sábado, 1 de janeiro de 2022

Maria Sandlak Pastuchen


(à memória da família Pastuchaki)

A avó da minha avó,
ou melhor, a mãe da mãe
da mãe de minha mãe,
era bonita,
mas tinha o olhar triste.
É o que a foto me diz.
Sobre ela pouco sei.
Quase nada. Mas a foto,
que me chegou hoje ao acaso,
como presente ou destino,
revelou para mim seus olhos tristes.
Vinha dela a filha com olhos azuis
a lembrar o turquesa que me deu a bisavó.
São os tons claros que me signaram
os olhos que trago.
Sei que tinha o nome
da filha, ou melhor, que a filha
tinha o nome da mãe, Maria.
Minha mãe, aliás, também tem este nome.
Quantas Marias pariram o mundo?
Entre as três Marias, estrelas,
(duas delas brilhando no céu)
uma quarta, Helena.
O marido da Maria mais velha
era mesmo um João, João Pastuchen,
que no Brasil virou Pastuchaki.
É um mistério.
Quantos Joões lavraram o mundo?
A foto não diz, mas meus tataravós chegaram
no Brasil em 17 de julho de 1895,
no Rio de Janeiro, ou teria sido em
21 de março de 1896.
Há uma imprecisão na data, como tudo
ou quase que rege ou ronda nosso passado remoto.
Em 17 de julho de 1895, o Frei Marciano
publicava no jornal O Apóstolo (RJ) um relatório
recomendando a intervenção do Governo em Canudos.
O religioso, ali, elogiava a energia e o patriotismo
do Presidente Prudente de Morais.
A Guerra logo chegaria. João era também
o nome de um dos Companheiros
de Antonio Conselheiro.
Em 21 de março de 1896 nascia o matemático,
filósofo e físico Friedrich Waismann,
que era austríaco como João,
muito embora sob o domínio do Império
Austro-Húngaro, a terra de meu tataravô
talvez fosse mesmo a Galícia, na Ucrânia.
Talvez ele assim se considerasse,
Muito embora a sonoridade de seu sobrenome indicasse uma origem judia.
Muitos que viviam na região eram também judeus. Do Pastuchen judaico ao Pastuchaki ucraniano, o antissemitismo já favorecia a diáspora. É bem provável, porque um teste de ancestralidade genética revelou em mim 6% de sangue judeu.

Viria de lá, do meu lado Pastuchen?
Porque trocaram de nome lá ou aqui, no processo de imigração?
O Arquivo Público do Paraná
informa que o número de minha família
era 243. Está no livro 821 n° 1219.
O livro informa também que João
era católico e agricultor.
Que a família tinha como destino à Colônia Rio Claro,
mas não informa como vieram parar em Caçador (SC).
O arquivo diz ainda que João e Maria chegaram
com os filhos Tomaz e Pedro. Os outros nasceriam no Brasil:
Demétrio, Catarina, Alexandre, Maria, Lídia e Odócia (Doca).

(Lídia foi criada por outra família. É mais um mistério. Os detalhes do fato estariam ligados à pobreza da época. A menina teria voltado para os pais depois de alguns anos). 

(Maria, a filha, que me liga ao clã, trabalhou como doméstica na juventude. No surto da gripe espanhola, cuidou sozinha da família do patrão, um médico de Porto União. Todos na casa haviam sido contaminados menos a empregada).  

A Doca está na foto, ao lado da mãe. Tem o olhar feliz,
o mesmo que conheci na velhinha,
irmã de minha bisavó, que um dia abracei.
O arquivo não informa se a família de número 243
estava feliz no Brasil. Se viviam em boas condições.
Se aprenderam com facilidade a falar o português.
Se comiam pirogue ou sopa borsch.
Se cantavam no Brasil em ukrayins'ka 
suas hailkas da Terra Natal.

A foto não mostra o João, mas numa outra
imagem - que vi na infância -, talvez agora perdida,
descobri que ele tinha um olho apenas.
Teria perdido a vista em alguma
batalha no Leste Europeu?
Minha tataravó tinha os dois olhos,
mas desconfio que não enxergavam só o Brasil.
Quase 130 anos depois de abandonar seu solo calejado,
a velha Maria mira triste nos olhos do tataraneto
e vê nos dele refletidas a imagem dela mesma
e sua memória de tantas luas eslavas.


Caio Ricardo Bona Moreira

 

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