a arte na natureza da obra. Assim como numa brincadeira da infância as folhas riscadas sobre o papel se espelham no verso dando origem a uma outra folha sobre a mesma folha. Assim como a planta semeia no jardineiro seu floreio para florescer depois em metáfora. Assim como abri uma edição antiga de Gonzaga Duque e encontrei ao acaso um trevo seco de quatro folhas, percebendo ali uma mensagem cifrada que alguém lançou para alguém há mais de cem anos. Assim como no catimbó ou no terecô ou no candomblé de caboclo as folhas e as rezas sabem de curar, espantar maus espíritos, tirar o carrego e alimentar o axé, nos ensinando que tanto os poemas como as plantas salvam algo em nós. Assim como as folhas são páginas da árvore ou apenas uma relva de Whitman. Assim como uma ideia plantada e cultivada é mais forte que um prédio ou um pedaço de pau. Assim como os naturalistas ao longo do século XIX sempre precisaram dos pintores na ausência da fotografia ou de dotes pictóricos. Assim como quando masco cinco folhas de ora-pro-nóbis só para sentir o seu sumo. É um costume meu assim como de quem se devota a enverdecer no jardim vendo em seus matizes a riqueza de muitos tons, o verde-bandeira, o musgo, o oliva, o floresta, o jade, o turquesa, o esmeralda etc. Quantos verdes dentro do verde? Às três da tarde, como um bocó ou um catador de caracóis ou um velho Manoel sento sob o sol dessa floresta e me arvoro.   


Caio Ricardo Bona Moreira

 (Poema escrito para a "Virada Vegetal", com a curadoria de Cristiano Moreira, para o projeto Quinta Maldita, de Demétrio Panarotto).

https://www.youtube.com/watch?v=YLrLuztZfjo


 

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