quinta-feira, 13 de abril de 2017

A EMANCIPAÇÃO LITERÁRIA: NACIONALIDADE INFLUÊNCIAS E TENSÕES



Antes de discutirmos a emancipação da literatura brasileira, convém abordarmos a questão do nacionalismo, entendido por Antonio Candido como fundamental no processo de nossa autonomia. Como veremos, tanto o nacionalismo quanto a autonomia estão repletos de impasses críticos e teóricos.

Em março de 1973, Machado de Assis publica na revista Novo Mundo o ensaio “Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade”. Nele, o bruxo do Cosme Velho observa que um poeta não é nacional apenas por inserir em seus versos nomes de flores e aves do país, o que pode dar uma nacionalidade de vocabulário e nada mais. Assim, pode-se apreciar a cor local, mas é preciso que a imaginação lhe dê contornos. As conhecidas idéias sobre a matéria do instinto de nacionalidade mostram um momento de maturidade crítica. Nesse processo a posição machadiana conceitua o nacional como construção e como problema. Machado toma por errônea a opinião que só vê espírito nacional em obras que tratam de temas locais, o que demonstra que um escritor pode ser um homem de seu tempo e de seu país mesmo tratando de assuntos remotos no tempo e no espaço. É o que pensa Afrânio Coutinho, em Conceito de Literatura Brasileira, ao afirmar que o sentimento de “brasilidade” só terá eficiência e validade se não se opuser ao legítimo vaivém de correntes que se entrosam e se vivificam entre o nacional e o universal. Não é à toa que Haroldo de Campos considera Machado de Assis nacional por não ser nacional.

Machado de Assis

O crítico Raul Antelo, em Algaravias: discursos de nação, reflete sobre a radical impossibilidade de se pensar conceitos de nação e ficção como definidos a priori e livres de controvérsia. Isso porque os campos da literatura e do nacional não conhecem fronteiras precisas, podendo, enfim, avançar-se o critério paradoxal da excentricidade como o mais adequado princípio para a literatura e para o nacional. Não seria fortuito lembrar que o universo literário espreita as margens do sistema, nunca se estabilizando em seu interior. Da mesma forma, a ideia de nacional não nos permite isolar objetos que possamos, a rigor, chamar de nacionais. Não há esses objetos. Existe o nacional apenas como uma dimensão peculiar do mundo simbólico, não pressupondo um dado espontâneo, mas apenas uma identidade socialmente construída. Daí a opção de Antelo pensar o nacional não como uma tradição, mas como uma tradução, o que problematiza toda uma linhagem crítica pautada na ideia do nacional como pressuposto para a autonomia, como é o caso de José Veríssimo e Antonio Candido.

Raúl Antelo

Problema correlato ao da origem e autonomia é o da nacionalidade e do nativismo. Afrânio Coutinho, que polemiza com Candido sobre a origem da literatura brasileira, observa, no já citado Conceito de Literatura Brasileira, três formas de nacionalismo em literatura. Em primeiro lugar, a literatura compreendida como instrumento de um ideal nacional de expansão e domínio político de um povo ou nação. Evidentemente, esse nacionalismo é um dos mais perniciosos para a própria nação da qual se faz arauto e para os demais países. O segundo tipo de nacionalismo é o do pitoresco, que valoriza manifestações literárias regionais, cultivando-o e exagerando-o no pressuposto de que nele reside o verdadeiro caráter da nacionalidade. A valorização do pitoresco resultou em obras interessantes, no entanto, não tem sido muito fecundo, pois limita a seleção de materiais artísticos, não considerando a universalidade necessária à literatura. Mas há exceções. Pensemos, por exemplo, em algumas manifestações nacionalistas do romantismo brasileiro. José de Alencar consegue desenvolver com Iracema uma literatura nacional, ao imaginar a gênese de uma América mestiça, e também universal ao materializar com presteza a representação do amor e da dor, temas tipicamente universais. Assim, a literatura de Alencar poderia ser enquadrada na terceira forma de nacionalismo, o autêntico, que pode aproveitar temas regionais sem criar uma doutrina que o empobreça. Essa forma equivale ao instinto de nacionalidade descrito por Machado. Para alcançá-lo é preciso desenvolver um “sentimento íntimo”. Quanto mais fiel o escritor for a esse sentimento – as palavras são de Machado – mais nacional (universal) será a obra.   

Antonio Candido


Partimos do pressuposto de que o nativismo é anterior ao nacionalismo em nossa literatura. É o que pensam a maioria de nossos críticos e historiadores da literatura. José Veríssimo defende que desde as primeiras manifestações literárias do Brasil, já podemos entrever uma postura nativista que desencadearia o sentimento nacionalista. Antonio Candido, seguindo as pegadas de José Veríssimo, desenvolve a tese a partir da ideia da nação como fio condutor de nossa autonomia. Para ele, a literatura ajudou a fundar um imaginário de nação, contribuindo para a nossa autonomia política.

Antes do Arcadismo, existiam apenas manifestações literárias, que não chegaram a construir um sistema. Sistema esse pautado pela tríade autor-obra-público. Somente quando esse sistema passou a operar é que podemos falar em uma literatura brasileira (autônoma). Para Candido, os árcades foram os primeiros a se empenhar em construir uma literatura como prova de que os brasileiros eram tão capazes quanto os portugueses, o que se intensificou depois de nossa Independência. Ou seja, o movimento romântico consolidou um processo de autonomia que vinha se delineando desde a obra de Cláudio Manuel da Costa, em meados do século XVIII. Se o nacionalismo só vai aparecer com força no século XVIII e se consolidar no século XIX, o sentimento nativista, começa a aparecer ainda no século XVI.

Cláudio Manuel da Costa

Sobre esse fato vale lembrar do conceito de obnubilação, desenvolvido por Araripe Junior, segundo o qual o europeu aqui chegando obnubilava a vida que deixou para trás. Esse processo modificava intensamente o homem, gerando um gradativo esquecimento dos laços afetivos com a Europa, o que favorecia um sentimento de apego à terra que começava a ser colonizada. Dessa maneira, um novo homem criou-se desde o primeiro instante em que botou os pés no novo Mundo. Daí a polêmica entre Candido e Coutinho, pois este acredita que a literatura brasileira, desde o século XVI, já não é um mero “ramo” ou “galho” da literatura portuguesa. E o fator responsável por isso foi, em sua opinião, o apego a terra, ou seja, o nativismo, que já aparece em textos de José de Anchieta. Ao lado da corrente jesuítica, outra se formou. A da exaltação da terra, também com intenções persuasivas, criando-se assim um verdadeiro ciclo de literatura nativista, um novo mito do eldorado ou terra prometida, rica e farta, habitada pelo bom selvagem de Montaigne. Sobre essas utopias que se iniciaram com Tomas Morus, passando por Campanella e Francis Bacon, até os textos socialistas do final do século XIX , merece destaque o livro Visão do Paraíso, de Sérgio Buarque de Holanda, que analisa as representações históricas e literárias que personificaram essas visões. É o caso também de boa parte da literatura de informação produzida por figuras como Pero Magalhães de Gandavo, Gabriel Soares de Sousa, Rocha Pita, entre outros.

Afrânio Coutinho

Para José Veríssimo, no período colonial, salvo raras exceções, a literatura praticada aqui não fazia senão imitar inferiormente a literatura portuguesa. Assim, autores como os do barroco, em sua maioria, são considerados como poetas medíocres. É justamente por produzirem uma obra desligada das idéias de nacionalidade e nativismo que eles são sequestrados dos estudos literários. No entanto, poderíamos pensar, na esteira do pensamento do crítico e escritor cubano José Lezama Lima, que os escritores barrocos estavam pensando a arte de um ponto de vista pós-nacionalista, para usar uma expressão de Décio Pignatari, mesmo antes do espaço geográfico latino-americano constituir nações tal como as conhecemos. Lezama Lima consegue desconstruir o binômio nacional cosmopolita ao pensar o barroco como arte da contra-conquista e não como arte da contra-reforma. Isso porque esse movimento artístico do século XVII é considerado o “começo genial” de nossa literatura. Nas suas palavras ele foi uma tomada de consciência, uma resposta artística do colonizado em relação ao colonizador. Uma espécie de antropofagia pré-oswaldiana, já que foi por meio da arte que o artista barroco (colonizado) pode colonizar esteticamente o colonizador. É caso de Aleijadinho que mesclou formas barrocas europeias com traços artísticos afro-indígenas. É também o que fez o índio Kondori, na Igreja de San Lorenzo de Potosí (sobre isso, já escrevi aqui há algum tempo), ao misturar a figura larval de anjos barrocos com entidades mitológicas da cultura inca. É justamente por pensar a arte além das fronteiras do “nacional” que o artista barroco conseguiu desenvolver um instinto não menos nacional de nativismo e nacionalidade. 

José Veríssimo

Isso tudo apenas para concluirmos que os conceitos de nacionalidade e nativismo são problemáticos. Uma literatura autônoma não se faz apenas com temas e vocabulário locais. Perceber isso é fundamental para entendermos um pouco melhor aquilo que se convencionou chamar de literatura brasileira. Lembremos da previsão de Marx e Engels, ao afirmarem que em lugar do antigo isolamento das províncias e das nações bastando-se a si próprias, desenvolvem-se relações universais. E que o que é verdadeiro em relação às produções materiais o é também no tocante às produções do espírito. A estreiteza e o exclusivismo nacionais tornam-se cada dia mais impossíveis e da multiplicidade das literaturas nacionais nasce uma universal, pós-autonômica e superior a qualquer tentativa de nacionalidade ou nativismo.

Suposto retrato de Aleijadinho

Não seria fortuito lembrar que, em 1827, Goethe, em uma carta endereçada a Eckermann, vai cunhar o termo Weltliteratur, defendendo a emergência de uma literatura universal em detrimento de uma literatura nacional. Penso que alguns séculos depois de Aleijadinho, com a antropofagia oswaldiana, no século XX, tomamos consciência da necessidade de pensar o nacional em relacionamento dialético ou dialógico com o universal. Haroldo de Campos, em textos como “Da razão antropofágica” e “O sequestro do barroco na formação da literatura brasileira”, ambos da década de 80, vai recorrer ao nacionalismo como movimento dialógico da diferença e não como signo platônico de uma origem.
Logo, mais importante do que conhecer esses discursos de nacionalidade e nativismo é saber onde eles falham, de que maneira constroem ficções, visões de mundo, tradições e traduções.

José de Alencar

Onde reside a nacionalidade da literatura? Onde encontra ela seus elementos nacionais? Sobre isso, e para finalizar, vale lembrar da polêmica entre José de Alencar e Gonçalves de Magalhães (Alencar vai escrever uma série de artigos na imprensa carioca criticando Magalhães e assinando com um pseudônimo). No dizer de Alencar, Magalhães formulou a questão de um modo errôneo. O poema “Confederação dos Tamoios” fracassou no seu instinto de nacionalidade, porque embora estivesse no caminho certo em busca de uma nacionalização literária, mediante a exaltação dos feitos e da terra brasileiros, não colocava com felicidade a solução do problema formal, ao escolher um gênero cediço e adaptado a literaturas estranhas e antigas como a epopeia. Ou seja, queria produzir uma literatura brasileira, mas sem produzir uma linguagem, uma forma, brasileira. Tomava como mote o tema dos índios, mas “colocava em suas bocas palavras estranhas”, próximas apenas da cultura européia. Para Alencar o problema passava pela questão da linguagem, o que a maioria dos escritores anteriores a Alencar, como Basílio da Gama e Santa Rita Durão não conseguiram fazer. Apesar de que o poema Caramuru, de Durão já pode ser considerado uma gênese do sentimento nacionalista que se intensificaria no romantismo do século XIX. 

Frei José de Santa Rita Durão

O amor de Diogo Álvares Correia por Paraguaçu, que é alegoria de um amor do colonizador pela terra que descobriu e começou a colonizar será aprimorado por poetas como Gonçalves Dias, em poemas como Canção do Exílio, Juca Pirama e Os Timbiras. É por isso que Alencar mergulhou não apenas nos temas locais e no seu vocabulário correspondente, mas principalmente no ritmo, na sintaxe, na musicalidade da língua indígena, o que o fez ser considerado por críticos como Henriques Leal, José Feliciano de Castilho, Pinheiro Chagas, Franklin Távora e Joaquim Nabuco um assassino do vernáculo, uma insurreição à língua portuguesa. Só o tempo conseguiu provar o contrário, mostrando que a literatura brasileira, para firmar-se, necessitava não só de uma investigação sobre a linguagem, como da transcendência da mera nacionalidade ou nativismo.

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