segunda-feira, 25 de julho de 2016

Adorno (Ensaio como forma), apontamentos...



# Em uma da passagens de seu texto "Ensaio como Forma", Adorno escreve que, a respeito desse gênero, felicidade e jogo lhe são essenciais:  "Ele não começa com Adão e Eva, mas com aquilo sobre o que deseja falar, diz o que a respeito lhe ocorre e termina onde sete ter chegado ao fim, não onde nada mais lhe resta a dizer, ocupa, desse modo, um lugar entre os despropósitos". Sob esse ponto de vista, ele deve sempre partir de algo já formado (pré-fabricado). 

# Assim como para Baudelaire, a respeito da modernidade, para Adorno, o ensaio "não quer procurar o eterno no transitório, nem destilá-lo a partir deste, mas sim eternizar o transitório". Não é à toa que esse gênero - lembremos de Simmel - tem um papel fundamental na modernidade.

# Articular relações curiosas entre os objetos, inventar relações inauditas, imaginar reflexões inusitadas: "(...) o ensaio suspende ao mesmo tempo o conceito tradicional de método. O pensamento é profundo por se aprofundar em seu objeto, e não pela profundidade com que é capaz de reduzi-lo a uma outra coisa. O ensaio lida com esse critério de maneira polêmica, manejando assuntos que, segundo as regras do jogo, seriam considerados dedutíveis, mas sem buscar a sua dedução definitiva. Ele unifica livremente pelo pensamento o que se encontra unido nos objetos de sua livre escolha".

# TECER COMO UM TAPETE: "O ensaio exige, ainda mais que o procedimento definidor, a interação recíproca de seus conceitos no processo da experiência intelectual. Nessa experiência, os conceitos não formam um continuum de operações, o pensamento não avança em um sentido único; em vez disso, os vários momentos se entrelaçam como num tapete. (...) O ensaio procede, por assim dizer, metodicamente sem método".

# Ecos da fábula lembrada por Simmel, escavar é algo mais importante que encontrar um tesouro: "O ensaio não apenas negligencia a certeza indubitável, como também renuncia ao ideal dessa certeza. Torna-se verdadeiro pela marcha de seu pensamento, que o leva para além de si mesmo, e não pela obsessão em buscar seus fundamentos como se fossem tesouros enterrados". 

# O UNIVERSAL NO PARTICULAR: "Deus está nos detalhes"!: "O ensaio deve permitir que a totalidade resplandeça em um traço particular, escolhido ou encontrado, sem que a presença dessa totalidade tenha de ser afirmada".  

# ENSAIO: mais teoria do que arte, na visão de adorno: "O ensaio é, ao mesmo tempo, mais aberto e mais fechado do que agradaria ao pensamento tradicional. (...) Apenas nisso o ensaio é semelhante à arte; no resto, ele necessariamente se aproxima da teoria".

# PROFANAÇÕES:  "(...) a lei formal mais profunda do ensaio é a heresia. Apenas a infração à ortodoxia do pensamento torna visível, na coisa, aquilo que a finalidade objetiva da ortodoxia procurava, secretamente, manter invisível". 


terça-feira, 19 de julho de 2016

George Simmel e o ensaio



Leopoldo Waizbort, ao dedicar um capítulo de "As aventuras de Georg Simmel" ao gênero ensaio, desenvolve algumas observações que julgo bastante pertinentes. Simmel talvez tenha sido um dos maiores ensaístas do final do século XIX e início do século XX. E é a partir de uma reflexão sobre sua obra, bem como uma análise do interesse de Simmel pelo ensaísmo, que Waizbort consegue reconstituir o pensamento do alemão em busca da construção de sua cultura filosófica. Seu pensamento pervive na obra de pensadores importantes como Adorno, Benjamin, Lukács, entre outros. 

"Movimento, subjetividade e experiência compõe a constelação do ensaio". Tal ideia é central em Simmel. Nesse caminho, o elemento associativo desempenha uma função importante: "Simmel nunca esgota seu objeto, e isto, claro está, é compreendido como uma virtude e não um defeito". Em outro momento, Waizbort escreve: "Se Adorno tem razão em apontar a estrutura e a origem musical do ensaio, esta só pode ser a da variação e do desenvolvimento. Com isso explica-se porque o ensaio é processo". E ainda: "(...) O ensaio é essencialmente descontínuo. Ele possui uma relação privilegiada com a vida, ao exprimir o fragmentário, imprevisto, movimentado, fugidio".


Simmel costumava lembrar de uma história bastante interessante em suas aulas. Citemo-la: "Em uma fábula um camponês à morte diz a seus filhos que há em suas terras um tesouro enterrado. Em consequência disso, os filhos escavam e reviram profundamente a terra por toda parte, sem encontrar o tesouro. Mas no ano seguinte a terra assim trabalhada produz três vezes mais frutos (...)" Tal é a lógica do ensaio. O passeio é mais importante que o ponto de chegada. O processo é mais importante que o produto. 

O voo é mais importante que o pouso: "Simmel afirmava que o importante não é ter encontrado algum tesouro, mas sim ter escavado. Tal comparação é semelhante ao passeio. Para quem passeia, o caminho e a paisagem são mais importantes que o ponto de chegada. Essa ideia é a própria ideia do ensaio e por isso ele foi, já tantas vezes, desde Montaigne, aproximado a um passeio que o autor faz e nos convida a acompanhar. Isto explica também o inusitado, muitas vezes, do ensaio, como se no meio do caminho se resolvesse tomar uma outra direção. Isto significa que não interessam tanto as conclusões a que um ensaio poderia levar ou que ele poderia trazer, mas sim o processo, o desenrolar do pensamento, o espírito que trabalha, em movimento aventureiro. O movimento é a característica básica do ensaio". Nesse sentido, o ensaio é pergunta e não resposta: "No ensaio, o principal não é convencer o Leitor de modo absoluto, mas sim indicar caminhos, fazê-lo pensar. Já que ele não comprova nada, sua principal tarefa é impulsionar o pensamento. O ensaio é mais dúvida do que certeza". Daí a ideia enfatizada por Waizbort de pensar o ensaio a partir da imagem da constelação. Interessa para o ensaio as relações curiosas travadas entre os objetos, as relações constelacionais. Essa forma diferenciada de conhecimento estaria intimamente ligada com o próprio advento da modernidade, cujo seio não abrigaria mais uma filosofia pautada pela noção de sistema, mas sim por uma cultura filosófica de cunho ensaístico. Simmel merece releituras.  

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Ilustre Desconhecido



O maior pintor do Paraná, ainda quase desconhecido, nasceu em Mallet. Ilustre depois de morto - suicida ou suicidado - Bakun foi pintor cósmico. Julgava-se parecido com Van Gogh. Obcecado pelo regime de cores do pintor holandês, o paranaense talvez tenha sido o maior expressionista brasileiro (não ficando atrás de Lasar Segall, que aliás era lituano). Bakun não cedeu à moda do abstracionismo e esse talvez tenha sido um dos motivos da desvalorização de sua obra em sua época. Julgou uma afronta ser premiado com uma caixa de tintas em um Salão de Arte Parananense. Vítima da famosa autofagia curitibana e de profundos conflitos existenciais (boatos afirmam que um caso extraconjugal piorou a situação), enforca-se no seu ateliê em 1963. Tinha 54 anos. Foi Van Gogh...

Some-se a isso: Cruz e Sousa, por exemplo, em Desterro (atual Florianópolis), no final do século XIX, era Preto, Pobre e Poeta! Deu no que deu, nosso maior poeta do século, passou em branco (ou seja, em negro) em vida. Bakun, por sua vez, em Curitiba, viveu drama semelhante nos anos 40,50 e 60. Era Polaco, Pintor, Parananense e Pobre. Deu no que deu.

quarta-feira, 13 de julho de 2016

CAIXA-PRETA DO NOSSO AMOR




Primeiro capítulo de um livro sobre o amor que abandonei e que nunca escreverei

"Eu não amo mais você".
A frase pareceu brotar sem grande esforço, mas nem mesmo eu imaginei o quanto fora ensaiada. Se o amor poderia ser calculado, medido, interpretado, ou até controlado - como lera certa vez num daqueles livros que desejam ensinar algo sobre os sentimentos humanos, ele nunca esquecera da pretensiosa segurança com a qual o escritor afirmava serem as mulheres assim e os homens assado, o que fazia das características simples rótulos dispostos a classificarem uns e outros, tornando possivelmente a vida mais fácil ou pelo menos passível de ser vivida - se o amor pudesse mesmo ser medido e controlado, o seu final equivaleria fatalmente ao fim de uma etapa, como quando terminara a faculdade e ingressara na carreira do magistério acreditando ingenuamente que o ritual de formatura seria o ponto mágico no qual uma fase de fato terminava e outra começava. Ele saberia. Mas desde cedo, quando concluíra que nele as coisas do afeto tinham uma dimensão e uma força superior, aquilo que chamavam de amor só poderia se traduzir como espanto ou um fantasma incapaz de ser domesticado. Não se tratava de um trauma ou de um medo. Começar a amar, ou deixá-lo simplesmente, não significava a ocorrência de uma catástrofe. Como quase todos os seus amigos e amigas, ele comemorava esse sentimento que lera no poema ser uma ferida que dói e não se sente. Como quase todos os seus amigos e amigas, ele saudava a chegada de um amor com o bom astral de uma estrela que sente fazer parte de uma constelação. E ainda, como quase todos os seus amigos e amigas, lamentava o final de um amor quando ele ocorria, como se deparasse com um incidente, apenas pensando "que pena" e seguindo em frente. Mas desta vez fora diferente. Eu não amo mais você. E era ele quem pronunciava a frase, sabendo da mentira embutida nessas cinco palavras que fizera parecer brotar sem esforço, mas que ensaiara durante dias, semanas, sem ela nem imaginar o artifício. E naquele momento ele nem saberia explicar ou mesmo entender por que mentia.
O estado de amar, ele desconfiara desde o começo, era feito de muitas mentiras. O que não significava que o amor não tinha suas verdades, ou que mentir representava, teatralmente, uma falta de amor. As pequenas mentiras de que era feito o amor, tão necessárias quanto a sua verdade. Trata-se ao certo de encenações, pequenas mentiras capazes não só de ajudar o amante a conviver com as suas verdades, como de iluminá-las. Na curta temporada em que estudara teatro, e a isso soma-se o teatro do qual fizera a própria vida, aprendera intuitivamente que a transparência era apenas mais uma máscara a que se somavam-se outras. Máscaras sobre máscaras formando um mosaico cubista que ao invés de nos representar parcialmente, muito pelo contrário, revelavam em várias dimensões a complexidade daquilo que os filósofos ou artistas chamavam de ser. A primeira mentira ele imaginou proferir quando disse pela primeira vez "eu te amo", uma frase que ele sabia ser para ela esperada com ansiedade e pressa. Para viver esse estado de amar, mentira. Não que não o sentisse. Desconfiava apenas que na frase o som da soma de seus fonemas denunciava uma certa afetação, quem sabe até uma certa falsidade, que fazia a frase sair atropelada e estranha. Ela o abraçou comovida ao ouvir pela primeira vez na hora do sexo, quando suas pernas quentes se encontravam debaixo do cobertor. A mesma impressão ele teve quando falou que não a amava mais. O mesmo tom de falsidade, a mesma afetação. A chegada e a partida do amor se davam assim então? Que teatro era esse encenado em duas frases que pareciam não traduzir exatamente o que sentia? Que linguagem era essa a do amor, intraduzível? Estaria o amante fadado a falar sempre uma outra língua enquanto a vida por trás da peça era verdadeiramente encenada?         
Ia vivendo e escrevendo, agora começando a pensar que as duas coisas talvez fossem a mesma. Se não fossem exatamente a mesma, certamente apareciam no seu pensamento como dois lados de uma mesma moeda. O dia era uma página escrita, pensava quando depois de escrever a página a que se propôs para cada dia, lamentando os dias em que deixou a página em branco. Poderia compensar no outro, com duas páginas, e assim sucessivamente quando ficasse três ou quatro ou mais dias sem escrever. Quando não escrevia a página era a vida que ia sendo imaginada e impressa no livro de sua vida. Escrever era um afã. Mas só conseguia quando não estava lendo e ler para ele era bem mais interessante que escrever. Era um prazer que pagava mais barato. Para que mais uma história de amor? Tantas já houveram. Algumas escritas. Depois de apagar a luz e sentir-se verdadeiramente sozinho pensou que amor que se escreve não se vive. A vida, verdadeiramente vivida, não se diz. Quantos trocaram a vida pela escrita, ou fizeram dela o seu meio secreto e obcecado de viver? Como se escreve o amor? Quantas palavras são necessárias para fazer dele uma obra? Que amor é esse que a escrita falseia em palavras? Perguntar era sempre uma forma de fazer o sono chegar mais cedo. E o único pensamento que pensou antes de desligar o botão do dia e começar a sonhar foi que o intervalo entre umas palavras e outras, escritas em dias distantes, fazia com que esquecesse o que havia escrito. E na experiência de escrever em um dia sem ler antes o que escrevera em outro era uma forma de continuar. Porque se fizesse de seu trabalho uma incansável revisão, não faria mais nada além do que prender-se ao que já escreveu. Pensar demais no passado era uma forma de impedir que seu trabalho continuasse, que outro amor fosse possível. Dividido entre a expectativa de voltar a amar, ou seja, de voltar a viver, e entre agarrar-se ao passado, produzindo assim a obra, dormiu. Demorou a sonhar. Pelo menos é o que pensou quando acordou, pois o único sonho do qual se lembrara estava passando quando o despertador soou, como uma gralha lhe dando bom dia. Passava por uma estrada de chão e avistou uma casa de madeira. Aproximou-se e encontrou a porta fechada. Tocou a campainha. Uma velha senhora o recebeu com um sorriso sem dentes. Ele agradeceu a atenção, ouviu suas palavras, virou as costas e saiu. Percebeu alguns detalhes no sono que não conseguiu ou não quis escrever. Pouco se sabe sobre um sonho que não escreve, pois ao poucos, ele se apaga da memória. Naquele dia, antes de anoitecer, já não lembrava mais do que sonhara. Como era domingo, e não precisou trabalhar, ficou arrumando papéis, tirando o pó de alguns livros velhos enquanto imaginava os sentidos do sonho que se esqueceu. Lembrava apenas da velha sem dentes. O que ela dissera? Pensou que um amor que não escreve se esquece. Por isso também se escreve, para lembrar (escrevemos aquilo que impossibilitados de lembrar somos inevitavelmente impelidos a nunca esquecer). Tirou o pó de um dos livros de Platão, filósofo que lera na faculdade com algum interesse. O livro falava curiosamente sobre o amor. Lembrou também que em uma de suas passagens as personagens discutiam sobre a escrita. Platão nos recordava do mito da origem da escrita. Dividida entre o argumento de dois deuses egípcios, a escritura ora era tida como um remédio, já que detinha o poder da lembrar, ora como um veneno, pois o homem que escreve perde o poder da mnemotécnica. Escrever era uma forma ingrata de esquecer. Escrever o amor, pensou, era uma maneira de, ao mesmo tempo, alimentar um fantasma e estrangulá-lo. Escrever o amor poderia ser uma forma de revivê-lo, mas acima de tudo, e era o que naquele momento desejou, uma forma de esquecê-lo. Lembrou que o vizinho, que possuía um ar de filósofo contemporâneo, em uma reunião do condomínio, como que portando-se em um congresso, exaltou as vantagens de uma ata. O texto escrito, como os contratos, tinha o poder de fazer valer as palavras. O que não se escreve, o vento leva. Pensou em escrever uma carta para ela, dizendo: "eu não amo mais você", imaginando que assim suas palavras se revestiriam de um poder que sua fala gaguejante desconhecia.

O texto parou aí. Depois de alguns anos o encontrou entre pastas antigas no computador. Nem lembrava mais dele. Pensou em continuá-lo. Retomar o projeto do livro, que chamaria "caixa-preta de nosso amor". Ponderou. Estaria, assim, fadado a acordar fantasmas. Abandonou o projeto. E como Rimbaud saiu andar por aí.         

sábado, 2 de julho de 2016

Macunaíma: impressões


Imagem de abertura do filme Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, 
transcriação do livro de Mário

Poderíamos lembrar que o herói nasce no fundo do mato-virgem. Que era “preto retinto” e “filho da noite”. Que era uma “criança feita” e que “fazia coisas de sarapantar”. Que reclamava da preguiça e “brincava” com a mulher do irmão Jiguê. Que mijava quente na mãe e que se apaixonou pela Icamiaba Ci, Mãe do Mato, depois de violá-la. Que ganhou uma muiraquitã, perdida para um peruano, meio italiano, meio monstro Piaimã, que se chamava Venceslau Pietro Pietra. Que fugiu da Boiúna Capei e decidiu viajar para a cidade grande reconquistar o amuleto Muiraquitã, que usava como tembetá. Que depois de muitas peripécias, recupera o presente e volta para sua terra, onde seduzido por Uiara perde novamente o presente. Triste e machucado, depois de uma feitiçaria, vira a Constelação da Ursa Maior. O narrador ouviu a história de um papagaio. Que isso nos diria de Macunaíma? Ainda muito pouco. Melhor lê-lo pelas margens. Outras coisas elas nos dizem. Talvez assim seja possível devolver potência ao texto de Mário, colocando-o em rede, fazendo-o funcionar a partir de outros textos. Não será fortuito tendo em vista que o próprio princípio de confecção da obra é o de bricolagem.

Ilustração de Pedro Nava para uma das edições do livro

Mário de Andrade escreveu Macunaíma na chácara de Pio Lourenço, seu primo e amigo, perto de Araraquara, entre 16 e 23 de dezembro de 1926. No entanto, após o término da primeira versão, várias outras foram sendo desenvolvidas até julho de 1928, quando o livro foi lançado. O livro não se caracteriza como um romance, um poema, ou uma epopeia, mas como um coquetel, um “sacolejado de quanta coisa há por aí de elementos básicos da nossa psique”, como se referiu Alceu Amoroso Lima. O próprio Mário teve indecisões ao classificá-lo. Primeiramente o chamou de história e depois de rapsódia, aproximando-o de um gênero musical que se caracteriza como uma justaposição de melodias populares e de temas conhecidos. Mesmo tendo apenas um movimento, a rapsódia pode integrar variações de tema, sem necessidade de seguir uma estrutura pré-definida. Basta lembrar de Sergei Rachmaninoff que, inspirado em Paganini, escreveu uma peça intitulada “Rapsódia sobre um tema de Paganini”. 

Mário de Andrade escrevendo Macunaíma, desenho de Lasar Segall

Cavalcanti Proença, autor do importante estudo “Roteiro de Macunaíma”, que se constituiu como uma das mais significativas análises da obra, observou que pelo aspecto da figura de gesta Macunaíma se aproxima da epopeia medieval, tendo em comum com aqueles heróis a sobre-humanidade e o maravilhoso. Por isso pode realizar aquelas fugas espetaculares e assombrosas em que da capital de São Paulo foge para a Ponta do Calabouço, no Rio, e logo se encontra em Guajará-Mirim, nas fronteiras do Mato Grosso e Amazonas. A quebra da linearidade temporal e espacial, um dos traços bem sucedidos do livro, é apenas um dos elementos que fazem dele uma das mais importantes experimentações não apenas do primeiro modernismo, mas de toda a literatura brasileira. Figuras de tempos históricos diferentes aparecem no mesmo enredo como João Ramalho, colono português. Hércules Florence, pintor naturalista do século XIX. Tia Ciata, mãe de santo do início do século XX, em cuja casa nasceu o samba carioca. Entre outras. A essa profanação narrativa, outros fatores poderiam ser acrescentados, como o trabalho linguístico, tão caro a Mário de Andrade, a pesquisa folclórica, não só do Brasil, mas de toda a América do Sul, bem como a discussão sobre o caráter nacional. Segundo Tele Ancona Lopes, em toda a trajetória da busca de definição do gênero, recusando-se a admitir a designação romance no sentido literário culto e recorrendo a classificações da literatura popular, percebemos um ponto de interrogação. É a consciência que Mario manifesta de estar transgredindo os cânones da narrativa culta de seu tempo, revitalizando a experimentação na prosa. Assim, está a altura da prosa do primeiro modernismo, chegando mesmo a superá-la.

Cena do filme de Joaquim Pedro de Andrade

É fato conhecido que, para a confecção de Macunaíma, Mário partiu da obra de Koch-Grünberg, “Do Roraima ao Orenoco”. Koch-Grünberg era um alemão que entre 1903 e 1905, percorreu, por incumbência do Museu Etnológico de Berlim, zonas fronteiriças do noroeste brasileiro e, entre 1911 e 1913, terras brasileiras e venezuelanas, entre o Roraima e o médio Orenoco. Um dos mitos indígenas da Venezuela colhido pelo etnólogo refere-se a Macunaíma. Na versão taulipang e arecuná, o herói já aparece como “malandro”. Mas Koch-Grünberg ressalta seu caráter ambivalente, pois Macunaíma era dotado de poderes de criação e transformação – os irmãos dependiam dele para o sustento – ao mesmo tempo, todavia, malicioso e pérfido. Daí a origem do nome MAKU (mau), IMA, grande, o “grande mau”. Os poderes criativos de Macunaíma levaram os missionários ingleses a denominar o Deus cristão nas traduções bíblicas para a língua indígena como Macunaíma, o que o etnólogo critica, pois anula as contradições inerentes ao personagem.   

Macunaíma, de Aldemir Martins

Não podemos desconsiderar que Macunaíma encarna uma variedade de personagens, ora boas, ora más. É o caso de Exu, interpretado pelo catolicismo como o diabo. No entanto, esse orixá, como os demais, desconstrói o binômio ocidental bem-mal, realizando boas tarefas para quem o agrada com as oferendas desejadas, ou punindo aqueles que não cumprem seus desejos. Macunaíma participa de uma galeria de heróis populares que não têm preconceitos, nem aceitam a moral de uma época, concentrando em si vícios e virtudes que nunca se encontram num mesmo indivíduo. Encarna assim um malandro descendente de Leonardo, personagem de Memórias de um Sargento de Milícias, como observou Antonio Candido, em Dialética da Malandragem, ensaio em que se concentra numa leitura do romance de Manuel Antonio de Almeida. Leonardo, o primeiro malandro da literatura brasileira, seria uma espécie de ancestral de Macunaíma.  Relativizando as oposições “ordem” e “desordem”, através da função desmistificadora da sátira, o herói malandro foge às esferas sancionadas pela norma burguesa, mergulhando na irreverência, por vezes brutal,  mas sempre liberadora da comicidade popularesca. No entanto, Macunaíma não é nem imoral nem amoral. Mário não concordava com a imoralidade, porém Macunaíma teria de concordar com o brasileiro. Por isso, os olhares que julgaram a obra como pornográfica não se fundamentam como práticas críticas, pois desde o mito venezuelano, a personagem já possuía fortes impulsos sexuais.  Aliás, é corrente na literatura dos cronistas conceituar a luxúria como traço nacional, tema que teve sistematização das mais brilhantes no “Retrato do Brasil”, do Paulo Prado. Para Cavalcanti Proença são muito comparáveis os dois livros, apenas aquilo que é análise e dissertação no historiador, se transforma em ação no herói de nossa gente.


Gostaria de fazer referência aos dois prefácios que Mário de Andrade escreveu para o livro e que não foram publicados. O primeiro por achá-lo insuficiente e o segundo por achá-lo suficiente demais. O primeiro data de 1927 e foi escrito logo após o término da primeira versão. O texto é duro, ainda muito impregnado das intenções polêmicas que inspiraram o Macunaíma, cheio de desilusão. Nele, Mário observa que o que lhe interessou no livro foi a tentativa de descobrir a entidade nacional dos brasileiros. Depois de muito estudo, percebeu que o brasileiro não tem caráter. Com a palavra caráter não determinava necessariamente uma realidade moral, mas a entidade psíquica permanente que se manifesta nos costumes, na ação exterior do brasileiro. O brasileiro não teria caráter porque não possuiria nem civilização própria nem consciência nacional. Mário decepcionava-se ao ver que o brasileiro não era o que queria que fosse. Dessa maneira o primeiro prefácio indica uma leitura pessimista da nação que aparece, por exemplo, em livros como Retrato do Brasil, de Paulo Prado, figura de importância para os modernistas que é citado no prefácio. No segundo prefácio, escrito em janeiro de 1927, Mário inverte a leitura, percebendo no livro a ausência de compromissos sociológicos circunscritos diretamente ao brasileiro, mas entendendo-o como sintoma de cultura nacional. Macunaíma seria não necessariamente brasileiro, mas estaria inserido no universo das Américas – a lenda extraída de Koch-Grünberg é de origem Venezuelana.

Mário de Andrade

A consciência do herói transcende a ideia de nação, situando-se numa perspectiva pós-nacionalista, para usar um termo de Décio Pignatari. É a consciência de um latino-americano a do personagem. O próprio livro nos indica essa perspectiva. Antes de ir para a cidade grande, recuperar a Muiraquitã, que lhe fora ofertada por Ci, mãe do mato, Macunaíma passa no Rio Negro para deixar sua consciência. Quando volta para a sua terra, a personagem não mais encontra a consciência. Então, o herói pega a consciência de um hispano-americano, “botou na cabeça e se deu bem da mesma forma”. A busca macunaímica por um caráter nacional e uma definição espiritual e civilizatória confunde-se, assim, com a dos próprios países da América Latina.
Na linguagem do livro, Mário valoriza o vocabulário regional de vários pontos do Brasil. Se apropria e subverte frases feitas e provérbios. Assim como José de Alencar, Mário lutou por uma língua nacional. Não é à toda que tenha considerado o autor romântico como uma espécie de irmão de luta. Numa das primeiras versões de Macunaíma, a dedicatória era dirigida não apenas a Paulo Prado, mas também a Alencar. Mário decidiu subtrair o nome de Alencar por ficar receoso de que o livro fosse lido como uma obra indianista.  Os dois movimentos literários de fundo nacionalista, Romantismo e Modernismo, tiveram como livros epônimos uma história indianista. Quanto ao herói sem caráter Mário não reconhece indianismo em Macunaíma, pelo menos indianismo com letra maiúscula.


Porém, há coisa de mais importância, que é o sentido de manifesto linguístico, de plataforma para a criação de uma língua nacional, um grito contra o complexo colonial na literatura brasileira. Com Alencar, em verdade, surge com propriedade o romance brasileiro, o reinol deixa de ser o modelo.  Alencar foi para Mário o “patrono da língua brasileira”. Para a época ele teve a mesma ousadia do escritor paulista. Nem Gonçalves Dias, nem Gonçalves de Magalhães possuíam a inteireza brasílica do cearense. 
Uma leitura mais atenta do livro nos mostra que ele foi construído a partir da combinação de uma infinidade de textos preexistentes, elaborados pela tradição oral ou escrita, popular ou erudita. Nesse sentido, o que Mário desenvolve é uma espécie de bricolagem, procedimento característico no modernismo brasileiro. Mário de Andrade, como um bricoleur, procurou sua matéria-prima entre os destroços de um velho sistema. A partir da desfuncionalização dos objetos e da sua refuncionalização (ready-made à maneira de Duchamp), o escritor monta uma rede de singularidades, adotando o princípio de montagem como característico da obra, o que Raúl Antelo chamou de apropriação e originalidade, princípios fundantes do livro. Mário chegou a confessar em carta que o único capítulo realmente seu no livro era Carta para as Icamiabas. Todo o resto, de uma forma ou outra, seria uma apropriação.
Segundo Gilda de Melo e Sousa, no estudo “O Tupi e o alaúde”, uma das grandes interpretações do livro, “a originalidade estrutural de Macunaíma deriva do livro não se basear na mimesis, isto é, na dependência constante que a arte estabelece entre o mundo objetivo e a ficção, mas em ligar-se quase sempre a outros mundos imaginários, a sistemas fechados de sinais, já regidos por uma significação autônoma”. A tese desenvolvida por Gilda de Mello e Sousa no livro é a de que foi no processo da música popular que Mário encontrou seu modelo compositivo. O escritor, ao invés de utilizar princípios literários correntes, transpôs duas formas básicas da música ocidental: a que se baseia no princípio rapsódico da suíte e a que se baseia no princípio da variação. O primeiro procedimento seria responsável por reunir vários temas comuns ao universo erudito e popular, o segundo, * responsável por iniciar o momento propriamente criador, operaria uma transfiguração dos temas já conhecidos. Em outras palavras: apropriação e originalidade. A pesquisadora chama a atenção para dialética que move o livro, materializada no conflito entre a tradição européia e as manifestações locais, populares, sejam elas indígenas ou africanas. Tensão que aparece presentificada no próprio título do livro do ensaio: “O tupi e o alaúde”.
Outro estudo significativo sobre o livro é “Morfologia de Macunaíma, de Haroldo de Campos, apresentado inicialmente na USP, em 1972, como tese de doutoramento, e publicado posteriormente em livro. No estudo, o concretista propõe uma análise estrutural do livro – estávamos no auge do estruturalismo no Brasil – com base nas funções desenvolvidas por Vladimir Propp, no livro “Morfologia do Conto Fantástico”, lançado, curiosamente, no mesmo ano em que Mário publicou Macunaíma, 1928. Haroldo quis mostrar que o livro, longe de ser uma obra caótica e malograda, como sugeriu Wilson Marins, em seu estudo sobre o Modernismo, é uma obra meticulosamente estruturada de acordo com princípios abstraídos da lógica fabular, explicáveis à luz da tipologia funcional proppiana. Pode-se encontrar no livro as funções narrativas que são recorrentes no universo fabular. Por exemplo: O herói nasce, perde um objeto de valor simbólico, parte para recuperar o objeto perdido, encontra um antagonista portador do objeto, vence-o, recupera a peça e volta para sua querência.


Para finalizar caberia observar que Mário era um apaixonado pelo Brasil, ou melhor, pelo povo e pela cultura brasileira. Nunca saiu do Brasil (a não ser em pequenas incursões nos limites do Peru e da Bolívia), receoso de perder nos contatos com a Europa ou a América, algo de sua personalidade tão característica. Mário versava com eficiência a música, o folclore, a poesia, e prosa entre outras coisas mais. No fundo, era ufanista se seu modo, um ufanista desiludido, que chegou a confessar em carta dirigida a Álvaro Lins que sentia tristeza ao reler Macunaíma. Na obra, coexistem ou alternam-se, o otimismo e o pessimismo. Para Macunaíma, nem a cidade representa uma saída para a selva, nem a selva para a cidade. A personagem volta civilizada, mas triste. Vítima de uma atopia fundante, sem lugar próprio, nem na metrópole, nem no Uraricoera, o herói padece de ambos e vai para o céu, como se concordasse com uma das frases mais emblemáticas de Raízes do Brasil, de Sério Buarque de Holanda: “Somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra”.   

Caio Ricardo Bona Moreira

segunda-feira, 27 de junho de 2016

Que emoção: notas sobre um emocionado




Na palestra "Que emoção!Que emoção?", proferida a jovens com mais de dez anos, Georges Didi-Huberman, inspirado nas conferências radiofônicas de Walter Benjamin para crianças, relembra que a emoção é um ato primitivo e fazendo referência ao livro "A expressão das Emoções nos Homens e nos Animais", de Darwin, observa que para este naturalista a emoção pode ser encontrada sobretudo nos animais, nas crianças, nas mulheres, nos velhos e em povos que têm pouca relação com os europeus. Os "selvagens" a que se refere Darwin, nesse caso, estariam numa franca oposição aos ingleses que não choram "a não ser sob a pressão da dor moral mais pungente". Sob a égide dessa curiosa polaridade, centrada na existência de sujeitos que se emocionam e de sujeitos que não se emocionam, nasce a expressão típica de que o sujeito que expõe sua emoção aos outros, como que expondo sua própria nudez, seria patético. E tal argumento, na maior parte das vezes, viria carregado de um certo desprezo. Emocionar-se é uma vergonha.
            Invertendo a carga negativa do choro, da emoção, bem como da exposição desse sentimento, Didi-Huberman reconhece que aquele que se comove diante dos outros não merece desprezo: "Ele expõe a sua fraqueza, ele expõe o seu impoder, ou a sua impotência, ou a sua impossibilidade de 'enfrentar', de fazer boa figura, como se costuma dizer". Nesse sentido, mostrar uma emoção implica num ato de honestidade, na recusa de um fingimento. Trata-se, portanto, de um ato de coragem.
            Se para Kant a emoção é entendida com o "defeito da razão", para Hegel as coisas vivas têm o privilégio da dor. Essa tragédia exuberante, como sabemos, em Nietzsche, terá seu valor positivo restituído. Didi-Huberman lembra que o pensamento filosófico a partir de então se modificará profundamente. O filósofo do trágico se debruçará pela poesia, pela arte e literatura mais do que pelas verdades eternas de uma filosofia dogmática: "Depois de Nietzsche, os filósofos comovem-se um pouco mais (...)". E a partir de Bergson as emoções serão entendidas como gestos ativos, gestos de paixão, movimento, portanto, na expressão "patético" o sentido aristotélico da forma passiva "pathos" (paixão ligada à impossibilidade de agir) daria lugar a um gesto ativo, a emoção entendida como e-moção, moção, um movimento que consiste em colocar-nos para fora de nós mesmos. A emoção produz, a emoção gera, nos move, se movimenta. Não é à toa que Aby Warburg, aliás lido amplamente por Didi-Huberman e citado na palestra, tenha se dedicado tanto a sua "pathosformel", preocupado em pensar na historicidade das emoções, na vida das imagens postas em movimento, programa materializado em seu Atlas Mnémosine.

Didi-Huberman

            Seguindo ainda o pensamento emocionado de Didi-Huberman, lembremos que as emoções, pensadas como moções, movimentos, comoções, são também transformações daqueles que estão comovidos:

Transformar-se é passar de um estado a outro: está então bem reforçada a nossa ideia de que uma emoção não pode se definir como um estado de pura e simples passividade. É mesmo através das emoções que podemos, eventualmente, transformar o nosso mundo, na condição, é certo, de que elas se transformem elas próprias em pensamentos e ações (DIDI-HUBERMAN).

            Brota daí, por exemplo, a leitura que o teórico faz do filme O Couraçado Potemkine, de Eisenstein, no qual em uma de suas passagens - a das mulheres que choram e se recolhem diante do cadáver do marinheiro assassinado -, a tristeza do luto se transforma em cólera surda para depois se transformar em discursos políticos e cantos revolucionários, ou seja em uma "cólera exaltada". Do luto à luta. Da lágrima da emoção à moção das armas. Se não podemos certamente fazer política real apenas com sentimentos, ensina-nos Didi-Huberman, "também certamente não podemos fazer boa política desqualificando as nossas emoções (...)"(DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 45). 


quinta-feira, 16 de junho de 2016

Origens da Literatura Brasileira: um problema, três pontos de vista


A questão da origem da literatura brasileira é amplamente discutida por historiadores e críticos. Esquece-me, muitas vezes, no entanto, dos nós que se apresentam ao longo desta linha imaginária que poderia ser chamada de história de nossa literatura. Diríamos que a questão da origem é problemática e suscita aprofundamento. Apontamos para três grandes teses que buscam direta ou indiretamente uma origem para a literatura brasileira. A primeira, sustentada por Afrânio Coutinho, em Conceito de Literatura Brasileira, imagina no século XVI o nosso legítimo começo. A segunda, de Antonio Candido, aponta em Formação da Literatura Brasileira para o século XVIII, momento especial no qual um sistema literário é posto em funcionamento. E a terceira, de Haroldo de Campos, que, criticando Candido, situa no século XVII nossa gênese literária.
Geralmente, os estudos relativos à historiografia da literatura brasileira tomam como ponto de partida o início do século XVI. Os manuais didáticos tendem a reproduzir esse modelo. Entende-se como "começo", neste contexto, a Literatura Informativa e/ou de Viagem, bem como a literatura produzida por jesuítas, em solo brasileiro. José de Anchieta, por exemplo. Esse é o argumento de Afrânio Coutinho. Segundo o crítico, a literatura brasileira "iniciou-se no momento em que começou o Brasil. É brasileira, desde o primeiro instante, tal como foi brasileiro o homem que aqui se formou desde que o europeu aqui se implantou". Coutinho retoma o conceito de "obnubilação", desenvolvido por Araripe Júnior, segundo o qual o europeu, ao chegar ao Brasil, sofreu um relativo esquecimento dos laços afetivos que o ligava com a Europa e passou por um processo de gradativo apego ao lugar que começava a colonizar. Essa obnubilação foi responsável por gerar uma espécie de nativismo (amor à terra) que mais tarde se transformaria em um nacionalismo (amor à pólis). Esse processo marcaria, sob esse ponto de vista, desde o início da colonização uma singularidade da literatura produzida no Brasil em relação àquela produzida em Portugal.

Afrânio Coutinho

Em 1959, Antonio Candido, por sua vez, publica a sua tese Formação da Literatura Brasileira, na qual sustenta que a nossa literatura teria tido seu processo de formação em meados do século XVIII com a produção de Cláudio Manuel da Costa. Para Candido, é nesse momento que um sistema literário, pautado pela relação triádica entre autor-obra-público, é posto em funcionamento no Brasil. Com a formação da própria sociedade brasileira, com ímpeto de autonomia política - oriundo de um sentimento de nacionalidade -, com o surgimento de Academias que congregavam intelectuais, com o surgimento de escolas, bibliotecas e livrarias, um sistema literário passa a esboçar um processo formativo de nossa literatura. Quando a atividade dos escritores de um dado período se integra em um tal sistema, ocorre, para Candido, um elemento decisivo: "a formação da continuidade literária - espécie de transmissão da tocha entre corredores, que assegura no tempo o movimento conjunto, definindo os lineamentos de um todo". As produções de escritores anteriores ao século XVIII, portanto, não serão fundamentais para a formação de nossa literatura, sendo consideradas por Candido como apenas "manifestações literárias" que não chegaram a constituir um sistema. É o caso do barroco de Padre Vieira e de Gregório de Mattos. Não deixa de ser lamentável a ausência do Barroco na tese de Candido.  

Antonio Candido

Haroldo de Campos em 1989, publica o seu estudo O sequestro do Barroco na Formação da Literatura Brasileira: o caso Gregório de Mattos justamente para criticar a ausência do Barroco, em especial a o do "Boca do Inferno" no panorama de Candido. Para o poeta, crítico e tradutor concretista a qualidade estética do nosso barroco, em especial o de Gregório de Mattos já mostra que há no século XVII uma Literatura Brasileira adulta (1989).


Haroldo de Campos

Poderíamos aprofundar aqui a discussão, analisando, por exemplo, os pontos fortes e fracos de cada uma dessas teses, abordando, por exemplo, com Walter Benjamin, o problema da origem pensada como gênese, como algo dado e acabado no tempo. Em Origem do Drama Barroco Alemão, Benjamin observa que o conceito de origem deve ser a partir da ideia de inacabamento e de vir-a-ser. Para ele, ela não significa uma gênese: “A origem, apesar de ser uma categoria totalmente histórica, não tem nada a ver com a gênese. O termo origem não designa o vir-a-ser daquilo que se origina, e sim algo que emerge do vir-a-ser e da extinção”. Definir uma gênese seria, então, abandonar o conceito de origem benjaminiano, caindo na busca de uma arké. Estaríamos, então, diante de um problema de tempo, e da impossibilidade de reduzi-lo à história. Impossível pensar no originário sem levar em conta que ele é pautado pela restauração e pela reprodução, sendo, portanto, incompleto e inacabado. Ou seja, seria impossível definir uma origem entendida como começo no que se refere a nossa literatura. 
Pelo que parece estamos fadados a escrever e reescrever sempre isso que chamamos de história. Talvez seja melhor falarmos em "começos", ou mesmo pensar que a nossa literatura ainda está se fazendo como no giro de um torvelinho, nessa história anacrônica, em forma de espiral e não numa linha reta como costumeiramente se pensa aquilo que chamamos de história

segunda-feira, 6 de junho de 2016

Texto de apresentação da minha tese: Ruínas de um Tempo/Templo, ou sobrevivências de Dario Vellozo na literatura do presente, defendida na UFSC, em 2011 - este texto foi apresentado na defesa


Seria possível reconstituir uma tese no comentário? Poderia eu resumi-la, dissecá-la, recortá-la, recontá-la. Ficaria nada mais que uma pálida sombra, o fantasma de um texto de muitas vozes, gestado durante os anos em que permaneci regularmente matriculado no programa de pós-graduação em Literatura na Universidade Federal de Santa Catarina, dividido entre as tarefas do doutorado e as exigências impostas pelo trabalho. O poder de síntese, que venho tentando, com muito custo, desenvolver ao longo dos anos, talvez conferisse a minha fala a capacidade de explicar com presteza o tema, os objetivos, os problemas, os princípios metodológicos, as descobertas, as aporias, e as possíveis considerações finais de minha pesquisa. No entanto, o fantasma da escritura parece perseguir o texto, demovendo-me da tarefa.  
Lembro-me de uma confissão que fiz à banca de defesa no mestrado, composta pelos professores Antonio Carlos Santos, Susana Scramim e Felipe Soares no ano de 2006, de que o grande desafio por mim encontrado foi a dificuldade de superar do fantasma da escritura. Lembro-me também da resposta dada pelo professor Antonio Carlos Santos, meu orientador na época, de que ao invés de superar esse espectro, deveria eu aprender a conviver com ele. A frase, que ainda produz volteios, talvez sirva como um elemento propulsor capaz de nos dizer que é possível continuar a despeito de certa dose de angústia e insatisfação que permeia uma atividade de leitura e escrita. Depois de cinco anos, continuo buscando tal convivência, na expectativa de que esse aprendizado possa suscitar alguns “lances de dado”, faíscas, imagens. A capacidade de afirmar o enigma, e em conseqüência de vivê-lo em plenitude, talvez tenha sido uma das felizes descobertas que a frase propiciou, somando-se às lições apreendidas no que veio pela frente, no doutorado. Muito depois eu reviveria essas palavras ao ler o livro Estâncias, de Giorgio Agamben, um livro que ao discutir o encontro entre o fantasma e a palavra, afirmaria a dimensão espectral e inapreensível da escritura.     
Na impossibilidade de repetir aqui o texto da tese, contento-me em tocá-la, o que talvez me leve a transformá-la. Faço, assim, da minha fala um suplemento, um lance de traça, que ao recortar o texto, re-traça, fazendo da tese uma presença sempre diferida. Se é verdadeiro o fato de que a poesia de Dario Vellozo sobrevive, transformando e transformada, na e pela poesia do presente, é também verdade que a tese sobrevive de alguma maneira neste comentário. Ao menos como ruína. E como reiterei várias vezes ao longo do trabalho, a sobrevivência parece sempre estar pautada pela vida e pela morte. O dicionário nos diz que sobreviver significa continuar a viver depois de outro; continuar existindo depois de grave perda; resistir, enfrentar, escapar, sobreviver a todas as crises. Nesse sentido, sobreviver pressupõe uma diferença no viver, já que agrega uma sobreposição à vivência em que se deu determinada experiência. Aby Warburg, seguindo os passos da survival, discutida por Edward B. Tylor, falou em Das nachleben, com o intuito de tratar da possibilidade da transmissão de uma memória por meio de imagens. As imagens, dotadas de uma vida póstuma, fariam parte de uma complexa rede viva e posta sempre em movimento. Walter Benjamin, em A tarefa do tradutor, interessado nos efeitos de sobrevida do original desencadeados por uma tradução, nos fala em Das fortleben. Em ambos os casos, estaríamos diante de uma transmissão e modificação de um elemento anterior. Ou seja, tanto em um conceito como no outro, perda e produtividade, vida e morte, instaurariam a própria condição do (sobre)viver. Dessa maneira, “continuar existindo depois de grave perda”, talvez seja uma das definições mais esclarecedoras que o dicionário nos dá para a expressão.  
Régis Debray, em Vida e Morte da Imagem, escreve que “o nascimento da imagem está envolvido com a morte. Mas se a imagem arcaica jorra dos túmulos é por recusar o nada e para prolongar a vida”. Prolongar a vida poderia ser entendido aqui como a grande busca de uma imagem. Debray, no mesmo texto relembra os ritos fúnebres dos reis da França, entre a morte de Carlos VI e a de Henrique IV, que ilustram tanto as virtudes simbólicas quanto as vantagens práticas da “imagem primitiva como substituto vivo do morto” (1994, p. 25). Como a putrefação avança mais depressa do que a duração materialmente exigida para a exposição do corpo, a efígie do soberano surge como substituta:

Vestida com todos os seus adornos e dotada com as insígnias do poder, é ela que vai presidir, durante quarenta dias, as refeições e as cerimônias da Corte. Unicamente ela recebe as homenagens; enquanto a efígie estiver exposta, o novo rei deve permanecer invisível. Assim, dos dois corpos do rei, o perecível e o eterno, é o segundo que vem ocupar seu manequim de cera pintado (1994, p. 25).

Ou seja, há mais na cópia do que no original. A lição é borgeana. O fato leva Debray a concluir que a verdadeira vida está na imagem fictícia e não no corpo real: “Uma religião fundada sobre o culto dos antepassados exigia que eles sobrevivessem pela imagem” (DEBRAY, 1994, p. 23). A mesma coisa, em outras palavras nos diz Dario Vellozo, ao se referir, no livro Horto de Lisis, às estátuas funerárias que evocam nas fisionomias clássicas, a Hélade majestosa, frizando que “têm sorriso de vida as estátuas dos mortos” (1969, p. 19). No entanto, e o próprio Dario sugere, antes de continuar produzindo vida, a morte produz a metamorfose das formas. A perda exige uma produtividade. A palavra metempsicose, do grego meta: mudança + psique: alma, indica a transmigração da alma, de um corpo para outro. Tratava-se de uma crença difundida amplamente por várias culturas. Acredita-se que Pitágoras, a quem Dario rendia culto e louvores, tenha sido um dos filósofos que acreditaram nesse processo que foi assimilado por Platão, em Leis e Timeu, como sinônimo de reencarnação. Poderíamos pensar na metempsicose como uma alegoria da própria relação estabelecida entre as imagens. Voltemos a Debray. Este afirma que a imagem é, na origem e por função, mediadora entre os vivos e os mortos, e de forma mais sucinta “um verdadeiro meio de sobrevivência”. Não se trata de perceber que a imagem, transformada em monumento, recebe grifado em seu semblante a palavra “lembra-te”, ou a expressão sintomática de um “isso foi”, de que nos fala Barthes, em Câmara Clara, mas que ela, funcionando como a presença de uma ausência, nos convoca a tarefa de participar da metempsicose, da transmutação alquímica de um estado a outro, em outras palavras, nos convida a traduzir. Se na metempsicose a alma troca de corpos, na poesia talvez não seja diferente. Temos o percurso traçado.
Ao me interessar pela poesia de Dario Vellozo, inevitavelmente fui seduzido pela possibilidade de pensar na “maturação póstuma” das palavras que já se fixaram, para usar uma expressão de Walter Benjamin em “A tarefa do tradutor”. Tratava-se de imaginar uma sobrevida para uma poética que se considera muitas vezes extinta. A pesquisadora Regina Elena Sabóia Iorio, na sua tese de doutoramento, da UFPR, Intrigas e Novelas, Literatos e Literatura em Curitiba na Década de 20, afirmou que o Simbolismo do Paraná definhou sozinho, deixando em seu lugar somente um vazio, como um ancião solitário e abandonado que não deixou descendentes. Uma leitura como essa, que desconsidera a pervivência do simbolismo numa linhagem da poesia do presente, está fadada a ler o passado como algo estático e isento de tensões significantes. Com isso, não pretendo sugerir a descendência de Dario Vellozo ou outros poetas de seu movimento em poetas contemporâneos. Podemos pensar na ausência de descendentes, mas apenas na medida em que uma afinidade não posse ser definida de maneira satisfatória em termos de uma “identidade de ascendência”, como sugeriu Benjamin, isso porque preferimos pensar em uma história dialética que combina um modo de “vir-a-ser’ e “extinguir-se” numa protopaisagem petrificada. A tradução põe em cheque qualquer pretensão de semelhança. Para Benjamin, traduzir só é possível, em essência última, caso não se ambicione alcançar alguma semelhança com o original. Isso porque na continuação da vida, o original se modifica. Dario, ao sobreviver, transforma e é transformado pela tradução de sua poética. Leminski, na esteira das concepções de tradução que lhe chegavam pelos concretistas, escreveu que o que se chama inapropriadamente de tradução é a “construção de um novo objeto, homólogo ou análogo, uma paródia – canto paralelo, ao Primeiro”. Por isso, tentei desenvolver a ideia de que a poesia de Dario não deve necessariamente ser lida como um manancial artístico, de onde brotam as características exploradas pela poesia do presente, mas como uma poesia que lhe deve também existência a partir de sua sobrevivência. Vale lembrar que a fomentação modernista da revista Joaquim, criada por Dalton Trevisan na década de 40, obliterou a tradição simbolista, considerada pela maioria dos jovens da Joaquim como uma manifestação literária provinciana e  ultrapassada. Coube a poetas como Paulo Leminski negar o pai para despertar o avô.
Procurei me afastar de uma leitura que discutisse apenas as características formais semelhantes em ambas as poesias, simbolista e poesia contemporânea, percebendo que o que estava em jogo era acima de tudo uma concepção de poesia pautada por uma noção de abandono, abandono tanto da ideia da literatura tomada como expressão de um sujeito, quanto a ideia de que a literatura poderia expressar a realidade. Por isso, recorri à leitura de Leminski, quando este afirma que o que Dario Vellozo cultuava era a irredutibilidade do signo icônico ao signo verbal, concepção que traduzia uma experiência sígnica presente em concretistas e outros contemporâneos. Peço licença para repetir uma das citações de Leminski, usadas no trabalho, que define a experiência icônica, que, segundo o poeta, é extraordinariamnte concreta:

Ícones dizem mais do que as palavras (símbolos) com que tentamos descrevê-los, esgotálos, reduzi-los.
O ícone é o signo, parcialmente motivado, que tem algo em comum com o seu referente, eco, rima, reflexo, harmonia expressiva, visual ou acusticamente, no plano material dos signos, no significante.
Este mistério da participação do signo incônico na natureza do seu referente, mistério material, produz uma taxa de informação estética incomparavelmente maior do que aquela que consegue gerar os símbolos, signos imotivados, arbitrários, meras concenções imateriais

 E é por pensar na relação entre Dario e os poetas do presente como uma questão de tradução, que optei por fazer da noção de sobrevivência uma figura recorrente em todo o trabalho. Dario traduz o paganismo assim como Leminski traduz Dario. Lembremos que para Benjamin, a tradução reforça o mesmo e o outro, a repetição e a diferença, a memória e o esquecimento, produzindo, nesse sentido, uma reflexão que parte da aceitação da perda de uma origem estável e da impossibilidade de se pensar a tradução em termos de uma recuperação racional de significados. Se por um lado a tradução é incapaz de significar algo para o original, por outro, na traduzilbilidade encontra uma forma de “sobreviver”. É nesse ponto que procurei discutir a relação entre a poesia simbolista de Dario e a de uma linhagem que lhe é contemporânea. Se o paganismo da Antiguidade sobrevive na poesia de Dario e se a poesia de Dario de certa forma sobrevive na poesia do presente é porque a “continuação da vida” abre ambas as obras a um anacronismo que nos permite pensar a sua poesia  como possuidora de uma força capaz de interagir com outras forças, criando efeitos de sobrevida que transformam e são transformados ao longo do tempo. 
A pesquisa, desde o princípio, estava fadada a conviver com algumas dificuldades. A primeira delas era conferir ao trabalho um maior alcance de pesquisa e originalidade, o que se espera de uma tese de doutoramento. O fato de escolher a poesia de Dario Vellozo – ou de ter sido por ela escolhido – contribuiu para definir um percurso muito pouco trilhado por pesquisadores. Dario é hoje figura quase desconhecida no próprio Paraná, quiçá no Brasil. A maioria das dissertações e teses sobre ele, a que tive acesso, é de cunho historiográfico e enfoca no mais das vezes o seu perfil de educador, livre-pensador, maçom, ocultista. Assim, a fortuna crítica de Dario-poeta se nos mostrou escassa e incapaz de definir um caminho seguro, bem como de mapear o posicionamento de sua recepção, ou de traduzir um cenário literário quase extinto na literatura produzida no Paraná. Urgiu-se mergulhar em arquivos de bibliotecas na expectativa de desenhar um panorama que nos ajudasse a ler a poesia por ele produzida, procurando sair de uma zona de conforto ao buscar conexões que não apenas permitissem retirar Dario da província, como perceber de que maneira a sua sobrevivência se delineava.  
Aos poucos, foram aparecendo textos de Nestor Vitor, João do Rio, Brito Broca, Araripe Júnior, Andrade Muricy, Cassiana Lacerda Carollo, Cláudio Willer, Lúcia Miguel Peireira, Phileas Lebesgue, entre outros, que em algum momento escreveram sobre o poeta do Templo das Musas. Era preciso dialogar com essas leituras para definir um cálculo de horizontes de possibilidades que poderiam ser trilhados. 
Foram também, aos poucos, e durantes as disciplinas cursadas no programa de pós-graduação, surgindo pontos de contato entre os objetivos iniciais e as leituras assimiladas, o que de certa forma, foi fundamental no processo de consolidação da tese que estava sendo burilada. As leituras de Georges Didi-Huberman, Walter Benjamin, Aby Warburg, Giorgio Agamben, entre outros, não foram apenas motivo para citações que preenchessem o corpo do texto. Elas não só justificavam as hipóteses, como me ajudavam a enxergar detalhes até então desconhecidos, permitindo que Dario Vellozo fosse posto em uma rede anacrônica, cujos fios ligavam seu pensamento não só à Hélade pagã e ao simbolismo e decadentismo, mas também a gestos contemporâneos que integravam movimentos como o da patafísica, o dos acephálicos, e o de alguns poetas do presente. Esse ecletismo num primeiro momento pareceu ser um ponto fraco no trabalho, podendo abrir margem para uma leitura que o considerasse raso e não delimitado. No entanto, pareceu-me quase impossível tratar do poeta sem enfocar a multiplicidade de aspectos e interesses que envolviam sua prática. Dessa maneira, escolher um aspecto em detrimento de outros, poderia fazer a pesquisa ganhar em profundidade, mas perder aquela qualidade que considero a mais importante do objeto escolhido, a pluralidade e o de-lyrio de Dario. Por isso, procurei aliar vários elementos que subjazem na sua obra a uma leitura que não se restringisse ao mero apontamento, mas a um dedicado estudo que enxergou nesse “bazar” filosófico e literário uma potência significativa. Ou seja, desde o princípio, desenvolver uma fala plural foi uma tentativa de estabelecer um diálogo com um poeta que me pareceu plural. Daí a recorrência proposital de várias imagens, que iam da caveira e do caleidoscópio à nuvem, passando pela ilha utópica de Atlântida aos gestos patafísicos e acephálicos.    
Outra dificuldade com a qual me deparei foi a tentativa de ler Dario Vellozo de maneira não reverencial.  Não intentava eu recolocar o poeta no jardim das Musas, rendendo-lhe louvores ou acendendo-lhe velas. Se por um lado a figura de Dario Vellozo me seduziu a ponto de lhe dedicar quatro anos de pesquisa, por outro, era necessário dele me distanciar, situando-me no limiar de uma leitura monumental e modernista. “Há de estar apartado dos olhos para se poder ver”, diria-nos Padre Vieira, em um de seus Sermões. Com isso, não almejava conquistar uma postura crítica cientificista e religiosa, tendo em vista que transformamos e somos transformados pelos objetos que apreciamos. A eles nos misturamos, a ponto de precisarmos, às vezes, à maneira de Joseph Joubert, fechar os olhos para poder ver. Foi quando imaginava não suportar mais os poemas de Dario, ou seja, quando adotei uma postura menos apaixonada, que vislumbrei a possibilidade de começar a lê-los. O que em hipótese alguma diminuiu a admiração por aquela que considero uma das figuras mais curiosas da belle époque brasileira.
Iniciava aí uma nova etapa da pesquisa e a poesia simbolista foi surgindo como uma máquina de produzir imagens, um caleidoscópio que desorientava os tempos e os textos, o que permitiu uma abordagem das sobrevivências de Dario Vellozo em uma linhagem da poesia do presente que vai de Paulo Leminski a Ricardo Corona, Cláudio Daniel, entre outros. Aliás, é de Leminski o ensaio inédito encontrado no arquivo da biblioteca da Fundação de Cultura de Curitiba, que abriu as portas para a leitura desenvolvida.  No texto, intitulado “O templo de Dario: um poema de pé, um poema de pedra”, Leminski além de fazer referência ao Templo neoclássico que o simbolista construiu no bairro e Vila Isabel, em Curitiba, comparou o longo poema Atlântida, de Dario, aos Cantos, de Ezra Pound, e enxergou no nefelibata um “corpo estranho” na Curitiba do final do século XIX e início do século XX. Aliás, foi como um “corpo estranho”, que Andrade Muricy definiu o simbolismo brasileiro. A leitura de Leminski, não só no ensaio inédito, mas em outros textos também, contrasta com a postura da revista Joaquim que encontrou no movimento fomentado por Dario o sintoma de um provincianismo e de um dandismo datado e estéril. Antonio Candido, em artigo publicado na mesma revista, considerou o movimento simbolista do Paraná medíocre, por fomentar uma mera “literatura de raio-de-luar”. Entenda-se aqui “raio-de-luar” como o sintoma de uma poesia que não soube sintonizar os problemas do homem e do mundo com a arte. Nesse sentido, estaríamos diante de uma poesia provinciana que teria como intuito seguir um modelo europeu. Para Candido, a poesia simbolista seria uma poesia menor, não no sentido que lhe dá Deleuze, em Kafka, por uma literatura menor, mas no critério de valor. Em 1942, quatro anos antes de condenar o simbolismo paranaense na revista Joaquim, o crítico publica na Folha da Manhã o artigo “Notas de crítica literária – Poesia ao Norte”, em que observa que “a poesia moderna, a partir do Simbolismo, tende a ser menor” (CANDIDO, 2002, p. 129). Menor no sentido de que a poesia teria deixado de lado os grandes temas do passado e as preocupações políticas e sociais para voltar-se para a cisão entre o eu e o mundo. No mesmo texto, depois de observar que essa poesia já não é mais cantada, escrita ou falada, mas apenas “sussurrada”, Candido afirma que o poeta se desdobra, assim, em “esforços desesperados para tornar aéreo, leve, imponderável o vocabulário da poesia” (2002, p. 130). E ironicamente conclui: “No limite (como compreenderam os surrealistas, depois dos pós-simbolistas), a perfeita poesia seria a sugestão total, a iniciativa deixada de todo leitor; seria – por que não? – a página em branco”. O contraste entre a leitura da Joaquim, que rendia tributo ao argumento de Candido, e a leitura de Leminski nos permitiu analisar com mais cautela a postura do nefelibata e perceber na nuvem um signo não só da desconstrução da matéria, mas de um pensamento político que soube, segundo Leminski, enxergar com mais clareza as transformações estéticas e sociais no final do século. Se o trabalho com a linguagem propiciado pela adoção de uma turis ebúrnea implicava uma política da poesia e pela poesia, a busca política da Atlântida implicava por sua vez um trabalho com a linguagem que permitia ao poeta produzir um poema que desenvolvia um nacionalismo com bases míticas e não sociológicas, como o de Gilberto Freyre, que publica Casa Grande & Senzala no mesmo ano em que Dario escreve Atlântida, ou seja, 1933. A tensão entre o nefelibata e o mitólogo nacionalista mostra que a relação entre o poeta e seu tempo é tão forte quanto aquela pautada pelo interesse pela Grécia antiga. E se Dario recorria ao mito, não só em Atlântida, mas em grande parte de seus poemas, era mais para devolver potência ao texto, no sentido baudelaireano, do que para lamentar o momento de decadência e de degeneração de raças, como tratou Brito Broca, em Vida Literária o Brasil -1900. Não é à toa que em Atlântida, Dario faça um elogio à mestiçagem, defendendo a miscigenação e situando no Brasil a terra em que surgiria uma raça cósmica, aproximando-se assim das idéias de Jose Vasconcellos. Se Atlântida, com seu preciosismo lingüístico, fazia sentido depois de Memórias Sentimentais de João Miramar e Macunaíma, aí é outra história.      
No longo poema, Dario recorre à fábula platônita que foi imagem recorrente em textos de cunho esotérico e imagina depois da queda do Continente a sobrevivência de três de seus habitantes justamente em solo brasileiro. Com isso, o poeta pretendia desenvolver uma cosmogonia que partindo da Atlântida, passava pelo Egito, pelas civilizações pré-colombianas e pelos druidas para encerrar com a equação Atlântida-Brasil. No poema, Dario intercala versos livres a uma métrica regular, criando passagens extremamente elípticas, ideogramáticas à maneira de Ezra Pound que soube, em seus Cantos, aproximar a escrita oriental da poesia moderna, mostrando-nos que uma cultura só pode figurar em uma epopéia em forma de caleidoscópio. Aliás, é como caleidoscópio que procurei ler a poesia do final do século XIX e início do século XX, ou seja, como uma máquina de produzir imagens e, por meio dela, reinventar a paisagem na sua decadência, permitindo que o invisível invada o visível e que se opere a determinação de uma indeterminação, como observou Décio Pignatari, ao se referir a Mallarmé. Não seria fortuito observar que esse caleidoscópio simbolista sobrevive como prótese do olhar, ou seja, como cinema, nos poemas, por exemplo, de Ricardo Corona. Wilson Bueno chegou a caracterizá-los como “poemas-câmera”. Ao produzir um livro para além do ver, “posto que perscruta e tateia”, Corona estaria devolvendo potência a um procedimento simbolista, por excelência.  
Naturalmente, essa máquina de malícias visuais percorre não apenas os poemas de Dario, como também os seus gestos de poeta travestido de grego, trajando vestes helênicas e turbante marroquino a desfilar pela pacata Curitiba da belle époque, o que despertava a curiosidade e o riso da população. O fato não parece caracterizar um gesto provinciano ou simplesmente carnavalesco, bem como não está distante das provocações de Alfred Jarry que intentou com a patafísica desenvolver uma espécie de mitologia contemporânea, pautada pela abolição da linha divisória entre arte e vida. O projeto dessa abolição parece ser o cerne da conjunção dos contrários, princípio oriundo do ocultismo, que demarcou a poética de Dario, bem como a de Alfred Jarry. O curioso desfile de Dario seria considerado por Ricardo Corona como o gesto precursor da performance no Brasil, atividade que será apropriada por Corona em suas atividades literárias e musicais. Ao fantasiar-se, Dario cede o “eu” ao “outro”, materializando, assim, em seu próprio corpo, um princípio rimbaudiano assimilado pela poesia simbolista, ou seja, o abandono da literatura tomada como expressão de um sujeito. Essa busca por uma nova mitologia, que subjaz nos gestos simbolistas de Dario e patafísicos de Jarry, ou mesmo acephálicos de George Bataille, parece levar adiante a proposta do filósofo alemão Shelling. Assim como ele, Dario, Jarry e Bataille, intentaram desenvolver uma espécie de religião sem igreja, para usar um termo de Asger Jorn. Bataille mergulhando na busca pela conjuração sagrada, que o levou a inventar uma seita e disseminá-la entre amigos interessados; Dario por meio do seu simbolismo e neo-pitagorismo, bem como pela criação do grupo Cenáculo; e Jarry, pela estranha sociedade patafísica. Em ambos, a literatura pareceu funcionar como uma espécie de laboratório de soluções imaginárias.   

Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling, no fragmento intitulado “Programa sistemático”, ao observar que o filósofo tem de possuir tanta força estética quanto o poeta, dirige à poesia uma dignidade superior, aproximando-a da religião. Para Schelling, o filósofo necessita de uma religião sensível: “politeísmo da imaginação e da arte, é disso que precisamos” (1979, p. 43). Ainda com o filósofo: “Falarei aqui pela primeira vez de uma Idéia que, ao que sei, ainda não ocorreu a nenhum espírito humano – temos de ter uma nova mitologia, mas essa mitologia tem de estar a serviço das Idéias, tem de se tornar uma mitologia da Razão”:

Enquanto não tornamos as Idéias mitológicas, isto é, estéticas, elas não terão nenhum interesse para o povo; e vice-versa, enquanto a mitologia não for racional, o filósofo terá de envergonhar-se dela. Assim, ilustrados e não ilustrados precisarão, enfim, estender-se as mãos, a mitologia terá de tornar-se filosófica e o povo racional, e a filosofia terá de tornar-se mitológica, para tornar sensíveis os filósofos. Então reinará eterna unidade entre nós. Nunca mais o olhar de desprezo, nunca mais o cego tremor do povo diante de seus sábios e sacerdotes. Só então esperar-nos-á uma igual cultura de todas as forças, em cada um assim como em todos os indivíduos. Nenhuma força mais será reprimida. Então reinará universal liberdade e igualdade dos espíritos! Será preciso que um espírito superior, enviado dos céus, funde entre nós essa nova religião; ela será a última obra, a obra máxima da humanidade (SCHELLING, 1979, p. 43).

Gostaria aqui de apontar alguns pontos que não foram devidamente abordados na pesquisa e que considero como caminhos passíveis de serem trilhados. Concentrei-me nas sobrevivências de Dario Vellozo na poesia do presente. Essas sobrevivências percorrem, como tentei observar na tese, não apenas os poemas, mas também a concepção de uma experiência poética pautada por uma noção de abandono. Uma das questões que poderiam ser pensadas dizem respeito à correspondência trocada entre Dario Vellozo e Gonzaga Duque, bem como entre Dario e Philéas Lebesgue, um francês que apresentou Dario para a comunidade francesa no Mercure de France, e cujas cartas encontram-se na Fundação da Sociedade dos Amigos de Phileas Lebesgue, em La Neuville-Vault, no interior da França. A correspondência entre Dario e Gonzaga Duque, está dividida entre o arquivo da Fundação Casa de Rui Barbosa e o arquivo do Instituto Neo-Pitagórico, em Curitiba. Algumas dessas cartas, publicadas por Vera Lins e Cassiana Lacerda Carollo já deixam entrever um fértil diálogo que pode nos ajudar a pensar não só a obra de Dario e a de Gonzaga Duque, como também questões mais abrangentes que vão desde a relação entre arte e pensamento, que seriam sintomáticas no expressionismo, à relação entre crítica e poesia. Outro ponto que pretendo esmiuçar diz respeito à crítica produzida pelos simbolistas. 
Sabemos que a crítica por eles produzida não estava desvinculada de suas experiências poéticas, o que nos leva a considerar que ela, em grande parte, estava pautada pelo enigma. Essa crítica parece ter sido uma primeira tentativa, entre nós, talvez ainda inconsciente, de produzir um pensamento que não desejava ser apenas criativo, mas principalmente enigmático, no sentido proposto por Benjamin, ou mesmo na ideia da negatividade de que nos fala Agamben. Curiosamente, é também a crítica que foi menosprezada por boa parte dos pesquisadores, que muitas vezes a tratou pejorativamente como impressionista e falível, justamente por não ser sistematizada, como foi a “nova crítica”, que encontrou em Afrânio Coutinho um de seus adeptos mais fiéis no universo acadêmico brasileiro. O argumento de Afrânio Coutinho é o de que a crítica impressionista, produto de um individualismo romântico, “exagera a reação instintiva, pessoal, transformando-a na medida de tudo” (1975). Para ele, a crítica impressionista institui a supremacia do sujeito e de suas impressões, não conseguindo sair do estágio da submissão da obra, o primeiro a que se refere Tristão de Ataíde. Para Tristão de Ataíde, a crítica é atravessada por um movimento tríplice: “O da submissão à obra, o da dissecação da obra e o da recomposição da obra através das impressões recebidas” (ATAÍDE apud COUTINHO, 1975, p. 155). Dessa maneira, muitos historiadores e críticos não hesitaram em tratar a crítica simbolista, preconizada por figuras como Gonzaga Duque e Nestor Vítor, como uma crítica menor.
Giorgio Agamben, no prefácio de Estâncias chama a atenção para o fato de que se a crítica se identifica hoje com a obra de arte, “isso não acontece por ela também ser criativa, mas sim por ela ser também negatividade” (2007, p. 10). Nesse sentido, mais do que reencontrar o objeto, dissecá-lo, como fizeram os estruturalistas, na expectativa de explicar o funcionamento de um aparelho, de uma máquina, de um corpo, a crítica deveria garantir “as condições da inacessibilidade desse objeto”. Ainda no prefácio, o filósofo italiano, tocado pelas questões da negatividade, lembra de uma cisão que se produziu desde a origem de nossa cultura e que, segundo ele, se costuma aceitar como realidade natural. Agamben se refere à cisão entre a filosofia e a literatura, que se solidificou a partir de Platão. Resultado: A poesia acaba gozando do objeto sem o conhecer. E a filosofia, por sua vez, conhecendo o objeto sem o possuir.
O que Agamben está querendo mostrar é que essa cisão merece ser interrogada já que a poesia pode se voltar para o conhecimento, assim como a filosofia pode se voltar para o gozo, para a alegria.  E aqui, abrindo um parêntese em nossa reflexão, não poderíamos nos furtar de perceber o interesse que um filósofo como Agamben vem nutrindo pela literatura, como uma possibilidade para o próprio filosofar, assim como uma série de críticos literários vêm se interessando cada vez mais pela filosofia como uma forma de reflexão sobre a literatura.
As colocações de Agamben sobre a cisão nos incitam a uma reflexão sobre a crítica, que “não representa nem conhece, mas conhece a representação” (AGAMBEN, 2007, p. 13). Essa operação nos convida a “buscar o gozo daquilo que não pode ser possuído”, bem como “a posse daquilo que não pode ser gozado” (2007, idem). O que nos leva a questionar o significado da crítica, problematizando-a a parir da etimologia da palavra, que vem do grego Krinein, que quer dizer “julgar”. Relembremos que, para Tristão de Ataíde, a crítica deveria obrigatoriamente passar pelos três estágios: “O da submissão à obra, o da dissecação da obra e o da recomposição da obra através das impressões recebidas” (ATAÍDE apud COUTINHO, 1975, p. 155). Mas hoje, pergunto, que sentido tem para um crítico perguntar simplesmente se determinada obra é boa ou má em um momento em que as certezas, os julgamentos de valor, são cada vez mais abaladas. Se a sua tarefa é garantir as condições da inacessibilidade de um objeto, parece cair por terra o binômio bom/mal que encerra um julgamento de valor e a figura do crítico como um juiz do Tribunal da Santa Inquisição. Assim, o papel do crítico seria o de desestabilizar a obra, devolvendo potência a ela, tornando-a enigmática, e não apenas julgando-a. Bastaria lembrar das colocações de Walter Benjamin sobre a fissura criada pelos românticos na tradicional concepção de crítica:

Apenas com os românticos se estabelece de uma vez por todas a expressão “crítico de arte” em oposição à expressão mais antiga “juiz da arte”. Evitava-se a representação de um tribunal constituído diante da obra de arte, de um veredito fixado de antemão como lei escrita ou não escrita (...) (2002, p.58).

 Tradicionalmente, o crítico é aquela figura autorizada que, antes de dar o veredito, decifra os mistérios da obra, como se o livro se constituísse como um manancial de segredos merecedores ora de um “sim”, ora de um “não”. Mas ao invés de falar em segredos, prefiro pensar em enigmas. Para Mallarmé, na poesia deve sempre haver enigma, ele é o objetivo da literatura. O mesmo enigma - o indizível - que Agamben (2006) apontaria no poema “Eleuzis”, de Hegel, dedicado a Hölderlin. Advém daí uma concepção de poesia enigmática, em que tudo o que é sagrado e quer permanecer sagrado se envolve em mistério, como diria o poeta de “Um lance de dados”, no artigo “L´Art pour le tous” (PEYRE, 1983, p. 37). Se o enigma é o objetivo da literatura, porque não o seria também da crítica? Um dos filósofos que se dedicou ao estudo do enigma foi Walter Benjamin. Em uma das passagens de seu ensaio Las afinidades electivas de Goethe, Benjamin contrapõe o comentador ao crítico, descrevendo aquele como uma espécie de químico e este como um alquimista.  Pensemos numa fogueira em chamas: enquanto que para o químico só interessa como objeto de análise madeiras e cinzas, para o alquimista só a chama mesma conserva um enigma: o da vida (BENJAMIN, 2000, p. 14).  
Em um recente artigo, Vera Lins abordou a crítica produzida pelos simbolistas, especialmente a de Gonzaga Duque e Nestor Vitor, percebendo nessa crítica uma “negatividade moderna” exercida no ensaio que desfaz idéias prontas e procura produzir uma nova reflexão com um direcionamento utópico ou heterotópico.
A questão da negatividade, apresentada pela pesquisadora, está intimamente ligada com a negatividade de que nos fala Agamben, justamente por se tratar também de uma inacessibilidade. Se a crítica não desfaz o enigma da arte, como afirma Vera Lins, é porque o objeto lhe escapa. Gonzaga Duque, por exemplo, no texto Salão de 1905, opta por descrever a misteriosa mulher que encontra no salão e não as obras, como seria o esperado. A impossibilidade de alcançar a mulher, como no Trobar provençal, é alegoria da impossibilidade de alcançar a obra na crítica. A jovem, uma espécie de passante baudelaireana, é alegoria da própria arte, figurando como o infinito e o eterno, bem como o contingente e o transitório. O autor de Mocidades Mortas, Horto de Mágoas e Graves e Frívolos parece ter consciência disso, o que o leva a praticar uma crítica que tem consciência da necessidade de garantir a inacessibilidade do objeto. Assim não se trata apenas de considerar que a verdadeira contribuição do simbolismo quanto à apreciação e leitura do texto seria a crítica poética, como defende Cassiana Lacerda Carollo (1981). A não ser que essa crítica poética seja entendida também como materialização de uma negatividade.
O que se percebe na maior parte dos simbolistas brasileiros é que a teoria padece de sistematização; - o que pode não ser tão ruim assim. No entanto, ela passa a ser delineada principalmente nos textos de criação em que “o interesse converge para a discussão de conteúdos e formalizações que devem sustentar a construção do poema” (CAROLLO, 1981, p. 95). A teoria das correspondências de Baudelaire talvez consiga explicar esse acontecimento, pois a concepção de escritura, em sentido lato, para o poeta simbolista não dissocia crítica e criação, o que o leva a problematizar a cisão entre a filosofia e a literatura. Vale lembrar que a maioria dos simbolistas foram leitores de filósofos como Nietzsche e Schopenhauer. É a figura do poeta como pensador e a figura do crítico como alquimista, como dizia Benjamin. Isso ocorre pois a vocação para a analogia, a valorização do símbolo e da sugestão, nesse poeta nefelibata, está relacionada com a figura do poeta como o “tradutor e decifrador de hieróglifos inscritos na natureza, abrindo caminho para os debates da crise da palavra” (CAROLLO, 1981, p. 285) que atinge todos os domínios de escrita. Não seria fortuito observar que esse traço da crítica os simbolistas devem à leitura dos românticos alemães, para quem a crítica é muito menos o julgamento de uma obra do que o método de seu acabamento. Neste sentido, assim como os românticos, eles fomentaram a crítica poética, superando a diferença entre a crítica e a poesia. Benjamin lembra na sua tese sobre o conceito de crítica de arte no romantismo alemão que para os românticos o termo “crítico” significava “objetivamente produtivo”: “Ser crítico implica elevar o pensamento tão acima de todas as conexões a tal ponto que, por assim dizer magicamente, da compreensão da falsidade das conexões, surgiria o conhecimento da verdade” (2002, p. 56). Em Origem do Drama Barroco Alemão, Benjamin observa que a verdade é um conteúdo do belo, no entanto, não aparece no desvelamento, mas em um processo que se poderia designar como um incêndio da obra. No já citado ensaio sobre Goethe, o filósofo defende que “só se completa a obra o que primeiramente a quebra, para fazer dela uma obra em pedaços, um fragmento do verdadeiro mundo (...)” (BENJAMIN apud DIDI-HUBERMAN, 2005, p. 174). Talvez pudéssemos pensar nessa operação como a busca de uma imagem dialética, que Didi-Huberman chamou de “imagem crítica”: “uma imagem em crise”, uma imagem que nos obriga a escrever um olhar, não para transcrevê-lo, mas para constituir-lo (2005, p.172). Didi-Huberman recorre a uma das alegorias de Benjamin para potencializá-la: a imagem de uma constelação face aos corpos celestes que ela organiza e que gera um estado de choque. É a noção dialética dominada em Benjamin por uma função jamais apaziguada do negativo. Didi-Huberman responde ao argumento de Benjamin observando que se as obras inventam novas formas, “que há de mais elegante, que há de mais rigoroso que o discurso interpretativo inventar por sua vez novas formas, ou seja, a cada vez modificar as regras de sua própria tradição, de sua própria ordem discursiva” (DIDI-HUBERMAN, 2005, p. 178-179). A imagem dialética deveria ser entendia, assim, como forma e transformação, de um lado, e de outro, como conhecimento e crítica do conhecimento, sendo, portanto, comum ao artista e ao filósofo (DIDI-HUBERMAN, 2005).
Se a crítica simbolista continuar sendo lida como um mero impressionismo crítico que é insuficiente no processo de análise, a cisão de que nos fala Agamben não será superada, pois de um lado estará o “conhecimento seguro”, personificado nas palavras de José Veríssimo e seus seguidores; e de outro, os imagistas nefelibatas, que segundo a crítica tradicional não fez crítica, mas apenas relato de impressões. O preconceito sofrido pela categoria dos “derrotados”, como Nicolau Sevcenko (1995, p. 103-104) caracterizou os artistas periféricos da belle époque, do qual faziam parte os simbolistas e decadistas, teria como causa, entre outros fatores, a recusa ao academicismo que reinava no período. Nestor Vitor, por exemplo, em um artigo publicado no jornal O Globo, em novembro de 1929, observou que em Gonzaga Duque havia algo de um revel, de um irreverente ao academicismo, aliás como em todo simbolista que se prezasse (1979, p. 244). Essa irreverência migrava para o plano da linguagem, fazendo o crítico adotar um estilo artístico, “cheio de neologismos e de propositadas heresias sintáticas (...)” que seriam estranhas a qualquer parnasiano ou naturalista. 

 Se atentarmos para o fato de que boa parte da crítica produzida pelos simbolistas tinha consciência da inacessibilidade como elemento primordial da crítica, teremos então encontrado, nesses estranhos dandys do século XIX os precursores da boa crítica contemporânea. Tal crítica, a meu ver, consegue garantir justamente a inacessibilidade, com isso conseguindo reinventar a cada passo seus métodos, seus olhares, suas posições, seus abismos. Essa é uma das questões que pretendo continuar estudando, procurando discutir a potência do ensaismo de Nestor Vítor e Gonzaga Duque, por exemplo. 

Caio Ricardo Bona Moreira

A banca examinadora foi composta pelos professores: 
Susana Scramim
Antonio Carlos Santos
Alberto Pucheu
Raúl Antelo
Carlos Capela

A todos, agradeço pela preciosa e inesquecível contribuição.