Cavo aqui a língua,
labuto lento a linha, avio feito um vate aqui a via, abrindo assim um sulco, esse
ventre agrário da página, essa vinha que é fonte da vida. Vegeto na semeadura e,
depois de regá-la, assisto ao broto que cresce em ramo na refloresta da roça. Essa
morada é a seu modo uma mônada de minhocas, uma galáxia de formigas e lesmas.
Cruzo o templo em meio a um bosque de segredos e seus aromas frescos num poema
de Baudelaire, assim como quem dignamente cultiva o hábito de lavar as mãos
antes de mexer na terra ou como quem sente que só a Natureza com seus vivos
pilares é que sabe mesmo o tempo do verbo madurar. Descobri essas coisas em um
livro do século XVIII. Leio nele que Goethe amava a poesia e as plantas. Leio também
que Salomon Maimon, pensando obviamente no autor de Fausto, se perguntava o que
a arte da poesia tem a ver com o estudo dos vegetais. Decerto a vocação para as
semelhanças, o poder de escolher entre uma e outra, como quando falamos assim
pra dizer assado e no fim elas se correspondem. E vamos percebendo que ambas
diferem mas se tocam nos seus quereres. Folhescer é, de fato, a arte de se
desdobrar de si mesmo, ou melhor, de metamorfosear pecíolos em folhas. Urge em
seu eito também soltá-las à terra, abandoná-las ao vento, (in)ventando-as,
deixando que ele as vire, do seu jeito, vertendo-as, assim, ao seu avesso. É
pelar o galho uma vez ao ano para que as folhas, sinfonicamente, brotem de novo
em seu eterno retorno tocando um pianíssimo
ou ainda seu menos vivaz mezzo piano.
Isso diz muito sobre a vida secreta das árvores, de como elas se comunicam
entre si ou sobre a unidade no múltiplo, de como a folha guarda nela mesma uma
carta na manga, a planta originária. Sobre como um alemão encontrou em outro um
modelo para o seu modelo de história. Sobre como o poema está na palavra ou
como ela ou um conjunto delas estão contidas nele. Assim como a folha está na
semente e assim como esta desfolhada ou aberta está naquela ou em qualquer
outra. Assim como um poeta tropical escreveu que “variados são os modos como uma
coisa está em outra coisa”, ou que “o homem não está na cidade como uma árvore
está em outra” ou que “uma árvore está em qualquer de suas folhas”. Assim como
o cientista e o observador estão na coisa observada e num átimo se fundem a ela. Assim como o anarquismo das trepadeiras nos
convida à revolução ou como o veneno num copo-de-leite ou numa coroa-de-cristo
nos ajuda a entender a vocação política das plantas. Assim como os matos são
sempre rebeldes dentro ou fora do levante. Assim como carpir ou roçar é uma
forma de organizar o caos mas também furtar a liberdade do jardim. Assim como a
obra está na arte da natureza mais do que a arte na natureza da obra. Assim
como numa brincadeira da infância as folhas riscadas sobre o papel se espelham
no verso dando origem a uma outra folha sobre a mesma folha. Assim como a
planta semeia no jardineiro seu floreio para florescer depois em metáfora.
Assim como abri uma edição antiga de Gonzaga Duque e encontrei ao acaso um
trevo seco de quatro folhas, percebendo ali uma mensagem cifrada que alguém
lançou para alguém há mais de cem anos. Assim como no catimbó ou no terecô ou
no candomblé de caboclo as folhas e as rezas sabem de curar, espantar maus
espíritos, tirar o carrego e alimentar o axé, nos ensinando que tanto os poemas
como as plantas salvam algo em nós. Assim como as folhas são páginas da árvore
ou apenas uma relva de Whitman. Assim como uma ideia plantada e cultivada é
mais forte que um prédio ou um pedaço de pau. Assim como os naturalistas ao
longo do século XIX sempre precisaram dos pintores na ausência da fotografia ou
de dotes pictóricos. Assim como quando masco cinco folhas de ora-pro-nóbis só
para sentir o seu sumo. É um costume meu assim como de quem se devota a
enverdecer no jardim vendo em seus matizes a riqueza de muitos tons, o
verde-bandeira, o musgo, o oliva, o floresta, o jade, o turquesa, o esmeralda
etc. Quantos verdes dentro do verde? Às três da tarde, como um bocó ou um
catador de caracóis ou um velho Manoel sento sob o sol dessa floresta e me
arvoro.
Caio Ricardo Bona Moreira
(Poema escrito para a "Virada Vegetal", com a curadoria de Cristiano Moreira, para o projeto Quinta Maldita, de Demétrio Panarotto).
https://www.youtube.com/watch?v=YLrLuztZfjo
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