quinta-feira, 4 de agosto de 2022

A arte de gastar o tempo ou de inventar uma vida para os outros

 

Nighthawks de Edward Hopper, 1942


Vez e outra, na rua, no trabalho, ou em qualquer outro lugar, sem intenções muito claras, me pego pensando na vida das pessoas que me rodeiam. Não necessariamente daquelas que já conheço, que acabam por me despertar pouca curiosidade, porque é fácil e até desinteressante sondar com interesse o que no fundo já sabemos. Refiro-me ao exercício de tatear o mistério da existência dos outros, daqueles que me são completamente estranhos. Ás vezes, basta encontrar alguém que nunca vi e vou logo casando o sujeito com uma vendedora daquela loja de sapatos que fica em frente à praça. Já começo a enxergar seus filhos na creche enquanto o pai e a mãe trabalham. Ele perdeu a avó para a Covid no início da pandemia, quando ainda não havia vacina. A tristeza não fez com que o rapaz perdesse o gosto pelo futebol, esporte praticado religiosamente com os amigos todas as quintas-feiras, antes de uma cervejinha no Bardella, aquele bar e pizzaria que fica perto da Perimetral. E por aí vai. É um trabalho da imaginação cujo controle me foge e cuja teimosia beira quase a esquizofrenia.

Não sou o único a sofrer desse mal. Constatei o fato há alguns anos quando li o romance “Rimas de Vida e Morte”, do escritor israelense Amós Oz. É um belo livro. Nele, um romancista, enquanto se prepara para dar uma palestra no centro cultural de um bairro de Tel Aviv, passa o tempo em um café e ali começa a imaginar uma história para cada indivíduo que vê à sua volta. A bela garçonete que o atende, por exemplo, vira a ex-namorada de um goleiro reserva de um time de futebol. Dois desconhecidos próximos à sua mesa viram mafiosos discutindo a situação de um homem que está morrendo na UTI de um hospital etc. O livro é essa viagem. A literatura é essa máquina da imaginação que promove uma ponte entre o homem e o mundo, entre um ser e outros seres. Tudo pelo viés da imaginação, essa senhora que nos move a vida.

Aliás, já em Aristóteles, a verossimilhança é essencial no caráter imitativo da arte. Para ele, a poesia encerra mais verdade e filosofia que a história justamente porque enquanto a história diz respeito ao que aconteceu, a literatura se refere àquilo que poderia ter acontecido. A arte é da ordem do verossímil. Ao inventar estórias para os outros talvez estejamos ali fazendo uma espécie de literatura, tornando, assim, a vida mais possível ou pelo menos mais suportável. É uma ótima forma de passar o tempo. Aliás, imagino que uma das funções mais importantes da literatura seja exatamente esta: a arte de gastar prazerosamente o tempo. Isso vale para quem escreve tanto quanto para quem lê.

Imagine a cena: estou em uma academia, no Bairro Santa Rosa. Não sou muito dado a exercícios físicos, mas me rendo a eles em troca da perspectiva de uma vida mais longa e feliz. Opto com mais frequência pela esteira devido a uma certa preguiça de manejar aparelhos e pesos. Dali do canto da grande sala, onde está instalada a máquina, tenho uma vista panorâmica do ambiente. Gosto de observar as pessoas de soslaio pelo espelho. E já vou logo imaginando uma vida para aquela senhora que se exercita na bicicleta ergométrica. Na minha fantasia, ela se matriculou na academia depois do seu médico denunciar severamente o alto colesterol. Ou fazia regime e exercícios com regularidade ou morreria em breve. Com medo de não ver os netos crescerem, estava agora ali entregue devotamente à musculação. Seu marido, aposentado, continuava trabalhando, agora como taxista, para melhorar o ordenado e não cair no ócio assassino. Próximos dela, dois jovens conversavam animadamente. O rapaz na cadeira flexora, a moça na cadeira abdutora. Muitos risos e um teor exibicionista na regularidade dos movimentos. Eram como dois pombos que mostravam um ao outro a dança do acasalamento. A namorada dele estava na faculdade terminando o curso de nutrição. O namorado da outra, extremamente ciumento, era filho do dono de uma agropecuária. Cursava veterinária e planejava se casar depois da formatura. Os dois pombos não saíram juntos da academia, mas se encontrariam naquela noite iniciando assim um caso extraconjugal. Um careca de meia idade se olhava no espelho feito um narciso com dois halteres nas mãos. Ele tinha sobrevivido a um acidente e desde então nunca mais dirigiu bêbado. Agora abstêmio, desejava ganhar mais uns quilos de massa muscular. Daqui a uns dois anos morrerá atropelado por uma caminhonete de lavanderia. Não, muito triste, esse final. Não merece terminar assim. Sua simpatia me inspira piedade. Reescrevo a história. Morrerá velho e feliz daqui uns trinta anos casado em segundas núpcias com uma mulher que é justamente a dona da lavanderia.            


Publicado originalmente no jornal Caiçara, em julho de 2022.

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