sábado, 8 de abril de 2017

Tendências estéticas da modernidade na poesia brasileira (apontamentos)


Au foyer du théatre, de Constantin Guys

Antes de discutirmos as tendências estéticas da modernidade na poesia brasileira, que a nosso ver surgem com a poética simbolista, devemos especificar algumas questões que podem nos ajudar a entender melhor tais tendências. Concentraremo-nos  na poesia finissecular européia tendo em vista que sem entendê-la, pelo menos em parte, é praticamente impossível entender a modernidade brasileira.

Comecemos pensando o conceito de “modernidade”. Em 1859, depois de visitar uma exposição do pintor Constantin Guys, Charles Baudelaire escreve uma coletânea de artigos de crítica de arte intitulada “O pintor da vida moderna”. Nesses textos, o autor das “Flores do Mal” desenvolve algumas das primeiras impressões sobre aquilo que se convencionou chamar de modernidade (aliás, Baudelaire foi um dos inventores da palavra). O poeta parte do pressuposto de que a arte possui duas metades. A primeira refere-se ao contingente, ao efêmero, ao transitório, ou seja, a modernidade, e a segunda refere-se ao infinito e ao eterno que ela pode presentificar. 

Constantin Guys

A modernidade seria pautada não só pela capacidade de ver no deserto urbano a decadência do homem e de pressentir uma beleza misteriosa não descoberta até então, mas também pela capacidade de extrair o eterno do transitório. Esse é o problema específico para Baudelaire, ou seja, a capacidade da poesia numa sociedade comercializada e dominada pela técnica. 

A principal característica da modernidade seria a perda da inocência e a desesperança pelo que virá. Essa desolação, que se originou do processo de racionalização que surgiu no Ocidente no final do século XVIII, gerou uma crise da linguagem que é sintomática na modernidade. Uma crise que se intensificou a partir de uma outra crise, aquela gerada pela Segunda Revolução Industrial, nas duas últimas décadas do século XIX. Do sistema capitalista surgiu uma nova ordem econômica que beneficiava a elite européia em prejuízo da maioria da população, constituída pela classe média e pelo proletariado. O intenso progresso científico e técnico não conseguiu mascarar um clima de intranquilidade e pessimismo.

Baudelaire

Apesar de Baudelaire ser considerado o precursor da modernidade, seus legítimos fundadores, na opinião dos críticos, são os poetas simbolistas Mallarmé e Rimbaud. Foram eles que colocaram em prática aquilo que Baudelaire vinha desenvolvendo anteriormente no âmbito teórico. Mallarmé percebeu a crise não apenas histórica (decadência), mas também formal que circundava a produção literária do período, o que o levou a escrever o texto “Crise de Verso”, em que analisa a ruptura causada pelo enjambement, que fez com que o verso perdesse a sua vocação para o natural, para o sentencioso e para o aforístico (caso do verso alexandrino francês tradicional). A “torção da linha”, desencadeada pelo enjambement foi responsável pela crise da linguagem que abriu as portas para o poema em prosa e de verso livre, praticados abundantemente pelos modernos, modernistas, e contemporâneos.

Mallarmé

A tensão dissonante é o objetivo das artes modernas em geral. Sua obscuridade e desarmonia são intencionais. A poesia moderna quer tornar estranhos os conteúdos. Antes da modernidade, a lírica era entendida como linguagem em estado de ânimo, da alma pessoal. A poesia já não quer mais ser medida em base ao que comumente se chama de realidade. Ela prescinde da humanidade, no sentido tradicional, da experiência vivida, afastando o “eu” do artista. O “eu” moderno é um eu cindido, desterritorializado e o poeta passa a ser agora um operador da língua (noção que sobrevive na poesia de Carlos Drummond de Andrade, no conceito de Gauche).

Além dos sintomas premonitórios da modernidade serem figurados pela fragmentação da linguagem do poeta romântico Novalis e da teoria do grotesco, delineada por Diderot e aprimorada por Vitor Hugo, devemos lembrar da despersonalização como fundamento da poesia. A lírica moderna desconstrói a união entre poesia e pessoa. Fora da França, Edgar Alan Poe foi quem separou de maneira contundente a lírica e o coração. Baudelaire, leitor de Poe, defendia a poesia como trabalho, como construção sistemática de uma arquitetura e não como embriaguez do coração (Noção que sobrevive com força nas concepções poéticas de João Cabral de Melo Neto). Assim, é sob o signo da despersonalização que nasce o poetar moderno (elogio do artifício). Baudelaire acreditava que tudo o que é natural é monstruoso e tudo o que é artificial, magnífico e sublime. Acrescentemos à figura de Baudelaire, Fernando Pessoa, para quem o poeta é um fingidor e Rimbaud, para quem o “eu” é sempre um outro. A poesia de Rimbaud continua sendo a linguagem originária da poesia moderna. Começou com versos encadeados, passando aos versos livres e ao poema em prosa. Mallarmé, por sua vez, defendia a poesia como fruto do intelecto e como manejo com a língua.

Rimbaud

Podemos concordar que a maior parte da poesia modernista é herdeira direta das experimentações da poesia simbolista, no que ela tem de moderna, principalmente devido à liberdade formal, do verso de uso irregular, rompendo com toda submissão obrigatória, e permitindo assim um reaprendizado da leitura como tomada de consciência dos mecanismos significantes.

Nossos primeiros modernos, os simbolistas, foram leitores de Baudelaire, Rimbaud, Verlaine e Mallarmé. Aqui, o movimento simbolista iniciou-se oficialmente com a publicação de dois livros do poeta catarinense Cruz e Sousa: Missal e Broquéis, ambos de 1893. Mas antes disso já havia uma movimentação em torno de uma nova poesia que já vinha sendo anunciada em 1879, por Machado de Assis, no artigo A Nova Geração.


Se por um lado o simbolismo influenciou o surrealismo (pela ideia do eu cindido, o inconsciente da psicanálise), por outro, podemos encontrar influências sobre o expressionismo, tal como Paulo Leminski observou no seu livro sobre a vida e obra de Cruz e Sousa. Augusto de Campos, por sua vez, encontrou em Pedro Kilkerry (poeta simbolista baiano) o precursor não só do surrealismo, mas da poética cinematográfica de Oswald de Andrade. É o caso também de Sousândrade considerado pelos concretistas como um dos precursores do modernismo, por antecipar certas técnicas poéticas como o uso de versos livres, neologismos, etc.

Pedro Kilkerry

No Brasil, a modernidade coincide com a proliferação de imagens técnicas. Há uma vontade de modernização que invade o país, o que pode ser percebido no processo de urbanização desenvolvido pelo prefeito Pereira Passos (1905), uma espécie de Barão Haussmann dos trópicos. Os primeiros automóveis começam a circular pelas cidades. Os jornais proliferam as suas tiragens, a luz elétrica é implantada. A art nouveau entra na moda. É o clima da Belle époque. Um cenário que será fotografado por artistas como Marc Ferrez e Klumb. Susan Sontag, em Ensaios sobre Fotografia, observa que uma sociedade se torna moderna quando uma de suas principais atividades passa a ser a produção e o consumo de imagens. Nesse contexto, a literatura não só representa essas inovações técnicas (cinema, fotografia, literatura), como incorpora seus procedimentos ao próprio texto. Kilkerry, por exemplo, com as suas Kodaks (crônicas do cotidiano) “enforma” a produção cultural da época, ou seja, incorpora procedimentos técnicos oriundos dessas inovações. O que de certa forma será aprimorado por Antonio de Alcântara Machado, em Pathé Baby, em 1926. No livro, Machado reúne crônicas de uma viagem que realizou na Europa. Até aí, nada de novo, já que a literatura de viajantes é uma tradição da literatura brasileira. O aspecto inovador estava nas ilustrações que acompanhavam as crônicas. Elas não apenas ilustravam os textos, como construíam paralelamente uma outra narrativa, que representava a projeção de um filme de cinema mudo, cuja trilha sonora era produzida por um pequeno número de músicos. De maneira que podemos ler essa outra narrativa como se estivéssemos assistindo à projeção de um filme. É o que fará Oswald de Andrade, de outra maneira, não só nos livros Memórias Sentimentais de João Miramar, mas  em toda a sua poética, ao operar com cortes e repetições, procedimentos oriundos do cinema, como bem observou o filósofo Gilles Deleuze.



O nosso modernismo nasce, assim, sob o signo de um confronto entre a poesia como artefato e a arte no horizonte da reprodutibilidade técnica. De um lado as experimentações simbolistas, de outros o ambiente urbano, a velocidade das máquinas, a fé no progresso industrial. Flora Süssekind, em Cinematógrafo de Letras, observa que no confronto entre letras e técnicas, ora se dessacralizava a arte que se queria pura, ora roubando-se o arsenal técnico de seu contexto de origem, desautomatizava-se a sua utilização.

A modernidade brasileira tem sido lida por uma rua de mão única. Fala-se das vanguardas europeias como o fio condutor da produção literária da época. No entanto, as experimentações simbolistas foram tão ou mais importante que os ismos europeus, já que anunciaram a crise da linguagem, permitindo a emergência das próprias vanguardas. E isso não aconteceu apenas no âmbito da literatura. A pintura de Tarsila do Amaral e Anita Malfati, por exemplo, não foram influenciadas apenas pelo cubismo, pelo expressionismo e pelo impressionismo, mas também está atravessada, consciente ou não, pela pintura acadêmica do fina do século XIX produzida por pintores como Belmiro de Almeida e Almeida Júnior (sobre isso há um importante estudo do professor Tadeu Chiarelli).

Oswald de Andrade

Se por um lado Oswald foi influenciado pelo futurismo, disseminando-o pelo Brasil após o seu retorno da Europa, por outro é tocado pelo espírito inovador e mallarmaico de Pedro Kilkerry. Aliás, as vanguardas foram vistas com desconfiança por vários modernistas. Basta lembrar do fracasso da viagem e Marinetti (ciceroneado por Graça Aranha), ao Brasil, em 1926. Manuel Bandeira admirava mais a poesia finissecular do que as vanguardas, e chegou a escrever um importante estudo sobre a obra de Mallarmé, apresentado na Academia Brasileira de Letras em 1942. Mário de Andrade também desconfiou dos “ismos”, chegando a ficar incomodado quando Oswald o chamou de “Meu poeta futurista”. Mário considerava o movimento um avanço estético, mas também um retrocesso político, pelo seu aspecto fascista. As concepções modernas/modernistas de Mário aparecem com força em estudos teóricos como “Prefácio Interessantíssimo” e “A escrava que não é Isaura”. Neste último, interpreta o modernismo como uma poética da simultaneidade que mistura Mallarmé, Rimbaud e Gonçalves Dias.

O próprio Oswald parece que transcendeu as Vanguardas, apesar de ser influenciado em relação ao verso sintético, livre, branco e de palavras encadeadas, ou mesmo na ideia de manifestos.  Não podemos esquecer da sua poesia minuto e de seus poemas piadas que fundaram uma linhagem que predominou até a poesia marginal de Cacaso e Chico Alvim.  Seu livro Poesia Pau Brasil foi uma espécie de revolução copernicana da  literatura brasileira, como afirmou Haroldo de Campos. Poemas como “Amor Humor”, ápice da concisão, ou mesmo os ready-mades que ressignificaram a literatura dos viajantes, bem como as suas montagens, são sintoma de uma poesia cubista e cinematográfica.     


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