“O hierofante
avisa que o final pode estar no início”. Abro ao léu o livro “Viseira”
(7Letras, 2021), de Duda Las Casas. Faz sol depois do almoço. Toca na vitrola a
“Nuvem Cigana”, do Milton. A capa é vermelha e na quarta-feira isso me diz
muito sobre o que estou prestes a ler. Poderia ser um I Ching, por ser
composto de várias camadas sobrepostas. Todo bom livro é mesmo um livro das
mutações. Nunca se entra duas vezes no mesmo Heráclito. Nunca se escreve ou se
lê o mesmo poema duas vezes. Ou algo ou alguém me assopra que nunca serei o
mesmo depois de ler essa obra. “Se você quiser eu danço com você no pó da
estrada”, canta o Milton. “Pó, poeira e ventania”. E já vou pensando que é um
aviso. Mas o que isso tem a ver com os poemas da Duda?
Volto ao que estava dizendo, que abro ao léu o livro dela. Para ver qual é a mensagem. Faço isso como quem abre um I Ching. Tem gente que lê assim a bíblia também, ou um livro espírita, ou aquela edição de bolso chamada “Minutos de Sabedoria”. Abro “Viseira” ao léu. Encontro o poema: “Desmarquei o casamento / as bebidas estão na sala / os bem-casados / são devorados toda manhã”. O que isso quer me dizer? Insisto no acaso. Fecho o volume. Abro novamente e me cai o “dura na queda”: “Olhar para o alto / no grito do falcão / o / aviso / para antecipar o voo / em pleno ar / ao / invés de cair / eu / poderia apenas / ter feito um poema”. Tem a minha cara, diz a poeta, porque a arte nos ajuda a colocar as feridas para fora. Aí penso em adotar a poesia como uma espécie de curandeira, ou uma orientadora espiritual, a pitonisa de meu Delfos particular.
Como cartas de
tarô, os textos de Las Casas são coelhos que vou tirando da cartola. Mas a
mágica é só dela, embora na borra do café (“Caraca / É um / Caracol” ou “você
consegue ver esse cavalo marinho?”), nas nuvens do céu, nos poemas, nas
vísceras ou no canto dos pássaros, cada áugure ou arúspice enxerga apenas o que deseja ver. Como boa colecionadora de imagens, a poeta carioca,
que é também diretora de TV e cinema, encontrou na literatura uma forma de
disseminar os enigmas de seu oráculo. Aliás, há um certo misticismo que invade
o livro de Duda expandido do jogo de seus Arcanos (ou de seus Acasos). No poema de abertura, a
Imperatriz recomenda: “Mulher / se quiser parar de vomitar / seja uma poeta
discreta”. Em outro momento, aquela que escreve inventa um mapa, para terminar
dizendo: “Carlos / o que seria amor de verdade / para quem tem uma vênus em
Peixes?”. Adiante, na Libânia, por sopro, um curandeiro viu o risco de sua mão
lhe garantindo um filho e sucesso tardio. Assim como a previsão da cigana de
Brasília é clara: “homens de barba têm mais bactérias que cachorros”. Em outro
momento, a poeta confessa: “A minha sorte / é que Júpiter voltou a andar para
frente / desde segunda”. Em “o universo está do seu lado”: “Faz silêncio no Rio
/ a cartomante diz / quando você se tocar / já estarei em outra”. Seus gestos
são também de superstição, por isso, como prometido, ela deixou os sapatos
desvirados para que alguém não partisse.
Desconfio que por
trás de cada poema de Duda há um pedaço de sua vida para além do jogo. Quem já
aprendeu a andar novamente percebe mais fácil o que ela está a dizer. Decifrar
isso nunca é desvendar de todo o mistério, mas mergulhar em outros, porque cada carteado está sempre a nos dizer novas coisas. Um pedaço
cifrado da vida como as cartas de um baralho ou o jogo de búzios é o que resta
em cada poema. Um Hierofante mandando uma mensagem, ou um Orixá. Lá na página
47, o jogo está aberto como mostra a fotografia, mas como lê-la? E lá embaixo
ou atrás da viseira - esse pedaço de elmo ou capacete -, está escondido o rosto
de Maria Eduarda. E o livro vai fazendo o raio-X da poeta, de seu corpo, seus
ossos e parafusos, que a uns não dizem nada e a outros muito, como aqueles
exames de ressonância magnética, tomografia computadorizada ou
ultrassonografia. Aí, Duda me lembra a Ana, em “A teus pés”, com suas luvas de
pelica. Quem é essa que estou a ler?, pergunto-me a cada instante.
E, depois de escrever este texto, fico pensando se uma crítica, ou melhor, uma leitura – essa ou qualquer outra - pode ser tão sugestiva quanto um jogo de tarot? Eu me daria por satisfeito se ela fosse tão bonita quanto o poema “Podia te amar como amei as mulheres”, lá na página 49. Milton segue cantando ainda, “Ventania, flor de Vento / eu danço com você o que você dançar / se você deixar o coração bater sem medo”. Além de Carlos, outros interlocutores vão surgindo nas páginas de “Viseira”, o Julio, o Raul, este por sinal que é convidado a comer com ela “os sonhos / com kombucha”. No português de Duda, aliás, o sonho é uma bomba. E a escritora já imagina a cena: “Explodiremos / e subitamente / estaremos todos / cobertos de creme”. O livro mostra - como o poema “Vermelho Vivo” atesta -, com sua colagem de frases, não como a poesia é cheia de cenas do dia a dia, mas como o dia a dia é cheio de cenas poéticas. O livro vermelho de Duda tem uma gota de sangue em cada poema. Ele mostra que a vida pode ser menos séria, embora sangre como o país. Las Casas, bruxa, touro, cavalo de Iansã, cartomante e poeta. A Oyá na cabeça de Duda (in)venta o tempo todo. Levanta o pó e faz a ventania. E um Touro sai de dentro dela, ou ela que sai da pele de um Touro, como naquela história africana sobre uma deusa guerreira. A música do Milton era mesmo um aviso. “Viseira” é o primeiro livro de Duda. Comemoro a beleza de sua chegada! E seguimos lendo mais um poema, tirando mais uma carta, também enigmática, só para ver o que o destino (esse acaso indomável) tem a nos dizer : “O hierofante avisa que o final pode estar no início”.
Caio Ricardo Bona Moreira
Publicado no jornal Caiçara (30 de outubro de 2021), de União da Vitória (PR)
Um comentário:
que maravilha, obrigada Caio pela leitura
:)
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