segunda-feira, 18 de setembro de 2017
poema-tempo escrito depois de um satori musical
para C. Azevedo
enquanto o damasco
arma a dura pele
em seu lento madurar
e vai passando o fruto
do verde ao amarelo rubro
um monge de sobrancelhas grossas
e pés ásperos de sandália
tira com cuidado e volúpia
acordes vibrantes de uma viola escarlate
cujo som por hora faz lembrar
os ares de um solista da Orquestra Sinfônica Simon Bolívar
no mesmo minuto a léguas dali
uma eslava octogenária
com roupas coloridas
saia longa, tamanco e meia
planta repolho em um campo aberto
que antes abrigou refugiados
perto de Kiev, no norte da Ucrânia
sem saber que a filha de sua neta
nascia naquele exato momento no sul do Brasil
(uma linda criança que ela nunca viria a conhecer)
no mesmo momento em que o mouro
de sobrancelhas grossas
e pés cansados
tirava da viola escarlate
um som vibrante que traduzia
no meio do deserto
tudo aquilo que nascia e se perdia como música
em tantos e outros lugares
c.moreira
sábado, 16 de setembro de 2017
O Urinol voltando para o banheiro
Detalhe da "Cena de interior II", e Adriana Varejão, 1994,
obra que estava na exposição Queermuseu
Depois de assistir a um longo frisson por parte de algumas pessoas que consideraram justo e merecido o fechamento da exposição Queermuseu, do Santander Cultural, em Porto Alegre (muitos "julgando" a mostra imoral e prejudicial aos bons costumes - Oscar Wilde escreveu que “a arte não é moral nem imoral, mas amoral”), lembrei-me das lúcidas e intensas reflexões sobre arte, do grande professor e ensaísta Raúl Antelo, em seus textos e em suas aulas, quando fui seu aluno durante alguns anos na UFSC. Na entrevista concedida para o VII ENAPOL (o vídeo pode ser encontrado no youtube), Antelo discorre sobre o império das imagens no mundo contemporâneo, refletindo sobre o atual estado da arte. Creio que suas observações nos ajudam a pensar no veto da exposição como sintoma de um tempo no qual impera uma concepção de arte bastante rasa e moralizante. O que de certa forma sempre aconteceu em momentos específicos e obscuros.
Como não lembrar da maneira como críticos e historiadores do século XVIII e XIX consideraram o barroco como degeneração da arte clássica. Monteiro Lobato fulminou Anita Malfatti, na exposição de 1917, ao considerar sua arte anormal e teratológica, fruto de uma paranoia ou mistificação. Hitler mandou destruir boa parte da arte de vanguarda ao considerá-la arte degenerada, e por aí vai (preocupa-me o senso comum, a falta de disposição para uma discussão mais profunda e fundamentada sobre o conceito que se debate, o "achismo" com ares de certeza, a censura como forma de eliminação daquilo que perturba, o juízo de valor - como em um tribunal da Santa Inquisição - apontando para o que seria arte e o que não seria arte). Antelo lucidamente nos lembra do caráter inoperante da arte, como forma de sabotagem aos sistemas, observando que Agamben, a partir de Debord, no bojo de uma sociedade do espetáculo entronizada, dominando nossas vidas, propõe "uma lógica claramente anarquista", que é a lógica do "inoperar", que é o que faziam os primeiros anarquistas. Raúl lembra que os anarquistas lançavam um tamanco na polia, na máquina, para que o motor parasse: "Tamanco se diz ´sabot`,daí a ´sabotagem´. Ou seja, uma das maneiras da fruição seria sabotar". Em oposição ao gozo administrado, previsto para todos, na sociedade do espetáculo, a arte visa a provocar um curto-circuito no espectador: "Provavelmente o espectador vai receber uma carga de 220w e provavelmente sua reação será dizer que isso não é arte, ou que isto é um nojo, ou como permitem isso no museu, na galeria, na rua, onde for. Mas justamente essa é a função, apresentar aquilo que o olhar não segura"
Nesse sentido, a proposta da exposição parece ter cumprido parte de seu papel. Suas narrativas parecem afetar o corpo e perturbar, inquietando o olhar. O que o cinema de Pasolini, esse vaga-lume alucinado, fez muito bem. O que seria dele nos dias atuais? O que seria de Bataille? Os motivos de uma veemente censura por parte de uma parcela da população são variados e, certamente, evocam causas íntimas, profundas e até inconscientes. O assunto ainda vai dar pano para a manga. Espero que pessoal do MBL e afins não se voltem contra os murais eróticos das ruínas de Pompeia.
Tragicômico: A revista Veja publica uma matéria no dia 13 de set. com a seguinte manchete: "Veja imagens da exposição cancelada pelo Santander, no RS". Os incomodados cancelarão a assinatura? Que pulem as páginas...
Link: entrevista: Raúl Antelo: https://www.youtube.com/watch?v=xOEuexByp2I
sexta-feira, 15 de setembro de 2017
quinta-feira, 14 de setembro de 2017
O mez da grippe, de Valêncio Xavier, carregando o mundo nas costas (parte III - final)
Talvez fosse possível
pensar nas montagens de Valêncio como um caleidoscópio. Como jogo, como “caixa
de malícias visuais”, o caleidoscópio teria o poder de romper em todo momento o
contínuo da história e fazer interpenetrar-se um “passado da sobrevivência” com
um “futuro da modernidade”, ou seja, pressupõe de um lado a violência da
desmontagem, o caos, e do outro o valor do conhecimento, por meio do
procedimento da montagem, o saber. Suas imagens se fazem e refazem
constantemente como um rio em torvelinho. A fenomenologia do brinquedo teria
permitido a Benjamin, via Baudelaire, articular melhor o duplo regime temporal
de uma mesma imagem, “esta dialéctica en suspenso productora de una visualidad
al mismo tiempo 'originaria' (ursprünglich) y 'entrecortada' (sprunghaft), al
mismo tiempo turbulenta y estructural” (DIDI-HUBERMAN, 2006, p. 167). Isso
porque nas configurações visuais sempre entrecortadas do caleidoscópio está em
jogo a “polirritmia do tempo”, a “fecundidade dialética”. Estamos diante de uma
caixa inteligente, uma caixa de malícias, que propicia uma montagem de
“simetrias desmultiplicadas” – para usar expressões de Didi-Huberman – uma
caixa cujas imagens se disseminam e se renovam a cada movimento do objeto.
A imagem do “aparelho
mágico” ressurge em Jarry, na sua tentativa de superar a metafísica. O ser
deixa de ser concebido como um ente superior que fundaria a constância dos
demais entes percebidos, e passa a ser entendido como um Vazio ou um Não-ente,
ou seja, um “caleidoscópio mental irisado (que) se pensa” (JARRY apud DELEUZE, 1997, p. 105). O atlas,
entendido como caleidoscópio é, assim, uma máquina de fabricar o tempo e o
vazio.
Para finalizar
gostaria de lembrar que no caleidoscópio que é a ficção de Valêncio percebemos
um gesto que o aproxima não só de uma montagem cinematográfica como a de História do Cinema, de Godard, mas
também de livros-montagem como Guerra
camponesa no Contestado, de Jean-Claude Bernardet. Marilene Weinhardt
lembra que tanto Bernardet quanto Valêncio Xavier estão ligados à prática
cinematográfica. Em ambos, o princípio da montagem é explorado com presteza e a narrativa é composta por um conjunto
de reportagens, depoimentos, cacos da história que desconstroem a linearidade
tradicional, bem como o discurso unívoco: “Contemporaneamente, quando o
narrador se disfarça atrás de recortes e colagens, não busca a objetividade,
mas pluralidade. Ele não aparece, mas existe, está sempre lá, em cada escolha,
espiando pelas fendas entre os fragmentos” (WEINHARDT, 2000, p. 149). A
montagem da obra é sintoma de um anacronismo que aparece no interior dos
próprios objetos, sendo, assim, “el modo temporal de expresar a exuberancia, la
complejidad, la sobre-determinación de las imágenes” (DIDI-HUBERMAN, 2006, p.
18). A imagem desmonta a história, como se desmonta um relógio. Quando
desmontamos um relógio, ele deixa de funcionar. Essa suspensão, segundo o
historiador da arte, traz um efeito de conhecimento que seria impossível de
outro modo, permitindo que outro jogo seja armado, que uma nova montagem possa
ser realizada. E o que se torna visível, aqui, no atlas de Valêncio, é o tempo,
o que demonstra que o escritor assumiu aquela tarefa que Didi-Huberman (2011,
p.1) afirmou corresponder ao artista ou sábio, pensador ou poeta, que é: “(...)
converter tal visibilidade na potência de ver os tempos: um recurso para
observar a história, para poder manejar a arqueologia e a crítica política,
“desmontando-a” para imaginar modelos alternativos”.
quarta-feira, 13 de setembro de 2017
O mez da grippe, de Valêncio Xavier, carregando o mundo nas costas (parte II)
Flora Sussekind
chamou a atenção para a morte como tema obsessivo retrabalhado incessantemente
na ficção de Valêncio Xavier (in
XAVIER, 1999). Da epígrafe sobre um sepulcro cheio de cadáveres, extraída de
Sade, anunciando um verdadeiro cortejo de vítimas da epidemia de gripe
espanhola em O Mez da Grippe à perda
amorosa em o Mistério da Prostituta
Japonesa, da história da menina de rua encontrada morta, nua, em um trem
fantasma à reconstituição da morte coletiva dos tripulantes dos cinco navios
brasileiros torpedeados, em agosto de 1942, pelos alemães, o fim da vida, a perda,
a ruína, o luto, coincidem com o nascimento da escritura, bem como com a sua
produtividade. Não se trata apenas de perceber na caveira o gosto pela natureza
petrificada, como um sintoma da finitude das coisas, mas de perceber que esse
gosto aponta não só para aquilo que está morrendo, para a decadência, mas também para aquilo
que está nascendo ou sobrevivendo, pressupondo, assim, uma outra relação com o
tempo. Valêncio lê e escreve Curitiba a partir de ruínas e, assim como George
Simmel e Walter Benjamin, parece extrair delas uma beleza não descoberta até
então.
Caveiras de Jules Laforgue
Em sua tese sobre o
barroco, Benjamin (1984) percebe que a imagem da natureza petrificada é marca
daquilo que a história chegou a ser. A história, nesse sentido, se exprimiria
numa caveira. Susan Buck-Morss lembra que os poetas alegóricos liam um
significado similar no emblema da caveira humana, “o resíduo esquelético de
olhar vazio que, alguma vez tinha sido o rosto humano” (1992, p. 202). Nesse
contexto, o emblema da caveira poderia ser lido de duas maneiras: “O espírito
humano petrificado; mas é também natureza em decadência, transformação do
cadáver em esqueleto que será pó” (idem,
p. 202). É nesse sentido, penso, que deveríamos ler a alegoria, responsável por
transformar os “seres vivos em cadáveres ou em esqueletos, as coisas em
escombros e os edifícios em ruínas” (GAGNEBIN, 2007, p. 39). Gagnebin faz esta
referência pensando na morte do sujeito clássico operada pela alegoria. Para
ela, é esta morte, e a consequente desintegração dos objetos, que faz ressurgir
a forma alegórica em Baudelaire: “Benjamin vê no capitalismo moderno o
cumprimento desta destruição. Não há mais sujeito soberano num mundo onde as
leis do mercado regem a vida de cada um, mesmo daquele que parecia poder-lhes
escapar: do poeta” (Idem, p. 39).
Ilustração de Félicien Rops, para Flores do Mal
Benjamin aprofunda a
noção da não-identidade essencial da alegoria, chamando a atenção para a
dialética do barroco, entre o jogo e o
luto. Tal dialética, que aproxima Baudelaire
do universo barroco, oscila entre a melancolia, que brota do luto, e a
produtividade que brota dessa perda. No século XIX, contexto das passagens
parisienses, reaparecem dois traços fundamentais do barroco, a rejeição e
veneração do mundo profano. Assim como a significação e a morte amadurecem
juntas, a poesia se entrelaça com a morte, fazendo surgir desse contato, a
efígie de uma caveira. Não à toa, o símbolo, ou melhor, a alegoria, de O Cenáculo, grupo literário simbolista
liderado pelo poeta Dario Vellozo a partir do final do século XIX, em Curitiba,
toma para si, como emblema, um escudo datado de 1893, de autoria de Silveira
Neto. As imagens nele gravadas são uma cruz, uma pena e uma caveira. Ou seja, a
rejeição do mundo profano, a poesia e a morte.
Em Valêncio, outros
signos da morte, além dos já citados, poderiam ser lembrados, como a esfinge de
mármore de um dos túmulos do Cemitério Municipal em “A moça que virou tigre” e
a morte autoral anunciada em Meu 7º Dia:
uma novella-rebus, em que a alusão à
morte do autor faz lembrar o processo acephalico
de despersonalização, do sujeito que abre mão de sua cabeça como forma de
redenção, aspecto presente na poesia simbolista, repleta de caveiras, como na
ficção do próprio Valêncio. Em Minha mãe
morrendo e o menino mentindo, vemos a famosa fotografia das cabeças
degoladas do bando de Lampião. No decadentismo, encontramos com freqüência a
figura de Salomé, pedindo a cabeça de João Batista, seja em Jules Laforgue,
Mallarmé, Oscar Wilde. Em Valêncio, no texto “Memórias de um homem invisível”,
deparamo-nos com um homem de cabeça cortada e de membro sexual em riste que sai
caminhando calmamente depois da interrupção da projeção de um filme numa sala
de cinema.
Cabeças cortadas, de Lampião e seu bando
Não seria fortuito
observar que a recorrente aparição da morte, da cruz e da caveira, em Valêncio,
parece ganhar potência ao ser colocada em rede, evocando, assim, uma tradição
de imagens mórbidas que percorre a literatura e as artes visuais no Paraná.
Talvez fosse possível montarmos um painel como aqueles que integram o Atlas Mnemosyne, na tentativa de
pensarmos o texto de Valêncio além do livro, evocando, assim, outros meses,
tempos heterogêneos, e outras imagens que não aquelas apresentadas em suas
páginas.
Imaginemos um
primeiro painel. Nele, encontramos, além do já citado escudo do grupo Cenáculo, uma capa de Pallium,
revista simbolista curitibana do final do século XIX (1898), editada por Júlio
Perneta e Silveira Neto. A imagem de uma caveira substitui o pingo do i do título,
apontando, assim, para a tópica da morte como condutora não só da revista como
também de boa parte da poesia finissecular. Ao lado da imagem, encontramos a
reprodução da capa de uma outra revista, a publicação literária Lama, de inspiração noir, publicada em Curitiba a partir de
2009. Como em Pallium, o título
comporta uma caveira, agora como um detalhe menor, mais não menos sintomático,
tendo em vista não só o universo pulp
fiction da revista, como também os ecos de Valêncio. Segundo Fabiano Viana,
editor de Lama, o escritor foi a
principal referência para a revista, que publica foto-novelas policiais e
contos fartamente ilustrados, apontando para um requinte visual pouco
encontrado em revistas literárias do gênero, no Brasil.
Outros exemplos
poderiam ser agregado ao painel, como algumas ilustrações de Poty preparadas
para o Grande Sertão Veredas, de
Guimarães Rosa, bem como os esqueletos de uma série sobre a Guerra,
ou mesmo imagens confeccionadas para os livros Curitiba, de Nós e A
Propósito de Figurinhas, produzidos em parceria com Valêncio. Que
podemos pensar a partir delas?
Ao discutir o poema
“Caveira”, de Cruz e Sousa, Leminski apontou para um paradoxo dos produtos
culturais bastante semelhante àquele indicado por Foucault sobre os homens
infames. Para Leminski, os produtos culturais sobrevivem ao autor, sendo uma
“vingança da vida contra a morte”: “Por outro lado, só podem fazer isso porque
são morte, ou seja, “suspensão do fluxo do tempo, pompas fúnebres, pirâmides do
Egito” (LEMINSKI, 1983, p. 73). Em outras palavras, sobrevivem fazendo habitar
em um mesmo espaço, noutro tempo, a vida e a morte. E ao assumirem esse
paradoxo assumem a ruína no que ela tem de protéico e magistral.
No peito do deus acéfalo,
emblema do grupo Acephále, de Georges
Bataille, duas estrelas, e no lugar do sexo, uma caveira, semelhante àquela que
Silveira Neto gravaria no escudo do grupo Cenáculo.
Paulo Leminski, em
uma de suas anotações, pertencentes hoje ao acervo da Biblioteca da Fundação
Cultural de Curitiba, ao explicar a capa e a contracapa de seu romance-ideia Catatau, observa que enquanto a moldura
(capa), por meio de um desenho, representa lutadores vivos; a contramoldura
(contracapa), por meio de uma foto, representa a caveira de dois amantes
mortos. Os lutadores estão vivos (embora arte, ideogramas); os amantes estão
mortos (embora vida, gente, fotos). O poeta vê a fotografia como um lugar de
morte, não estando distante de Roland Barthes quando este afirmou que “a foto é
como um teatro primitivo, como um Quadro Vivo, a figuração da face imóvel e
pintada sob a qual vemos os mortos” (1984, p. 53). Susan Sontag (2004) escreveu
que todas as fotos são memento mori, ou
seja, testemunham a dissolução implacável do tempo, ao passo que lhe devolvem
vida, instalando, assim, um saber nas coisas que estão mortas, para usar uma
expressão de Benjamin ao tratar da crítica. Vale lembrar que a expressão memento mori acompanha todo o livro de
Valêncio.
É recorrente a
aparição das caveiras não apenas na poesia simbolista, mas na própria crítica e
iconografia do período. Jules Laforgue, no final do século XIX, reafirma o
gosto pela natureza petrificada em um esboço de caveiras. Gonzaga Duque, um dos
críticos simbolistas, enxergou uma caveira em uma das cabeças de bronze
esculpidas pelo português Teixeira Lopes, na primeira metade do século XX. Cabe
lembrar que Baudelaire também se interessou pelas caveiras, como imagem da
“inquietude petrificada”. Impressionado por uma gravura do século XVI que
aparecia em um livro de Langlois, pediu a Bracquemont que ilustrasse a capa da
segunda edição de As Flores do Mal,
utilizando a gravura como modelo. No entanto, Baudelaire não gostou do
resultado, substituindo o desenho por um retrato seu. O projeto da caveira só
seria retomado em 1866, por Félicien Rops, para a capa de Epaves.
Em Valêncio, outra
imagem que emblematiza a morte chama a atenção. Na fotografia incluída no
capítulo referente ao dia 15 de Novembro, em O Mez da Grippe (1998, p. 53),
encontramos uma carruagem fúnebre. Nela, o espetáculo da morte ganha
ares quase imperiais, em um dia que celebra justamente a morte do Império. O
fato parece não ser gratuito e contrasta com outras passagens do livro, como
aquela em que D. Lúcia relembra que enquanto os muito ricos faziam enterro com
carro, cavalos de penacho e pano preto, a maioria das exéquias acontecia a pé,
com os pobres curitibanos carregando o caixão até o Cemitério Municipal. O que
chama a atenção é uma certa monumentalidade que acompanha outras imagens da
mesma época, apontando para uma certa espetacularização da morte. É o que vemos,
por exemplo, em uma cena retratada por Julia Wanderley, pioneira da fotografia
no Paraná. A outra imagem refere-se a um fotograma de um filme
de Aníbal Requião do cortejo do Coronel João Gualberto, tombado no front da Guerra
do Contestado, no Irani - o filme foi perdido no incêndio da Cinemateca
Brasileira. E por fim, uma ilustração de Poty para o livro Curitiba, de Nós, que aborda cenas típicas do cotidiano curitibano.
A semelhança entre as
três fotografias é no mínimo curiosa, assim como mais curioso é o fato de seus
gestos sobreviverem na ilustração. Para acompanhar o desenho de Poty, Valêncio
escreveu a seguinte passagem, que pode ser lida como precursora de O Mez da Grippe, bem como elo entre as
imagens de Júlia Wanderley e de Aníbal Requião:
A morte é algo
sumamente desagradável, seja em Curitiba, seja em Nova Iorque ou qualquer outro
lugar do mundo. A morte curitibana talvez fosse menos amarga, lá pelos anos
vinte do nosso século: qualquer pessoa podia acompanhá-la passo a passo, pois
os jornais tinham a gentileza de noticiar não só os passamentos e funerais,
como também a relação dos citadinos enfermos. Com esta propaganda da doença, a
morte deixava de ser um imprevisto: sabendo pelos jornais que algum amigo
estava doente, era mais fácil mandar tingir o terno de preto e ir-se preparando
para o funeral que, diga-se de passagem, naqueles bons tempos devia ser muito
bonito: coche fúnebre, guiado por cocheiro de cartola, vinha sempre puxado por
cavalos emplumados (1975, s/p).
Dispor essas imagens em um painel pode nos
ajudar a ler não só os imagens presentes na ficção de Valêncio como mirá-las a
partir de outras redes até porque a complexidade temporal do meio fotográfico
se revela constitucionalmente apta para esse tipo de atravessamento da memória
na história (DIDI-HUBERMAN,
2008).
Eis o jogo de um
atlas. Como não ver nele a imagem fascinante do mosaico de cacos e cores,
descrito por Baudelaire no texto “Moralidade do Brinquedo”, em que Didi-Huberman
(2006) encontra uma expressão adequada para a dialética benjaminiana das
imagens?
terça-feira, 12 de setembro de 2017
O mez da grippe, de Valêncio Xavier, carregando o mundo nas costas (Parte I)
Valêncio Xavier, em
uma entrevista concedida a Joca Reiners Terron, ao avaliar a narrativa de O Mez da Grippe, lembrou do fascínio
nele exercido pelo romance Conversa na
Sicília, de Elio Vittorini, cujas fotografias de Luigi Crocenzi lhe
ensinaram o papel que a imagem tem que ter no texto: “ser ao mesmo tempo uma
coisa alheia, mas inteirada” (1999, p. 53). Entender a imagem como “coisa
alheia, mas inteirada” talvez nos ajude a ler a ficção daquele que hoje é
chamado de o Frankenstein de Curitiba e que poderíamos chamar também de trapeiro da
memória, numa franca alusão à observação de Walter Benjamin lendo Charles
Baudelaire. Dentre as definições para o vocábulo “alheio”, está
aquilo que é de outrem, que é estrangeiro, estranho, isento, livre, distante,
indiferente. Dessa maneira, estar alheio pressupõe um afastamento daquilo que é
próprio do ser ao reivindicar uma enlevação para o que deve ser absorto ou
extasiado. Por outro lado, essa coisa alheia a que se refere o autor é inteirada,
ou seja, tornada ciente, informada, constituída num todo, no absoluto. O
absoluto, aqui, é pensado em um sentido monadológico, tal como aparece na
imagem de Atlas segurando o mundo nas costas e não como sinônimo do poder
soberano, do monarca, do imperioso, daquilo que não padece de contradição.
Assim, está mais para o jogo do que para a lei, fazendo lembrar das palavras de
María Negroni, em seu Pequeño Mundo
Ilustrado que, ao propor uma leitura de “A moralidade do brinquedo”, de
Baudelaire, retoma a figura do jogo como epifania do absoluto: “Jugar:
amurallarse, componer un cuento fantástico, buscar ese objeto único e imposible
que podría permitir no solo saber todo,
sino experimentarlo todo a la vez” (2011,
p. 77).
Página de Elio Vittorini
No caso das imagens
de Valêncio Xavier, parece que estamos mais próximos do impróprio que é
apropriado do que do “alheio” como sinônimo do ignorante, do não sabedor. Inteirar
o alheio, fazendo do ready-made seu
lance de dado, talvez seja um dos traços mais sintomáticos do jogo por ele
proposto. Talvez pudéssemos pensá-lo, aqui, como um puzzle.
Georges Perec, no preâmbulo
de “A vida modo de usar”, observa que a arte do puzzle não se caracteriza como uma mera soma de elementos que
teríamos inicialmente de isolar e analisar, mas um conjunto, uma forma, uma
estrutura. Nesse sentido, “o elemento não preexiste ao conjunto, não é nem mais
imediato nem mais antigo; não são os elementos que determinam o conjunto, mas o
conjunto que determina os elementos” (PEREC, 2009, p. 11). A colocação, ao
sustentar que o conhecimento de um conjunto não é passível de ser deduzido do
conhecimento separado das partes que o habitam, torna explícito o procedimento
de confecção do livro, chamando a atenção para o fato de que a única coisa que
importa é a possibilidade de “relacionar uma peça a outras peças”. Os sentidos
depreendidos dessa configuração armada pelo jogo demonstram que a imagem não é
nem nada nem total, como sugeriu Didi-Huberman, em Imágenes pese a todo (2004), ao mesmo tempo que fazem repercutir
Aby Warburg, em seu projeto Atlas
Mnemosyne, cujo procedimento de confecção está pautado pela montagem como
princípio constitutivo do texto como tecido, como teia, como rede. Não se
trata, necessariamente, de refutar a singularidade do objeto, em detrimento do
conjunto, mas de perceber a montagem como método e forma de conhecimento. Não é
à toa que Didi-Huberman tenha comparado o projeto de Warburg a um puzzle:
Mnemosyne es un objeto intempestivo en la medida en que se
atreve, en la época del positivismo y del historicismo triunfante, a funcionar
como un puzzle o un juego de tarots desproporcionados (configuraciones sin
límites, número de cartas a jugar infinitamente variable) (2009, p. 438).
A diferença é que na
arte do puzzle comum, cada peça tem o
seu lugar, sendo impossível armar um mosaico com uma outra disposição que não
aquela prevista pelo corte da máquina, diferente de um Atlas que, por
colecionar o mundo, permite também trocar de lugar seus objetos, remanejar
posições, observar os intervalos, dando a ele novos sentidos e aos seus objetos
outra potência. É o caso, por exemplo, das imagens do já citado Atlas Mnemosyne, que tiveram sua posição
por Warburg modificada ao longo dos anos, dependendo do interesse do historiador,
o que, por sua vez, já demonstra o jogo que subjaz na combinatória incessante
das peças em questão.
Página de O Mez da Grippe
É também como um
atlas que Valêncio Xavier parece ter pensado sua ficção. O escritor observou
que o O Mez da Grippe deveria ser
lido como um jornal, em que “a pessoa olha a manchete, pula para a página de
esportes, se detém na foto de uma atriz e já vai para o crime do dia, e assim
por diante” (1999, p. 52-53), chegando a confessar ter descoberto que em seus
livros cada página poderia ser lida isoladamente, como se ela fosse um texto
completo. Essa espécie de mônada seria, assim, estranha a um quebra-cabeça
convencional.
Página de O Mez da Grippe
Em O Mez da Grippe e outros livros de
Valêncio, o puzzle entra em delírio,
já que a ficção, por não delimitar-se a um corte de guilhotina previamente
produzido, exige uma leitura mais complexa, ao passo que nos permite imaginar a
conexão com outras peças que não apenas àquelas apresentadas no livro, como
veremos. Dessa maneira, os desafios impostos pelo que gostaria de chamar aqui
de um “puzzle incomum” se por um lado apresentam-se como mistérios-enigmas e
não meramente como segredos – aproximando-se, assim, das imagens de W.G. Sebald
-, por outro lado, e também por isso, reivindicam uma rede de imagens que lhe
devolva força, fazendo-a funcionar a partir da fricção-ficção entre outros
corpos. Estamos diante de imagens que, sabendo-se imagens, contaminam-se ao
entrar em contato com a rede, aquela máquina que, ao produzir o absoluto,
consegue carregar o mundo nas costas. A referência, aqui, é à apresentação
escrita por Didi-Huberman da exposição “Atlas – Como levar o mundo nas costas”,
ocorrida no Museu Reina Sofia, na Espanha, entre novembro de 2010 e março de
2011. Nela, o historiador da arte relembra que o titã chamado Atlas, junto com
seu irmão Prometeu, quis enfrentar os deuses do Olimpo para tomar o poder deles
e dá-lo aos homens. Ambos foram castigados. Prometeu, condenado a ter seu
fígado arrancado por um abutre e Atlas, obrigado a sustentar com seus ombros o
peso da abóboda celeste inteira, fadado, assim, a conviver com um paradoxo: o
prazer de um conhecimento infranqueável e uma sabedoria desesperante. Didi-Huberman
(2011) lembra que o nome inspirou uma forma visual de conhecimento, ou seja, um
conjunto de mapas geográficos reunidos em um volume, convertendo-se em um
gênero científico a partir do século XVIII e desenvolvendo-se consideravelmente
no século XIX e XX.
Página de O Mez da Grippe
No caso de Warburg, o
modelo do Atlas científico tradicional dá lugar a uma espécie de constelação,
que nos permite desenvolver relações impensadas e redes inimaginadas: “Fazer um
atlas é reconfigurar o espaço, redistribuí-lo, desorientá-lo em suma: deslocá-lo
ali onde pensávamos que era contínuo, reuni-lo ali onde supúnhamos que houvesse
fronteiras” (DIDI-HUBERMAN). Mesmo tendo um projeto bastante diferente do de
Valêncio, não podemos nos furtar de perceber que em ambos os casos (Valêncio-Warburg)
estamos diante de uma espécie de uma máquina de produzir imagens, de um
aparelho de tempos heterogêneos produzidos a partir do alheio e do absoluto.
Atlas
Seguindo a colocação
de que o trabalho imagético de Valêncio está pautado por uma dialética, a do
alheio e do absoluto, talvez
fosse possível imaginar não apenas os gestos que oscilam entre a repetição e a
diferença, entre a memória e o esquecimento, depreendidas de seus jogos de
armar esse “puzzle incomum” -
ou talvez um baralho -, mas também aqueles que inserem o livro numa teia cujos
fios parecem ligá-lo a uma tradição imagética que percorre a arte produzida no
Paraná desde o simbolismo, passando pelo trabalho de Poty, fiel parceiro criativo
de Valêncio, e por revistas literárias contemporâneas editadas no Estado.
Susana Scramim, ao
analisar o procedimento de montagem de tempos heterogêneos nos bestiários de
Wilson Bueno, já havia chamado a atenção para o fato da visualidade do trabalho
do autor poder ser lida também à luz de sua convivência com a forte prática do
trato com as imagens da literatura produzida no Paraná, uma prática que vai da “intensa
atividade dos poetas simbolistas até as interessantes revistas ali editadas,
nas quais a visualidade contribui e constitui as próprias revistas” (2007, p.
136). É o caso, por exemplo, da revista simbolista Pallium, da modernista Joaquim,
das contemporâneas Medusa, Coyote, Oroboro, entre outras. Tavez fosse possível inserir Valêncio nessa
comunidade a que se refere Scramim. Para pensar nessa relação pautada pela
imagem dialética que brota do contato e do contágio do escritor-cineasta com
uma tradição das imagens - imagens também contagiam e contaminam - recorro a
uma figura que está ligada não só à temática da ficção do autor de O Mez da Grippe e outros artistas do
Paraná, como também à própria noção de escritura. Falo da morte, falo da
caveira.
segunda-feira, 11 de setembro de 2017
Na praia
Das coisas que aprendi com você, a saber mais mistérios e menos milagres, toda a manhã nasce desde então mais cedo e mais azul para mim ou para nós dois. E quando vejo você sorrindo para mim depois de fingir ou forjar quase com perfeição uma ofensa, penso decifrar um pouco mais o teu mundo. Mas é só um ledo engano. É também só mais um enigma me levando docemente a outros tantos, como o dengo, o charme, a manha. E bem antes de amanhã, me revela a farsa com um leve sorriso, mais mistérios teus. Você é uma, você é trezentas. E talvez seja essa incompreensão, de nunca te saber toda, que mais me encanta em você, depois do teu coração, lindo como descobri quando outros às vezes concluem errando logo na primeira impressão. É só o tempo que nos permite verdadeiramente conhecer e amar. O resto é fogo de palha, paixão que apaga depois que os corpos se saciam. Milagre e mistério é amar e se apaixonar, as duas coisas ao mesmo tempo ou quase, todos os dias. Depois do coração, de teu corpo, teu caráter, teu jeito e cheiro, é o que mais me encanta. Falo dos mistérios, tão ou mais importantes que os milagres. E você sabe conduzir com sabedoria natural tais artifícios, igual quando passa horas na frente do espelho só para ficar mais bonita para mim e para o mundo, que é bem mais bonito com você dentro dele. Talvez eu mesmo terei de reler essas palavras todas para entender um pouco melhor o que quis escrever sobre você. Você entenderá melhor do que eu, bem mais do que qualquer um.
sexta-feira, 8 de setembro de 2017
Coisas bem nossas
As crônicas de Luiz Antonio Simas têm uma energia pulsante. Moram nelas os partideiros do morro, as benzedeiras com suas arrudas e guinés, as geladas de um bom e velho botequim, os atabaques a chamar os santos, encantados de suas cangiras, paisagens da zona norte, medicinas alternativas, Villa-Lobos cantado por Elizeth numa vitrola arranhada, macumbas tropicais, cenas carnavalescas, enfim, coisas nossas. Com essas "coisas" Simas vai "brincando com os limites entre a História e a crônica a partir das encruzas, contando histórias de ajuremados, vagabundos, bebuns" (...), como ele mesmo escreveu. Desconfio que encontram-se nesse batuque de boteco outros passistas dessa passarela da periferia: João do Rio, Lima Barreto, João Antônio, e todos os outros sem os quais as crônicas de nosso Brasil não seriam verdadeiramente sobre coisas nossas.
quinta-feira, 7 de setembro de 2017
cine céu
para Gé, luz
na sala de projeção
in dark side
o corpo incide...
nesse cine céu
de filme noir e francês
todas as estrelas
me lembram você
quinta-feira, 31 de agosto de 2017
O caso Gregório de Matos
Procurando explorar uma visão que
colocasse em xeque a concepção de história retilínea, Haroldo não hesitou em
“alfinetar” o olhar romântico de Candido. O sequestro do movimento não seria
perdoado pelo poeta concretista que, na esteira de outros teóricos
latino-americanos como Lezama Lima, enxergava no Barroco o “começo genial” da literatura
das Américas.
O ensaio de Haroldo parte de um
paradoxo. De um lado, Wilson Martins que, na esteira de Antonio Candido,
defendeu que Gregório de Matos não contribuiu para formar o nosso sistema
literário. De outro, Oswald de Andrade que, ao contrario, percebeu no poeta
baiano uma das maiores figuras de nossa literatura.
Segundo Haroldo, o estudo de Candido
estaria concentrado em duas séries metafóricas. Uma animista, decididamente
ontológica, centrada na ideia metafísica da presença, ou seja, a literatura
brasileira como a encarnação e representação do espírito literário nacional, e
a outra organicista, centrada na ideia de que a nossa literatura seria uma
floração gradativa, regida por uma teleologia que partiu de uma origem em
direção a sua autonomia. Para Antonio Candido, a nossa literatura seria um
galho secundário da portuguesa, por sua vez arbusto de segunda ordem no jardim das
musas.
O conceito metafísico de história
envolve a ideia de linearidade e a de continuidade. Por isso é necessário a ela
determinar quando e como se definiu uma continuidade ininterrupta de obras e
autores, cientes quase sempre de integrarem um processo de formação literária.
Daí a necessidade de um começo.
Haroldo de Campos chama a atenção que na
Formação, de Candido, a mensagem, ou seja, o texto, a obra literária, não é
posta em relevo. A ênfase é dada ao mecanismo transmissor e de recepção, e não
à transmissão em si mesma. No mecanismo de transmissão e de recepção, o que
está em jogo são os fatores externos à obra e não internos. Haroldo compara o
sistema proposto por Candido com o esquema proposto por Roman Jakobson para a
estrutura e funcionamento da comunicação. O produtor equivaleria ao emissor da
mensagem. Nele estaria centrada a função emotiva. No caso da literatura
brasileira, seria a expressão de uma subjetividade romântica, os ideais do
poeta em relação ao país. O receptor da mensagem equivaleria ao público leitor.
Nele estaria concentrada a função conativa, ou seja, aquela que pretende
levá-lo a tomar uma posição, neste caso, a tomada de consciência da existência
social e espiritual de um povo, definindo um padrão de pensamento ou comportamento.
Entende-se agora o porquê da exclusão ou sequestro do barroco na Formação de
Candido. É que no barroco, a estética é enfatizada por meio da função poética e
metalinguística. Uma mensagem voltada para ela mesma (auto-reflexividade), ou
para o código. Contrariamente à linguagem comunicativa e econômica, reduzida à
sua funcionalidade – servir de veículo a uma informação – a linguagem barroca
se compraz no suplemento, no exagero. O barroco, poética da “vertigem do
lúdico”, da “ludicização absoluta de suas formas”, para usar expressões de
Afonso Ávila.
A concepção de história que gere o
estudo de Antonio Candido é monumental. Valoriza dos grandes feitos aqueles que
encarnam literariamente o espírito nacional. Logo, o que nele não cabe é posto
e lado, rotulado de “manifestações literárias” por oposição à literatura
propriamente dita, à literatura enquanto sistema. É o que aconteceu não apenas
com Gregório de Matos, mas também com Padre Vieira, ou mesmo Joaquim de
Sousândrade, que participa do contexto histórico do romantismo, mas que ficou
de fora do cânone, sendo resgatado com força apenas no século XX justamente
pelos concretistas.
A questão do público, tal como é
abordada por Candido parece ser um problema, já que nem todo escritor depende
do meio, das concepções e da ideologia de seu público. Tome-se como exemplo a
produção simbolista, que se volta em grande parte contra o mundo burguês,
deixando de lado a questão do público como fundamental para a existência do
literário. Ou seja, o fato de Gregório de Matos ter um público reduzido não
significa que não possa ser considerado legitimamente como poeta. Em outras
palavras, não podemos postular que, onde não haja um público sistêmico, não
haverá literatura propriamente dita e digna de registro.
O sequestro de Gregório no Brasil seria
semelhante à gongorofobia na literatura espanhola que rejeitou Gôngora até o
momento em que Ruben Dario, precedido pelos simbolistas franceses o recolocaram
em cena, comparando-o com Mallarmé. Se a pervivência de sua obra pode ser
observada no Parnaso Brasileiro, de Januário da Cunha Barbosa, depois de 136
anos de sua morte, e a partir daí em várias outras antologias, é porque ela
produziu uma força que sustenta Gregório como poeta relevante.
O que Haroldo questiona é a crítica
adepta de uma história monumental, criadora de um cânone imutável. Para ele, a
crítica deve valorizar a diferença, pondo em relevo a descontinuidade da
literatura em relação à história da sociedade. Assim, Haroldo adota um modelo
benjaminiano de tempo, aquele adepto de uma história contelar e anacrônica. Não
seria fortuito lembrar que o poeta estava interessado nas leituras que Lezama
Lima vinha fazendo desde os anos 50 sobre o barroco nas Américas. Para o
escritor cubano o barroco seria uma constante na história da humanidade. Ele
formula o conceito de eras imaginárias na tentativa de desconstruir uma visão
teleológica e linear de tempo, em favor do que ele chamou de eras imaginárias,
conceito que postula a ideia de que obras que foram produzidas em momentos
diversos da humanidade podem, manter elos, afinidades eletivas. Benjamin, a
maneira de Lezama, postulava a história como um torvelinho que revela momentos
de ruptura e transgressão e que entende a tradição não de um modo
essencialista, um grilhão para nos aprisionar.
Segundo Haroldo de Campos, nossa
literatura, articulando-se com o barroco, não teve infância. Não teve origem
simples. Já nasceu adulta, formada no plano dos valores estéticos. Seria, como
definiu Lezama Lima a arte da contra-conquista e não a arte da contra reforma.
A esse processo Oswald de Andrade chamou de devoração antropofágica.
Postular uma outra noção de história,
uma historiografia não linear, não conclusa, nos permite recolocar em cena
Gregório de Matos, fora da lógica teleológica da construção de uma literatura
nacional, tal como tenta Antonio Candido. Assim, poderemos perceber a
pervivência (sobrevivência) de Gregório em vários artistas de uma linhagem
constante do barroco brasileiro. Na Bahia é o caso de Glauber Rocha, Caetano
Veloso e Waly Salomão, Pedro Kilkerry, entre outros.
O que ocorre com a Formação de Candido é
que ela repete o preconceito presente na obra de Silvio Romero e mesmo na
História da Literatura Brasileira, de José Veríssimo. Neste, a figura de Gregório
mais forte que sua obra, tanto é que se refere ao baiano com termos pouco
científicos “malcriado” e “rabugento”. Já Candido considera o barroco como uma
moxinifada sem alma ou músculo. O mesmo preconceito vai sustentar em relação
aos simbolistas, considerados por ele como produtores de uma mera literatura
raio-de-luar. No entanto, Haroldo não dispensa apenas farpas para Candido. No
final do ensaio lembra que o autor da Formação no ensaio Dialética da
Malandragem (1970) propõe um desenho não linearizado, mas mosaical para
Gregório de Matos, reconhecido agora como um dos precursores da comicidade
malandra. Antes de Dialética da Malandragem, no ensaio Literatura de dois Gumes
(1966), reconhece a ação duradoura do barroco entre nós, o que demonstra que o
próprio Candido repensaria a tese da Formação da Literatura Brasileira. O modo
dialético de ler a tradição que aparece em Literatura de dois Gumes preparou
assim a grande virada metodológica que fundamentaria Dialética da Malandragem.
Caminhemos para um fato bastante
curioso. Apesar da filiação de Haroldo em um programa que poderíamos chamar de
benjaminiano, em que o tempo deveria ser pensado dentro de uma outra lógica, é
importante perceber que a metáfora orgânica estaria implícita também na
perspectiva de Haroldo, já que adotar Gregório de Matos, e não a literatura
árcade como legítimo começo, representa uma queda na própria armadilha, pois a
necessidade de um pai fundador permanece. Em Haroldo, ele ainda existe, só que
agora é outro, Gregório de Matos.
Talvez a lição de Derrida não tenha sido
completamente assimilada e o poeta não tenha percebido o jogo das diferenças,
em que a figura de um pai fundador seria uma ilusão. O que faz com que Haroldo,
ao tentar mostrar que o Barroco nos levaria de volta às musas, não consiga sair
da lógica da modernidade.
Walter Benjamin, na Origem do Drama
Barroco Alemão, apresenta uma noção de origem bastante diferente das concepções
tradicionais. Para ele, ela não significa uma gênese: “A origem, apesar de ser
uma categoria totalmente histórica, não tem nada a ver com a gênese. O termo
origem não designa o vir-a-ser daquilo que se origina, e sim algo que emerge do
vir-a-ser e da extinção”. Definir uma gênese seria, então, abandonar o conceito
de origem benjaminiano, caindo na busca de uma arké. Estaríamos, então, diante
de um problema de tempo, e da impossibilidade de reduzi-lo à história.
Impossível pensar no originário sem levar em conta que ele é pautado pela
restauração e pela reprodução, sendo, portanto, incompleto e inacabado. Mas o
esforço de Haroldo parece ter sido bastante válido por recolocar em cena o
barroco.
Para José Veríssimo, no período
colonial, salvo raras exceções, a literatura praticada aqui não fazia senão
imitar inferiormente a literatura portuguesa. Assim, autores como os do
barroco, em sua maioria, eram considerados como poetas medíocres. É justamente
por produzirem uma obra desligada das idéias de nacionalidade e nativismo que
eles foram sequestrados dos estudos literários. No entanto, poderíamos pensar,
na esteira do pensamento do crítico e escritor cubano José Lezama Lima, que os
escritores barrocos estavam pensando a arte de um ponto de vista
pós-nacionalista, para usar uma expressão de Décio Pignatari, mesmo antes do
espaço geográfico latino-americano constituir nações tal como as conhecemos (já escrevi sobre isto aqui).
Lezama Lima consegue desconstruir o binômio nacional cosmopolita ao pensar o
barroco como arte da contra-conquista e não como arte da contra-reforma. Isso
porque esse movimento artístico do século XVII é considerado o “começo genial”
de nossa literatura. Nas suas palavras ele foi uma tomada de consciência, uma
resposta artística do colonizado em relação ao colonizador. Uma espécie de
antropofagia pré-oswaldiana, já que foi por meio da arte que o artista barroco
(colonizado) pôde colonizar esteticamente o colonizador. É caso de Aleijadinho
que mesclou formas barrocas européias com traços artísticos afro-indígenas. É
também o que fez o índio Kondori, na Igreja de San Lorenzo de Potosí, ao
misturar a figura larval de anjos barrocos com entidades mitológicas da cultura
inca. É justamente por pensar a arte além das fronteiras do “nacional” que o
artista barroco conseguiu desenvolver um instinto não menos nacional de
nativismo e nacionalidade.
quinta-feira, 27 de julho de 2017
Machado de Assis e a escravidão
Há que se prestar atenção sempre na voraz e audaz crítica social - mesmo que sutil, porém por vezes demolidora e explícita - presente nos textos de Machado de Assis. No conto "Pai contra mãe", o protagonista Cândido Neves (nome sugestivo em se tratando de um conto sobre a escravidão), depois de ser humilhado pela tia de sua esposa, como um pai incapaz de sustentar a família, transforma-se, à procura de recompensas, em capturador de escravos fugidos. Captura uma escrava grávida, sem se importar com o destino da cativa. Assiste ao seu aborto, depois de devolvê-la ao dono, sem comover-se minimamente. A cena é uma das mais chocantes da literatura de Machado: "Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e tirou os cem mil-réis de gratificação. Cândido Neves guardou as duas notas de cinquenta mil-réis, enquanto o senhor novamente dizia à escrava que entrasse. No chão ,onde jazia, levada do medo e da dor, e após algum tempo de luta, a escrava abortou". Por meio de uma representação da contradição entre o amor do pai pelo filho prestes a ser depositado na roda dos enjeitados (o pai faz de tudo para não fazer o que a tia da esposa o pedia, a saber a doação do próprio filho, o que demonstra o significado para ele da paternidade) e o descaso para com a maternidade da escrava, Machado pinta um dos retratos mais atrozes do Brasil do século XIX, algo ainda atual de certa forma). Prestemos atenção não apenas nas questões sociais correspontes à questão da escravidão, à questão étnico-racial, mas também à questão de gênero. Prestemos mais atenção em Machado.
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