Nighthawks de Edward Hopper, 1942
Vez e outra, na
rua, no trabalho, ou em qualquer outro lugar, sem intenções muito claras, me pego
pensando na vida das pessoas que me rodeiam. Não necessariamente daquelas que
já conheço, que acabam por me despertar pouca curiosidade, porque é fácil e até
desinteressante sondar com interesse o que no fundo já sabemos. Refiro-me ao
exercício de tatear o mistério da existência dos outros, daqueles que me são
completamente estranhos. Ás vezes, basta encontrar alguém que nunca vi e vou
logo casando o sujeito com uma vendedora daquela loja de sapatos que fica em
frente à praça. Já começo a enxergar seus filhos na creche enquanto o pai e a
mãe trabalham. Ele perdeu a avó para a Covid no início da pandemia, quando
ainda não havia vacina. A tristeza não fez com que o rapaz perdesse o gosto
pelo futebol, esporte praticado religiosamente com os amigos todas as
quintas-feiras, antes de uma cervejinha no Bardella, aquele bar e pizzaria que
fica perto da Perimetral. E por aí vai. É um trabalho da imaginação cujo
controle me foge e cuja teimosia beira quase a esquizofrenia.
Não sou o único a
sofrer desse mal. Constatei o fato há alguns anos quando li o romance “Rimas de
Vida e Morte”, do escritor israelense Amós Oz. É um belo livro. Nele, um
romancista, enquanto se prepara para dar uma palestra no centro cultural de um
bairro de Tel Aviv, passa o tempo em um café e ali começa a imaginar uma
história para cada indivíduo que vê à sua volta. A bela garçonete que o atende,
por exemplo, vira a ex-namorada de um goleiro reserva de um time de futebol.
Dois desconhecidos próximos à sua mesa viram mafiosos discutindo a situação de
um homem que está morrendo na UTI de um hospital etc. O livro é essa viagem. A
literatura é essa máquina da imaginação que promove uma ponte entre o homem e o
mundo, entre um ser e outros seres. Tudo pelo viés da imaginação, essa senhora
que nos move a vida.
Aliás, já em
Aristóteles, a verossimilhança é essencial no caráter imitativo da arte. Para
ele, a poesia encerra mais verdade e filosofia que a história justamente porque
enquanto a história diz respeito ao que aconteceu, a literatura se refere
àquilo que poderia ter acontecido. A arte é da ordem do verossímil. Ao inventar
estórias para os outros talvez estejamos ali fazendo uma espécie de literatura,
tornando, assim, a vida mais possível ou pelo menos mais suportável. É uma
ótima forma de passar o tempo. Aliás, imagino que uma das funções mais
importantes da literatura seja exatamente esta: a arte de gastar prazerosamente
o tempo. Isso vale para quem escreve tanto quanto para quem lê.
Imagine a cena:
estou em uma academia, no Bairro Santa Rosa. Não sou muito dado a exercícios
físicos, mas me rendo a eles em troca da perspectiva de uma vida mais longa e
feliz. Opto com mais frequência pela esteira devido a uma certa preguiça de manejar
aparelhos e pesos. Dali do canto da grande sala, onde está instalada a máquina,
tenho uma vista panorâmica do ambiente. Gosto de observar as pessoas de soslaio
pelo espelho. E já vou logo imaginando uma vida para aquela senhora que se
exercita na bicicleta ergométrica. Na minha fantasia, ela se matriculou na
academia depois do seu médico denunciar severamente o alto colesterol. Ou fazia
regime e exercícios com regularidade ou morreria em breve. Com medo de não ver os
netos crescerem, estava agora ali entregue devotamente à musculação. Seu
marido, aposentado, continuava trabalhando, agora como taxista, para melhorar o
ordenado e não cair no ócio assassino. Próximos dela, dois jovens conversavam
animadamente. O rapaz na cadeira flexora, a moça na cadeira abdutora. Muitos
risos e um teor exibicionista na regularidade dos movimentos. Eram como dois
pombos que mostravam um ao outro a dança do acasalamento. A namorada dele
estava na faculdade terminando o curso de nutrição. O namorado da outra,
extremamente ciumento, era filho do dono de uma agropecuária. Cursava
veterinária e planejava se casar depois da formatura. Os dois pombos não saíram
juntos da academia, mas se encontrariam naquela noite iniciando assim um caso
extraconjugal. Um careca de meia idade se olhava no espelho feito um narciso
com dois halteres nas mãos. Ele tinha sobrevivido a um acidente e desde então
nunca mais dirigiu bêbado. Agora abstêmio, desejava ganhar mais uns quilos de
massa muscular. Daqui a uns dois anos morrerá atropelado por uma caminhonete de
lavanderia. Não, muito triste, esse final. Não merece terminar assim. Sua
simpatia me inspira piedade. Reescrevo a história. Morrerá velho e feliz daqui
uns trinta anos casado em segundas núpcias com uma mulher que é justamente a
dona da lavanderia.
Publicado originalmente no jornal Caiçara, em julho de 2022.
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