quinta-feira, 13 de abril de 2017

A EMANCIPAÇÃO LITERÁRIA: NACIONALIDADE INFLUÊNCIAS E TENSÕES



Antes de discutirmos a emancipação da literatura brasileira, convém abordarmos a questão do nacionalismo, entendido por Antonio Candido como fundamental no processo de nossa autonomia. Como veremos, tanto o nacionalismo quanto a autonomia estão repletos de impasses críticos e teóricos.

Em março de 1973, Machado de Assis publica na revista Novo Mundo o ensaio “Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade”. Nele, o bruxo do Cosme Velho observa que um poeta não é nacional apenas por inserir em seus versos nomes de flores e aves do país, o que pode dar uma nacionalidade de vocabulário e nada mais. Assim, pode-se apreciar a cor local, mas é preciso que a imaginação lhe dê contornos. As conhecidas idéias sobre a matéria do instinto de nacionalidade mostram um momento de maturidade crítica. Nesse processo a posição machadiana conceitua o nacional como construção e como problema. Machado toma por errônea a opinião que só vê espírito nacional em obras que tratam de temas locais, o que demonstra que um escritor pode ser um homem de seu tempo e de seu país mesmo tratando de assuntos remotos no tempo e no espaço. É o que pensa Afrânio Coutinho, em Conceito de Literatura Brasileira, ao afirmar que o sentimento de “brasilidade” só terá eficiência e validade se não se opuser ao legítimo vaivém de correntes que se entrosam e se vivificam entre o nacional e o universal. Não é à toa que Haroldo de Campos considera Machado de Assis nacional por não ser nacional.

Machado de Assis

O crítico Raul Antelo, em Algaravias: discursos de nação, reflete sobre a radical impossibilidade de se pensar conceitos de nação e ficção como definidos a priori e livres de controvérsia. Isso porque os campos da literatura e do nacional não conhecem fronteiras precisas, podendo, enfim, avançar-se o critério paradoxal da excentricidade como o mais adequado princípio para a literatura e para o nacional. Não seria fortuito lembrar que o universo literário espreita as margens do sistema, nunca se estabilizando em seu interior. Da mesma forma, a ideia de nacional não nos permite isolar objetos que possamos, a rigor, chamar de nacionais. Não há esses objetos. Existe o nacional apenas como uma dimensão peculiar do mundo simbólico, não pressupondo um dado espontâneo, mas apenas uma identidade socialmente construída. Daí a opção de Antelo pensar o nacional não como uma tradição, mas como uma tradução, o que problematiza toda uma linhagem crítica pautada na ideia do nacional como pressuposto para a autonomia, como é o caso de José Veríssimo e Antonio Candido.

Raúl Antelo

Problema correlato ao da origem e autonomia é o da nacionalidade e do nativismo. Afrânio Coutinho, que polemiza com Candido sobre a origem da literatura brasileira, observa, no já citado Conceito de Literatura Brasileira, três formas de nacionalismo em literatura. Em primeiro lugar, a literatura compreendida como instrumento de um ideal nacional de expansão e domínio político de um povo ou nação. Evidentemente, esse nacionalismo é um dos mais perniciosos para a própria nação da qual se faz arauto e para os demais países. O segundo tipo de nacionalismo é o do pitoresco, que valoriza manifestações literárias regionais, cultivando-o e exagerando-o no pressuposto de que nele reside o verdadeiro caráter da nacionalidade. A valorização do pitoresco resultou em obras interessantes, no entanto, não tem sido muito fecundo, pois limita a seleção de materiais artísticos, não considerando a universalidade necessária à literatura. Mas há exceções. Pensemos, por exemplo, em algumas manifestações nacionalistas do romantismo brasileiro. José de Alencar consegue desenvolver com Iracema uma literatura nacional, ao imaginar a gênese de uma América mestiça, e também universal ao materializar com presteza a representação do amor e da dor, temas tipicamente universais. Assim, a literatura de Alencar poderia ser enquadrada na terceira forma de nacionalismo, o autêntico, que pode aproveitar temas regionais sem criar uma doutrina que o empobreça. Essa forma equivale ao instinto de nacionalidade descrito por Machado. Para alcançá-lo é preciso desenvolver um “sentimento íntimo”. Quanto mais fiel o escritor for a esse sentimento – as palavras são de Machado – mais nacional (universal) será a obra.   

Antonio Candido


Partimos do pressuposto de que o nativismo é anterior ao nacionalismo em nossa literatura. É o que pensam a maioria de nossos críticos e historiadores da literatura. José Veríssimo defende que desde as primeiras manifestações literárias do Brasil, já podemos entrever uma postura nativista que desencadearia o sentimento nacionalista. Antonio Candido, seguindo as pegadas de José Veríssimo, desenvolve a tese a partir da ideia da nação como fio condutor de nossa autonomia. Para ele, a literatura ajudou a fundar um imaginário de nação, contribuindo para a nossa autonomia política.

Antes do Arcadismo, existiam apenas manifestações literárias, que não chegaram a construir um sistema. Sistema esse pautado pela tríade autor-obra-público. Somente quando esse sistema passou a operar é que podemos falar em uma literatura brasileira (autônoma). Para Candido, os árcades foram os primeiros a se empenhar em construir uma literatura como prova de que os brasileiros eram tão capazes quanto os portugueses, o que se intensificou depois de nossa Independência. Ou seja, o movimento romântico consolidou um processo de autonomia que vinha se delineando desde a obra de Cláudio Manuel da Costa, em meados do século XVIII. Se o nacionalismo só vai aparecer com força no século XVIII e se consolidar no século XIX, o sentimento nativista, começa a aparecer ainda no século XVI.

Cláudio Manuel da Costa

Sobre esse fato vale lembrar do conceito de obnubilação, desenvolvido por Araripe Junior, segundo o qual o europeu aqui chegando obnubilava a vida que deixou para trás. Esse processo modificava intensamente o homem, gerando um gradativo esquecimento dos laços afetivos com a Europa, o que favorecia um sentimento de apego à terra que começava a ser colonizada. Dessa maneira, um novo homem criou-se desde o primeiro instante em que botou os pés no novo Mundo. Daí a polêmica entre Candido e Coutinho, pois este acredita que a literatura brasileira, desde o século XVI, já não é um mero “ramo” ou “galho” da literatura portuguesa. E o fator responsável por isso foi, em sua opinião, o apego a terra, ou seja, o nativismo, que já aparece em textos de José de Anchieta. Ao lado da corrente jesuítica, outra se formou. A da exaltação da terra, também com intenções persuasivas, criando-se assim um verdadeiro ciclo de literatura nativista, um novo mito do eldorado ou terra prometida, rica e farta, habitada pelo bom selvagem de Montaigne. Sobre essas utopias que se iniciaram com Tomas Morus, passando por Campanella e Francis Bacon, até os textos socialistas do final do século XIX , merece destaque o livro Visão do Paraíso, de Sérgio Buarque de Holanda, que analisa as representações históricas e literárias que personificaram essas visões. É o caso também de boa parte da literatura de informação produzida por figuras como Pero Magalhães de Gandavo, Gabriel Soares de Sousa, Rocha Pita, entre outros.

Afrânio Coutinho

Para José Veríssimo, no período colonial, salvo raras exceções, a literatura praticada aqui não fazia senão imitar inferiormente a literatura portuguesa. Assim, autores como os do barroco, em sua maioria, são considerados como poetas medíocres. É justamente por produzirem uma obra desligada das idéias de nacionalidade e nativismo que eles são sequestrados dos estudos literários. No entanto, poderíamos pensar, na esteira do pensamento do crítico e escritor cubano José Lezama Lima, que os escritores barrocos estavam pensando a arte de um ponto de vista pós-nacionalista, para usar uma expressão de Décio Pignatari, mesmo antes do espaço geográfico latino-americano constituir nações tal como as conhecemos. Lezama Lima consegue desconstruir o binômio nacional cosmopolita ao pensar o barroco como arte da contra-conquista e não como arte da contra-reforma. Isso porque esse movimento artístico do século XVII é considerado o “começo genial” de nossa literatura. Nas suas palavras ele foi uma tomada de consciência, uma resposta artística do colonizado em relação ao colonizador. Uma espécie de antropofagia pré-oswaldiana, já que foi por meio da arte que o artista barroco (colonizado) pode colonizar esteticamente o colonizador. É caso de Aleijadinho que mesclou formas barrocas europeias com traços artísticos afro-indígenas. É também o que fez o índio Kondori, na Igreja de San Lorenzo de Potosí (sobre isso, já escrevi aqui há algum tempo), ao misturar a figura larval de anjos barrocos com entidades mitológicas da cultura inca. É justamente por pensar a arte além das fronteiras do “nacional” que o artista barroco conseguiu desenvolver um instinto não menos nacional de nativismo e nacionalidade. 

José Veríssimo

Isso tudo apenas para concluirmos que os conceitos de nacionalidade e nativismo são problemáticos. Uma literatura autônoma não se faz apenas com temas e vocabulário locais. Perceber isso é fundamental para entendermos um pouco melhor aquilo que se convencionou chamar de literatura brasileira. Lembremos da previsão de Marx e Engels, ao afirmarem que em lugar do antigo isolamento das províncias e das nações bastando-se a si próprias, desenvolvem-se relações universais. E que o que é verdadeiro em relação às produções materiais o é também no tocante às produções do espírito. A estreiteza e o exclusivismo nacionais tornam-se cada dia mais impossíveis e da multiplicidade das literaturas nacionais nasce uma universal, pós-autonômica e superior a qualquer tentativa de nacionalidade ou nativismo.

Suposto retrato de Aleijadinho

Não seria fortuito lembrar que, em 1827, Goethe, em uma carta endereçada a Eckermann, vai cunhar o termo Weltliteratur, defendendo a emergência de uma literatura universal em detrimento de uma literatura nacional. Penso que alguns séculos depois de Aleijadinho, com a antropofagia oswaldiana, no século XX, tomamos consciência da necessidade de pensar o nacional em relacionamento dialético ou dialógico com o universal. Haroldo de Campos, em textos como “Da razão antropofágica” e “O sequestro do barroco na formação da literatura brasileira”, ambos da década de 80, vai recorrer ao nacionalismo como movimento dialógico da diferença e não como signo platônico de uma origem.
Logo, mais importante do que conhecer esses discursos de nacionalidade e nativismo é saber onde eles falham, de que maneira constroem ficções, visões de mundo, tradições e traduções.

José de Alencar

Onde reside a nacionalidade da literatura? Onde encontra ela seus elementos nacionais? Sobre isso, e para finalizar, vale lembrar da polêmica entre José de Alencar e Gonçalves de Magalhães (Alencar vai escrever uma série de artigos na imprensa carioca criticando Magalhães e assinando com um pseudônimo). No dizer de Alencar, Magalhães formulou a questão de um modo errôneo. O poema “Confederação dos Tamoios” fracassou no seu instinto de nacionalidade, porque embora estivesse no caminho certo em busca de uma nacionalização literária, mediante a exaltação dos feitos e da terra brasileiros, não colocava com felicidade a solução do problema formal, ao escolher um gênero cediço e adaptado a literaturas estranhas e antigas como a epopeia. Ou seja, queria produzir uma literatura brasileira, mas sem produzir uma linguagem, uma forma, brasileira. Tomava como mote o tema dos índios, mas “colocava em suas bocas palavras estranhas”, próximas apenas da cultura européia. Para Alencar o problema passava pela questão da linguagem, o que a maioria dos escritores anteriores a Alencar, como Basílio da Gama e Santa Rita Durão não conseguiram fazer. Apesar de que o poema Caramuru, de Durão já pode ser considerado uma gênese do sentimento nacionalista que se intensificaria no romantismo do século XIX. 

Frei José de Santa Rita Durão

O amor de Diogo Álvares Correia por Paraguaçu, que é alegoria de um amor do colonizador pela terra que descobriu e começou a colonizar será aprimorado por poetas como Gonçalves Dias, em poemas como Canção do Exílio, Juca Pirama e Os Timbiras. É por isso que Alencar mergulhou não apenas nos temas locais e no seu vocabulário correspondente, mas principalmente no ritmo, na sintaxe, na musicalidade da língua indígena, o que o fez ser considerado por críticos como Henriques Leal, José Feliciano de Castilho, Pinheiro Chagas, Franklin Távora e Joaquim Nabuco um assassino do vernáculo, uma insurreição à língua portuguesa. Só o tempo conseguiu provar o contrário, mostrando que a literatura brasileira, para firmar-se, necessitava não só de uma investigação sobre a linguagem, como da transcendência da mera nacionalidade ou nativismo.

sábado, 8 de abril de 2017

Tendências estéticas da modernidade na poesia brasileira (apontamentos)


Au foyer du théatre, de Constantin Guys

Antes de discutirmos as tendências estéticas da modernidade na poesia brasileira, que a nosso ver surgem com a poética simbolista, devemos especificar algumas questões que podem nos ajudar a entender melhor tais tendências. Concentraremo-nos  na poesia finissecular européia tendo em vista que sem entendê-la, pelo menos em parte, é praticamente impossível entender a modernidade brasileira.

Comecemos pensando o conceito de “modernidade”. Em 1859, depois de visitar uma exposição do pintor Constantin Guys, Charles Baudelaire escreve uma coletânea de artigos de crítica de arte intitulada “O pintor da vida moderna”. Nesses textos, o autor das “Flores do Mal” desenvolve algumas das primeiras impressões sobre aquilo que se convencionou chamar de modernidade (aliás, Baudelaire foi um dos inventores da palavra). O poeta parte do pressuposto de que a arte possui duas metades. A primeira refere-se ao contingente, ao efêmero, ao transitório, ou seja, a modernidade, e a segunda refere-se ao infinito e ao eterno que ela pode presentificar. 

Constantin Guys

A modernidade seria pautada não só pela capacidade de ver no deserto urbano a decadência do homem e de pressentir uma beleza misteriosa não descoberta até então, mas também pela capacidade de extrair o eterno do transitório. Esse é o problema específico para Baudelaire, ou seja, a capacidade da poesia numa sociedade comercializada e dominada pela técnica. 

A principal característica da modernidade seria a perda da inocência e a desesperança pelo que virá. Essa desolação, que se originou do processo de racionalização que surgiu no Ocidente no final do século XVIII, gerou uma crise da linguagem que é sintomática na modernidade. Uma crise que se intensificou a partir de uma outra crise, aquela gerada pela Segunda Revolução Industrial, nas duas últimas décadas do século XIX. Do sistema capitalista surgiu uma nova ordem econômica que beneficiava a elite européia em prejuízo da maioria da população, constituída pela classe média e pelo proletariado. O intenso progresso científico e técnico não conseguiu mascarar um clima de intranquilidade e pessimismo.

Baudelaire

Apesar de Baudelaire ser considerado o precursor da modernidade, seus legítimos fundadores, na opinião dos críticos, são os poetas simbolistas Mallarmé e Rimbaud. Foram eles que colocaram em prática aquilo que Baudelaire vinha desenvolvendo anteriormente no âmbito teórico. Mallarmé percebeu a crise não apenas histórica (decadência), mas também formal que circundava a produção literária do período, o que o levou a escrever o texto “Crise de Verso”, em que analisa a ruptura causada pelo enjambement, que fez com que o verso perdesse a sua vocação para o natural, para o sentencioso e para o aforístico (caso do verso alexandrino francês tradicional). A “torção da linha”, desencadeada pelo enjambement foi responsável pela crise da linguagem que abriu as portas para o poema em prosa e de verso livre, praticados abundantemente pelos modernos, modernistas, e contemporâneos.

Mallarmé

A tensão dissonante é o objetivo das artes modernas em geral. Sua obscuridade e desarmonia são intencionais. A poesia moderna quer tornar estranhos os conteúdos. Antes da modernidade, a lírica era entendida como linguagem em estado de ânimo, da alma pessoal. A poesia já não quer mais ser medida em base ao que comumente se chama de realidade. Ela prescinde da humanidade, no sentido tradicional, da experiência vivida, afastando o “eu” do artista. O “eu” moderno é um eu cindido, desterritorializado e o poeta passa a ser agora um operador da língua (noção que sobrevive na poesia de Carlos Drummond de Andrade, no conceito de Gauche).

Além dos sintomas premonitórios da modernidade serem figurados pela fragmentação da linguagem do poeta romântico Novalis e da teoria do grotesco, delineada por Diderot e aprimorada por Vitor Hugo, devemos lembrar da despersonalização como fundamento da poesia. A lírica moderna desconstrói a união entre poesia e pessoa. Fora da França, Edgar Alan Poe foi quem separou de maneira contundente a lírica e o coração. Baudelaire, leitor de Poe, defendia a poesia como trabalho, como construção sistemática de uma arquitetura e não como embriaguez do coração (Noção que sobrevive com força nas concepções poéticas de João Cabral de Melo Neto). Assim, é sob o signo da despersonalização que nasce o poetar moderno (elogio do artifício). Baudelaire acreditava que tudo o que é natural é monstruoso e tudo o que é artificial, magnífico e sublime. Acrescentemos à figura de Baudelaire, Fernando Pessoa, para quem o poeta é um fingidor e Rimbaud, para quem o “eu” é sempre um outro. A poesia de Rimbaud continua sendo a linguagem originária da poesia moderna. Começou com versos encadeados, passando aos versos livres e ao poema em prosa. Mallarmé, por sua vez, defendia a poesia como fruto do intelecto e como manejo com a língua.

Rimbaud

Podemos concordar que a maior parte da poesia modernista é herdeira direta das experimentações da poesia simbolista, no que ela tem de moderna, principalmente devido à liberdade formal, do verso de uso irregular, rompendo com toda submissão obrigatória, e permitindo assim um reaprendizado da leitura como tomada de consciência dos mecanismos significantes.

Nossos primeiros modernos, os simbolistas, foram leitores de Baudelaire, Rimbaud, Verlaine e Mallarmé. Aqui, o movimento simbolista iniciou-se oficialmente com a publicação de dois livros do poeta catarinense Cruz e Sousa: Missal e Broquéis, ambos de 1893. Mas antes disso já havia uma movimentação em torno de uma nova poesia que já vinha sendo anunciada em 1879, por Machado de Assis, no artigo A Nova Geração.


Se por um lado o simbolismo influenciou o surrealismo (pela ideia do eu cindido, o inconsciente da psicanálise), por outro, podemos encontrar influências sobre o expressionismo, tal como Paulo Leminski observou no seu livro sobre a vida e obra de Cruz e Sousa. Augusto de Campos, por sua vez, encontrou em Pedro Kilkerry (poeta simbolista baiano) o precursor não só do surrealismo, mas da poética cinematográfica de Oswald de Andrade. É o caso também de Sousândrade considerado pelos concretistas como um dos precursores do modernismo, por antecipar certas técnicas poéticas como o uso de versos livres, neologismos, etc.

Pedro Kilkerry

No Brasil, a modernidade coincide com a proliferação de imagens técnicas. Há uma vontade de modernização que invade o país, o que pode ser percebido no processo de urbanização desenvolvido pelo prefeito Pereira Passos (1905), uma espécie de Barão Haussmann dos trópicos. Os primeiros automóveis começam a circular pelas cidades. Os jornais proliferam as suas tiragens, a luz elétrica é implantada. A art nouveau entra na moda. É o clima da Belle époque. Um cenário que será fotografado por artistas como Marc Ferrez e Klumb. Susan Sontag, em Ensaios sobre Fotografia, observa que uma sociedade se torna moderna quando uma de suas principais atividades passa a ser a produção e o consumo de imagens. Nesse contexto, a literatura não só representa essas inovações técnicas (cinema, fotografia, literatura), como incorpora seus procedimentos ao próprio texto. Kilkerry, por exemplo, com as suas Kodaks (crônicas do cotidiano) “enforma” a produção cultural da época, ou seja, incorpora procedimentos técnicos oriundos dessas inovações. O que de certa forma será aprimorado por Antonio de Alcântara Machado, em Pathé Baby, em 1926. No livro, Machado reúne crônicas de uma viagem que realizou na Europa. Até aí, nada de novo, já que a literatura de viajantes é uma tradição da literatura brasileira. O aspecto inovador estava nas ilustrações que acompanhavam as crônicas. Elas não apenas ilustravam os textos, como construíam paralelamente uma outra narrativa, que representava a projeção de um filme de cinema mudo, cuja trilha sonora era produzida por um pequeno número de músicos. De maneira que podemos ler essa outra narrativa como se estivéssemos assistindo à projeção de um filme. É o que fará Oswald de Andrade, de outra maneira, não só nos livros Memórias Sentimentais de João Miramar, mas  em toda a sua poética, ao operar com cortes e repetições, procedimentos oriundos do cinema, como bem observou o filósofo Gilles Deleuze.



O nosso modernismo nasce, assim, sob o signo de um confronto entre a poesia como artefato e a arte no horizonte da reprodutibilidade técnica. De um lado as experimentações simbolistas, de outros o ambiente urbano, a velocidade das máquinas, a fé no progresso industrial. Flora Süssekind, em Cinematógrafo de Letras, observa que no confronto entre letras e técnicas, ora se dessacralizava a arte que se queria pura, ora roubando-se o arsenal técnico de seu contexto de origem, desautomatizava-se a sua utilização.

A modernidade brasileira tem sido lida por uma rua de mão única. Fala-se das vanguardas europeias como o fio condutor da produção literária da época. No entanto, as experimentações simbolistas foram tão ou mais importante que os ismos europeus, já que anunciaram a crise da linguagem, permitindo a emergência das próprias vanguardas. E isso não aconteceu apenas no âmbito da literatura. A pintura de Tarsila do Amaral e Anita Malfati, por exemplo, não foram influenciadas apenas pelo cubismo, pelo expressionismo e pelo impressionismo, mas também está atravessada, consciente ou não, pela pintura acadêmica do fina do século XIX produzida por pintores como Belmiro de Almeida e Almeida Júnior (sobre isso há um importante estudo do professor Tadeu Chiarelli).

Oswald de Andrade

Se por um lado Oswald foi influenciado pelo futurismo, disseminando-o pelo Brasil após o seu retorno da Europa, por outro é tocado pelo espírito inovador e mallarmaico de Pedro Kilkerry. Aliás, as vanguardas foram vistas com desconfiança por vários modernistas. Basta lembrar do fracasso da viagem e Marinetti (ciceroneado por Graça Aranha), ao Brasil, em 1926. Manuel Bandeira admirava mais a poesia finissecular do que as vanguardas, e chegou a escrever um importante estudo sobre a obra de Mallarmé, apresentado na Academia Brasileira de Letras em 1942. Mário de Andrade também desconfiou dos “ismos”, chegando a ficar incomodado quando Oswald o chamou de “Meu poeta futurista”. Mário considerava o movimento um avanço estético, mas também um retrocesso político, pelo seu aspecto fascista. As concepções modernas/modernistas de Mário aparecem com força em estudos teóricos como “Prefácio Interessantíssimo” e “A escrava que não é Isaura”. Neste último, interpreta o modernismo como uma poética da simultaneidade que mistura Mallarmé, Rimbaud e Gonçalves Dias.

O próprio Oswald parece que transcendeu as Vanguardas, apesar de ser influenciado em relação ao verso sintético, livre, branco e de palavras encadeadas, ou mesmo na ideia de manifestos.  Não podemos esquecer da sua poesia minuto e de seus poemas piadas que fundaram uma linhagem que predominou até a poesia marginal de Cacaso e Chico Alvim.  Seu livro Poesia Pau Brasil foi uma espécie de revolução copernicana da  literatura brasileira, como afirmou Haroldo de Campos. Poemas como “Amor Humor”, ápice da concisão, ou mesmo os ready-mades que ressignificaram a literatura dos viajantes, bem como as suas montagens, são sintoma de uma poesia cubista e cinematográfica.     


segunda-feira, 3 de abril de 2017

A PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA: APONTAMENTOS SOBRE O MEMORIALISMO NA LITERATURA BRASILEIRA DO SÉCULO XX



À memória de Pedro Nava, guardador de memórias


A Persistência da Memória,de Dalí

Silviano Santiago, no ensaio “Prosa literária atual no Brasil”, presente no livro Nas Malhas das Letras, observa que a preocupação memorialística é um componente forte e definitivo dentro de nossa melhor prosa modernista. O ensaio é de 1984, período em que se dava o ressurgimento do memorialismo nas nossas letras. Vale lembrar que no mesmo ano, Pedro Nava, talvez nosso maior memorialista, se suicidou, depois de publicar o sexto volume de suas memórias, fechando um ciclo que se iniciara em 1972, com Baú de Ossos. Santiago, ainda no mesmo ensaio, afirma que a tendência ao memorialismo ou à autobiografia, tendo ambos como fim a conscientização política do leitor, era um ponto de acordo entre a maioria dos prosadores da época. A ditadura militar agonizava e o retorno dos exilados políticos era um convite para a revisão de um passado recente que produzia ecos na produção de vários escritores. O mesmo se deu na Argentina, a partir do processo de redemocratização. Fato que levou, recentemente, Beatriz Sarlo a analisar o surto de uma literatura de memória na Argentina pós-ditadura. A necessidade de lembrar como condição para o não esquecer. Mas até que ponto um relato teria a condição de transmitir uma experiência? 

Walter Benjamin

Walter Benjamin nos dizia em “Experiência e Pobreza” que o homem, depois de voltar mudo dos campos de batalha da Grande Guerra, perdera a capacidade de transmitir uma experiência no relato. O choque teria liquidado a experiência em si mesma: o que se viveu como choque era forte demais para o homem. O que aconteceu na Grande Guerra provaria a relação inseparável entre experiência e relato; e também o fato de que chamamos experiência o que pode ser posto em relato, algo que não só se sofre, mas que se transmite. Se seguirmos Benjamin, acaba sendo contraditório em termos teóricos afirmar a possibilidade do relato da experiência na modernidade. A tendência ao memorialismo, seja em retratos de guerra ou não, mostra o contrário. 

Beatriz Sarlo

No livro Tempo Passado, Sarlo pergunta: A narração da experiência guarda algo do vivido? A experiência se dissolve ou se conserva no relato? É possível relembrar uma experiência ou o que se relembra é apenas a lembrança previamente posta em discurso? As perguntas são importantes também para situar o memorialismo na literatura brasileira. Mas não podemos desconsiderar que o gênero memorialístico é multifacetado, não podendo ser enquadrado numa categoria fechada, como se existisse apenas um tipo de literatura de memórias. Como colocar no mesmo gênero obras tão variadas como Menino de Engenho (1932), de José Lins do Rego, que misturou suas memórias com a cultura e paisagem regionalista, O amanuense Belmiro (1937), de Cyro dos Anjos, um dos grandes momentos de nosso memorialismo, Minha Formação, de Joaquim Nabuco, que praticamente inaugurou no século XX a prática do gênero no Brasil, e O que é isso, companheiro? (1979), de Fernando Gabeira? 

Silviano Santiago

Segundo Santiago, no ensaio já citado, existem duas grandes linhagens do memorialismo no Brasil do século XX. A prosa memorialista do modernismo de 30 e a prosa memorialista contemporânea, dos anos 70 e 80. No caso do memorialismo de 30, a ambição era de recapturar uma experiência não só pessoal como também do clã senhorial em que se inseria o indivíduo. É o caso de Gilberto Freyre, José Lins do Rego, Raquel de Queirós, ou mesmo José Américo de Almeida, entre outros. Já a prosa memorialística dos anos 70 e 80 se concentrou fortemente nas questões políticas. É o caso de Fernando Gabeira, com O que é isso, companheiro? e Alfredo Sirkis, com Os Carbonários (livro que gosto muito). No primeiro caso, percebe-se o exagerado interesse pelos anos infantis, e no segundo, o envolvimento com grupos estudantis e de guerrilha. Caso haja interesse em classificar, pode-se dizer que o texto modernista é memorialista (apreensão do clã, da família), enquanto o dos jovens políticos é legitimamente mais autobiográfico (centrado no indivíduo). Mas essas categorias são apenas instrumento de leitura, tendo em vista que muitas vezes o gênero memorialístico “escapa” dessas categorizações, misturando as duas tendências, ou pelo menos confundindo seus limites e limiares. 

Jean Starobinski

Para Starobinski, um dos pesquisadores do gênero, o memorialismo seria uma das ramificações da literatura autobiográfica. Nesse caso, o autobiógrafo valorizaria uma dicção mais subjetiva, alargando as fronteiras dos limites discursivos. A outra ramificação da literatura autobiográfica seria aquela em que o escritor assume uma postura objetiva. O escritor, em vez de memorialista, é caracterizado como um “diarista”. Sob esse ponto de vista, o memorialismo seria muito mais complexo, por alargar os limites do vivido, trabalhando não só com as lembranças, mas principalmente com a imaginação. É o que pensa Wilson Martins ao afirmar que “para copiar a vida é preciso ter mais imaginação do que para inventá-la”, porque é preciso um esforço grande para insuflar a vida da ficção em seres e coisas que já têm a sua vida própria. É preciso ver o elemento de grandeza que existe em tudo o que nos cerca, e perceber a frágil linha de eterno que circula todas as existências. Wilson Martins opõe as memórias de escritores ao estilo memorialístico. Este, ao contrário daquele, inclui a visão existencial que é mais do que a simples rememoração autobiográfica. 

Paul de Man

O que as autobiografias produzem é a ilusão da vida como referência, como nos dizia Paul de Man. A ilusão de que existe algo como um sujeito unificado no tempo e no texto. Não há sujeito exterior que consiga sustentar essa ficção da unidade existencial e temporal. Tudo o que uma autobiografia consegue mostrar é a estrutura especular em que alguém, que se diz chamar eu, toma-se como objeto, e cobre seu rosto com essa máscara. Há algumas semanas, li o romance Ainda Estou aqui, de Marcelo Rubens Paiva, que me encantou tanto quanto, ou ainda mais, que Feliz ano Velho. Ainda estou aqui, do Marcelo, e O irmão alemão, de Chico Buarque - dois dos romances mais bonitos da literatura brasileira dos últimos vinte anos) -, inscrevem-se naquilo que poderíamos chamar de auto-ficção, um gênero que problematiza a tradicional auto-biografia, lançando novas luzes a "escrita ficcional sobre si". 





Produzir uma biografia é sempre fazer ficção, já que os referentes que a compõe são do universo do texto, portanto tão ficcionais quanto qualquer outro gênero literário. Penso que mais importante do que considerar tal gênero como ficção ou não ficção, trata-se de analisarmos como se dá o jogo que oscila entre um e outro universo nas páginas de seus enredos.   

Sarlo escreveu que "A narração inscreve a experiência numa temporalidade que não é a de seu acontecer, mas a de sua lembrança". A narração da experiência está unida ao corpo e à voz, a uma presença real do sujeito na cena do passado. Ainda, "Não há testemunho sem experiência, mas tampouco há experiência sem narração". E "a linguagem liberta o aspecto mudo da experiência".

Em geral, o trabalho criativo permite que as memórias passem para o domínio da ficção. É pelo desprezo à veracidade que se comunicam a ficção e a autobiografia, o fingimento e o relato pessoa, a estória e a história. Não seria fortuito lembrar que a escritor espanhol Francisco Ayala, que faleceu em 2009, escreveu no prólogo do livro De recuerdos y olvidos, que o gênero memorialístico, apesar de ter um conteúdo que se pretende verdadeiro, procura elaborar essa verdade literariamente de modo criativo, acrescentando e modificando fatos ocorridos. O escritor mostra-se assim consciente de que a distância entre o presente da voz que narra o passado distante vai inevitavelmente reelaborando a experiência através do relato e acaba por construir uma obra imaginária em que aquelas fatos aparecem transubstanciados em ficção. Poderíamos lembrar aqui de um dos versos do poeta Waly Salomão que dizia ser a memória uma "ilha de edição". Uma ilha de edição pressupõe o trabalho com corte e montagem, como no cinema, o que demonstra, em literatura, as lembranças são apenas matéria prima, matéria que deverá passar pela capacidade de invenção de determinado escritor.

Francisco Ayala

A literatura memorialística enraíza-se no cuidado com o lembrar, seja para tentar reconstituir um passado que nos escapa, seja para resguardar alguma coisa da "morte dentro da nossa frágil existência humana" (Gagnebin ao ler a obra de Benjamin). Se por um lado a obra de memórias salva um passado, por outro, não deixa de estar atravessada pelo refluxo do esquecimento, esquecimento que não seria necessariamente uma falha, um branco de memória ou a própria incapacidade de recuperar o tempo perdido, mas a atividade que recorta, monta, re-escreve o próprio passado. 

A obra de Pedro Nava, por exemplo, um dos pontos mais altos do literatura de memórias, é um compósito de espontaneidade e artifício, consciência artística e afetação. Leitor apaixonado de Marcel Proust, Nava ficcionaliza as memórias. Por isso, sua obra difere significativamente de boa parte da tendência, violando, assim, uma regra básica do memorialismo. É que Nava, ao misturar a fala do narrador a de outros personagens, como Egon, seu alter-ego, transcende aquele memorialismo presente na literatura nordestina, que se concentrou no convencional e no documentário, social ou socialista. Assim ele não apresenta uma ficção como se fosse um relato, mas um relato como se fosse ficção. Um procedimento que não consiste em lembrar do passado, mas reinventá-lo. Não se trata meramente de recordar, mas de reencontrar, à maneira proustiana, o tempo perdido. Em 1972, Nava publica o primeiro volume de suas memórias, intitulado Baú de Ossos, centrado em seus ancestrais do Maranhão e do Ceará, bem como em sua primeira infância na cidade mineira de Juiz de Fora. Em 1973, saí o segundo volume, Balão Cativo, em que descreve ainda a infância até a morte do pai. Depois, são as lembranças dos anos passados no Colégio Pedro II (Chão de Ferro, 1976), a juventude em Belo Horizonte (Beira-Mar, 1978), o início da carreira médica, em São Paulo (Galo das Trevas, 1981), e a mudança para o Rio de Janeiro (O Círio Perfeito, 1983). O autor preparava um sétimo volume quando se suicidou em 1984. Nos seis volumes, a história e a invenção se encontram intimamente misturadas, a imaginação se reveza com a memória, o passado individual se funde com o passado coletivo, o que não é comum em autobiografias. Nava, em todos os volumes, desenvolve digressões, movimentos e ida e vinda no tempo, lançando mão de uma grande quantidade de materiais, como cartas, fotos amareladas que se juntam à memória pessoal e à imaginação do autor. Quando se trata de literatura memorialista, Nava recebe destaque da crítica, de Antonio Candido e Wilson Marins a Davi Arrigucci, de Dalton Trevisan a Otto Maria Carpeaux. Esses dois últimos, por sinal compararam a qualidade do texto de Nava a de Proust.

Pedro Nava

Alfredo Bosi, em História Concisa da Literatura Brasileira, distribui o romance brasileiro moderno , de 30 pra cá, em quatro tendências: Romances de tensão mínima, em que as personagens não se destacam visceralmente da estrutura e da paisagem que as condicionam; Romances de tensão crítica, em que o herói opõe-se e resiste antagonicamente às pressões da natureza e do meio social; Romances de tensão interiorizada, em que o herói evade-se, subjetivando-se o conflito; Romances de ação transfiguradora, em que o herói procura ultrapassar o conflito que o constitui essencialmente pela transmutação mítica ou metafísica da realidade.

No que se refere à literatura memorialista, Bosi a insere na terceira categoria, em que predominam os romances psicológicos, cujos traços principais são o memorialismo, o intimismo e a auto-análise. Mas muitas vezes essas quatro tendências se misturam, o que nos levam a supor que é possível encontrar traços fortes de um memorialismo em romances de outras categorias. É o caso de José Lins do Rego, que produziu uma obra memorialista, mesmo desprovida de uma tensão interiorizada, presente em Cyro dos Anjos, Lúcio Cardoso, e Ligia Fagundes Telles, por exemplo. Bosi trata dos romances memorialistas como romances de ego. Não podemos desconsiderar que a ascensão da psicanálise nos anos 30 e 40 influenciaram, direta ou indiretamente, tal tendência. O termo “romances de ego” parece ter uma carga pejorativa, como se esse tipo de produção caracterizasse um realismo menor. Para Bosi esse realismo menor seria superado depois dos anos 50 e 60, momento que, segundo o pesquisador, entramos numa era de pesquisa estética que geraria obras como intimistas mais bem realizadas esteticamente como a de Nélida Piñon e Raduan Nassar. Momento que, segundo Bosi, a literatura brasileira produziria uma ficção menos “egótica” e mais “suprapessoal”. Um tipo de literatura que se iniciou no Brasil com Joaquim Nabuco, em “Minha formação” e que, de maneira diferente, sobrevive na atual literatura brasileira.

Cyro dos Anjos


Na apaixonada integração da paisagem e do homem, em A bagaceira (José Américo de Almeida), talvez se possa reconhecer um subjacente memorialismo. Um memorialismo que na década de 30 daria início a uma linhagem de obras que aliaram o interesse realista, socialista e regionalista às impressões de memória. O engenho Marzagão foi situado perto e Areia, terra natal do autor, que, em discurso de louvor à cidade, diria que o “o homem será sempre prisioneiro de sua origem”. O livro, aliás, influenciaria a obra memorialista de José Lins do Rego. 

José Américo de Almeida

O “Ciclo da cana-de-açúcar” se inicia exatamente com o material que iria tornar-se recorrente na obra de José Lins, materializando a ânsia do autor em retomar e reforçar as matizes do mundo perdido na infância. Menino de Engenho – que tinha como título inicial o nome Memórias de um menino de engenho – é isto, a narração poetizada do dia a dia no Corredor, agora transformado no Engenho Santa Rosa do Coronel Zé Paulino. Por meio de Carlinhos, o romancista assiste novamente às inundações do Paraíba, chora a ausência da mãe, brinca com os moleques da bagaceira, redescobre os amores das mucamas e dos animais. 

O autor possui aquela capacidade de fabulação memorialística que, segundo Álvaro Lins, nos deixa aquela sensação de “realidade tão profunda que não sabemos nunca se ela vem da vida objetiva ou da imaginação do autor”. Nesse sentido, poderíamos ler o romance de José Lins como um típico “roman à clef”, expressão usada por Mário de Andrade (Aspectos da Literatura Brasileira) com relação ao livro O Ateneu, de Raul Pompéia. A expressão cabe perfeitamente ao gênero memorialístico ao designar a forma narrativa na qual o autor trata de pessoas e fatos reais por meio de personagens e situações fictícias. Mas o roman à clef, traço da literatura de memórias, ainda não pode ser considerado memorialismo. 

José Lins do Rego

Na memorialística brasileira, Pedro Nava conquistou um dos primeiros lugares. Sua obra é um painel social, uma reconstituição histórica e uma construção de estilo. É por essa última qualidade que ficará como obra excepcional de literatura. Wilson Martins costumava dizer que nem todos os grandes escritores são memorialistas, mas que ninguém será grande memorialista se não for grande escritor. E é aí que reside a qualidade de Pedro Nava, cujo estilo não consistia apenas no uso do relato, mas no milagre da transubstanciação. Que nos importam os nomes de tantos lugares desconhecidos, tantas ruas e prédios que jamais veremos? O que nos importa é que, em sua obra, tudo isso se transformou em matéria literária, em paisagens e personagens, em Testemunho do tempo.

sábado, 1 de abril de 2017

Grande Sertão: Veredas, o bildungsroman do Brasil

 


Willi Bolle, em grandesertão.br, considera Grande Sertão: Veredas uma reescrita crítica de Os Sertões, de Euclides da Cunha. Segundo o pesquisador, Guimarães Rosa organiza a sua narração em forma de redes temáticas, uma espécie de network, no qual o sertão é o mapa alegórico do Brasil; o sistema jagunço, a instituição entre a lei e o crime; o pacto com o diabo, a alegoria de um falso pacto social; a figura de Diadorim, o desafio para desvendar o dissimulado e o desconhecido; e a fala do povo, o próprio labirinto da língua. Essa rede serve de meio para observar e investigar a rede dos discursos sobre o país. Dessa maneira, a leitura de Willi Bolle se inscreve numa linhagem interpretativa que analisou no texto rosiano a experiência histórica. Mas nesse caso, uma experiência interpretada, à luz de um modelo dialético, a partir das experiências de linguagem. Ou seja, o problema externo é incorporado ao romance como um elemento de composição interno (situação narrativa, linguagem, etc).

Para Bolle, Rosa, ao contrário de Euclides da Cunha, trata o povo não como um objeto de estudo e de teorias, mas como sujeito capaz de inventar e narrar sua própria história. A análise de Bolle poderia ser menos sociológica, no entanto, a obra crítica é bem fundamentada e ilumina muitos detalhes do livro de Rosa. Pequenos detalhes como a análise do mapa que compõe uma de suas edições, criado por Poty Lazarotto e Guimarães,são bastante interessantes.

Willi Bolle compara o romance de Guimarães com os principais ensaios de formação, de Euclides da Cunha a Darcy Ribeiro, passando por Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Celso Furtado, Raimundo Faoro, Antonio Candido e Florestan Fernandes. A hipótese de Bolle é a de que por ser uma história a partir do Mal, Grande Sertão revela mais sobre as estruturas sociais e políticas do que o padrão dos bem-intencionados programas escolares. O discurso do narrador luciférico do livro aguça a nossa sensibilidade para aquelas formas do falso no espaço público, observadas por Walnice Nogueira Galvão, em texto sobre Guimarães Rosa. A tese de Willi Bolle é que o romance de Guimarães é o mais detalhado estudo de um dos problemas cruciais do Brasil: a falta de entendimento entre as classes dominantes e as classes populares, o que constitui um sério obstáculo para a verdadeira emancipação do país. Ao comparar o Grande Sertão: Veredas com os referidos ensaios sociológicos e historiográficos, o pesquisador chegou à conclusão de que esse livro é o romance de formação do Brasil. Não no sentido convencional do bildungsroman, que está centrado no indivíduo em oposição do romance social. É o romance de formação do país, e não de um indivíduo, na medida em que o autor, por meio da invenção da linguagem, “refinou o medium para esse país se pensar a si mesmo”.




Com isso, Willi Bolle se afasta da tendência da recepção (1950 – 1990), que privilegiou leituras existenciais, esotéricas e metafísicas, que tentaram explicar a obra. Outra tendência da qual Bolle se afasta é aquela que, na época da ditadura militar, aniquilou o ethos histórico. Com isso, o crítico tenta recuperar uma leitura da história, ausente até então.

Para Walnice Nogueira Galvão, Rosa dissimula a História para melhor desvendá-la. O próprio escritor chegou a afirmar no prefácio do livro Tutaméia que a história quer ser estória.    Guimarães Rosa, apesar de se inscrever na linhagem das obras de formação do Brasil, delas se fasta em vários aspectos. Distancia-se, por exemplo da grandiloquência de Euclides da Cunha. Através da reinvenção da linguagem, Rosa não se limita a escrever sobre o povo, como o autor de Os Sertões, mas faz com que as pessoas do povo sejam elas mesmas donos das palavras. O mesmo se dá com a representação do espaço: “O olhar de Guimarães Rosa sobre o sertão é o exato oposto das vistas euclidianas do alto: é uma perspectiva rasteira. Enquanto o ensaísta-engenheiro sobrevoa o sertão como num aeroplano, o romancista caminha por ele como por uma estrada texto. Ou então ele atravessa o sertão como um rio. Com a transformação do sertão em espaço labiríntico, Rosa recupera o desenho de um Brasil recalcado, que Euclides e os adeptos do desenvolvimentismo, com sua mítica fé no progresso, fazem de conta que se apagará. Para Bolle, a razão de ser histórica do discurso labiríntico de Guimarães Rosa é constatar a visão linear e progressista da história em Euclides.


segunda-feira, 27 de março de 2017

Que falta de Cultura



O discurso do Ministro da Cultura, senhor Roberto Freire, na entrega do Prêmio Camões a Raduan Nassar, um dos maiores escritores de nossa história ("Maravilhoso senhor da vida", para usar uma expressão que o querido Roberto Cossan acaba de usar), é sintoma da intrépida desfaçatez do atual Governo. Prefiro celebrar a literatura de Raduan, cujas palavras serão lembradas daqui há séculos, enquanto que as palavras do Ministro serão sepultadas no limbo da história, ou no máximo lembradas como um conjunto de trapalhadas, cópia mal feita de ópera-bufa. As palavras, a postura e o tom de Freire, ao pleitearem seriedade, soam burlescos.
Só uma observação para aqueles que acham que Raduan Nassar deveria devolver o dinheiro do Prêmio Camões com o qual foi contemplado: o valor da propriedade que ele doou ao Governo Federal de bom grado para a construção de um campus da UFSCAR é muito superior à quantia simbólica do prêmio. Vale milhões! Segundo, o Governo não fez um favor a um oposicionista, mas deu andamento a um processo de premiação - iniciado no Governo de Dilma - ao maior escritor vivo da literatura brasileira. Terceiro, o senhor Roberto Freire, Ministro da Cultura, nem é da Cultura, mas sim o presidente de um partido subserviente ao Golpe e àquilo que ganhou com ele.

sexta-feira, 24 de março de 2017

"Com medo ninguém escreve"




Clarice, cuja escrita sempre rimou com coragem, lembrada por José Castello

"Poderia contar como foi recebido da primeira vez que você ligou para Clarice, dizendo que era escritor? Eu tinha uns 25 anos de idade. Um dia, pelo correio, lhe mandei um conto. “Carta a um observador romano”, ele se chama. Entre os 20 e os 30 anos, escrevi muitos contos, embora nunca os tenha publicado. Junto com meu relato, mandei meu telefone, mas nunca pensei que ela iria me ligar. Um dia o telefone toca em minha casa. “José? Aqui Clarice Lispector”, ela me disse. Eu mal consegui falar. Então, antecipando-se, ela disse, com aquela sua pronúncia cheia de erres, que atribuíam a sua origem ucraniana, mas que ela dizia ser o resultado de uma língua presa: “Li seu conto e só tenho uma coisa a lhe dizerrrr: você é um homem muito medrrrroso e com medo ninguém escrrrreve. Boa tarde”, e simplesmente desligou. Até hoje, passados 40 anos, ainda ouço com nitidez sua voz. Foi a crítica literária mais importante que já recebi."

José Castello

quarta-feira, 22 de março de 2017

Sobre a arte de montar uma aula


Sempre imaginei, como professor, a aula como puzzle. Aprendi com Barthes e tenho procurado exercitar tal jogo ao longo dos anos. Posso ser acusado de barroco, complexo, hermético ou doido. Assumo risco. Barroco e completo são quase sinônimos; dobras obre dobras, dobradas deleuzianamente ao infinito. Hermético é alquimista em estado de graça. Sinto-me, poeticamente, nessa brincadeira, quase um Zeus. Doido é fugir do lugar comum, já nos dizia o filósofo. Barthes escreveu um belo fragmento sobre a arte de montar uma aula:

"Colocamos casas para serem preenchidas = uma tópica (grade de lugares). Que cada um as preencha; jogo coletivo: puzzle. Eu sou o fabricante (o artesão) que corta a madeira. Vocês são os jogadores. Princípio da não-exaustividade. Irei mais longe (talvez para me inocentar). O curso ideal seria talvez aquele em que o professor -o locutor- fosse mais banal do que seus ouvintes, no qual aquilo que ele diz fosse menos do que aquilo que ele suscita. Se o curso é uma sinfonia de propostas, a proposta deve ser incompleta, caso contrário é uma posição, uma ocupação fálica do espaço ideal. O sonho: uma espécie de banalidade não-opressiva, arejada. Ou uma vaga alegoria: o Viver-Junto. Toques sucessivos: uma gota disso, um brilho daquilo. Enquanto a coisa está se fazendo, não se compreende aonde ela vai: cf. em pintura: o tachismo, o divisionismo (Seurat), o pontilhismo. Justapõem-se as cores sobre a tela em vez de misturá-las na paleta. Eu justaponho as figuras na sala de aula, em vez de misturá-las em casa, à minha mesa. A diferença é que aqui não há um quadro final: na melhor das hipóteses, caberia a vocês fazê-lo".

Barthes em Como Viver Junto