terça-feira, 18 de setembro de 2007

Paulo Leminski e Quarenta Clics em Curitiba

O projeto do livro Quarenta clics em Curitiba nasceu no final do inverno de 1976. Toninho Vaz lembra que a iniciativa foi do empresário Luiz Henrique Garcez de Oliveira Mello, que fundara a Editora Etecetera e escolhera como trabalho de estréia a edição de um livro de Leminski (2001, p. 191). Jack Pires vinha tirando fotografias da cidade de Curitiba há algum tempo. A idéia era de misturar as fotos com poemas. Para a época, a idéia era inovadora, pois não era comum que poetas realizassem esse tipo de experimentação. Nesse caso, as fotografias exerciam uma outra função, não funcionando apenas como elementos meramente ilustrativos, mas como um fator constitutivo de seu conjunto. Logo, não são as fotos que ilustram os poemas. Ambos dialogam na construção de um terceiro texto, aquele que demonstra que a cidade é feita de imagens e palavras, e o livro é a própria cidade.
Jack Pires era um paulista especialista em fotos do cotidiano. Toninho Vaz lembra o encontro do fotógrafo com o poeta:

(...) certa vez ele apareceu na Cruz do Pilarzinho com dezenas de fotos 18 X 24, que seriam espalhadas pelo chão para permitir um a visão global do material. Leminski buscou uma pasta de poemas no escritório e, junto com Alice, passaria horas selecionando os textos que se identificavam melhor com as fotos (VAZ, 2001, p. 192).

As páginas não foram numeradas, o que criou a idéia de que esse mapa urbano não teria centro, periferia, começo e fim. O livro da dupla saiu um ano depois de Catatau, aquele que seria considerado o texto mais significativo da produção de Leminski. Quarenta clics parece ser uma tentativa de transcender as maneiras tradicionais de dizer. Um estratégia bem sucedida.
Seus poemas aproximam-se muito da forma do haicai, tipo de poesia japonesa muito explorada por Leminski. Os textos podem ser caracterizados como fragmentos.
Roland Barthes dedicou grande parte do curso “A preparação do Romance”, mais especificamente todo o volume 1, na análise da importância do fragmento no processo de criação de um romance. O haicai, fragmento poético por excelência, clic fotográfico verbal, é bastante comentado pelo escritor francês.
A impressão causada por apenas três versos pode ser comparada, mesmo em se tratando de códigos diferentes, à apreciação de uma fotografia. Diz Barthes:

Minha proposta é que o haicai se aproxima muito do noema da fotografia: “Isso-foi " cinema também; mas é uma aproximação mentirosa, que é muito diferente da aproximação mediatizada por um significante heterogêneo, as palavras, portanto não falsa, mas de uma outra ordem de credibilidade. (...) Portanto mina proposta de trabalho é que o haicai dá a impressão (não a certeza: urdoxa, noema da fotografia) de que aquilo que ele anuncia aconteceu, absolutamente (2005, p. 148).

Esse é apenas um dos fatores que aproximam os dois tipos de texto. Outros poderiam ser apontados. A proximidade entre eles pode ser observada também na idéia de que em ambos nada pode ser acrescentado: “(...) o haicai não pode se desenvolver (aumentar), a foto também não, não podemos acrescentar nada a uma foto, não podemos continuá-la: olhar pode insistir, se repetir, recomeçar, mas ele não pode trabalhar (...) (BARTHES, 2005, p. 151).
Na tentativa de conceituar o haicai, deve-se levar em consideração inicialmente que não se trata apenas de escrever três versos – dois deles com cinco sílabas e um com sete. Esse esquema de metrificação nem sempre é seguido pelos escritores. O haicai acabou por sofrer transformações e Leminski é um dos poetas que criaram haicais fora desse esquema tradicional. No dizer de Barthes, o haicai é “a conjunção de uma ’verdade’ (não conceitual, mas do Instante) e de uma forma” (2005, p.52), o que Leminski representa num de seus poemas de Quarenta clics:



1º dia de aula
na sala de aula
eu e a sala
(LEMINSKI; PIRES, 1990)

Os fragmentos, vistos sob esse aspecto da anotação que concatena verdade e forma, almeja representar fortes impressões vividas num determinado instante, imprimindo-as em poucas palavras, como uma espécie de clic fotográfico.
A abertura dos sentidos é um passo importante nesse estado de poesia “estalo”. A imagem agora é a de um homem olhando para uma mulher que olha talvez para lugar nenhum:



isso?
aqui
já?
assim?
(LEMINSKI, PIRES, 1990).

O poeta passa a ser o tradutor desse instante entre o pulo do sapo e o barulho da lagoa – o próprio silêncio. Nesse poema, a foto mostrava uma mulher sentada num banco de praça ao lado de uma sacola de compras :



Domingo
Canto dos passarinhos
Doce que dá pra por no café
(LEMINSKI; PIRES, 1990).

A caminho de um quase-método, a tentativa aqui é de abandonar, pelo menos provisoriamente, as questões históricas e culturais, para perceber aquele lugar onde poemas e fotos se transformam em poesia. Em Quarenta clics, várias fotos podem surpreender, devido a sua capacidade de mostrar as chagas sociais, mas é somente interagindo com o poema que surge aquela faísca citada por Leminski.
O exercício de deixar de lado a cultura, a história, permite que, mesmo momentaneamente, as páginas avulsas possam ser experimentadas em si mesmas.
O que permite abandonar o olhar técnico sobre a fotografia é justamente o “sentimento”: “(...) vejo, sinto, portanto noto, olho e penso” (BARTHES, 1984, p. 39). E é esse olhar que se estende aqui. O pensamento sobre a foto e o poema não pode ser analisado sem olhar para o motivo da escolha: “gostei dessa foto e não aquela”. Essa escolha, portanto, não está distante do sentimento que elas podem provocar.
Uma marca que pode chamar a atenção numa cena captada pela experiência de um fotógrafo que mira todos os horizontes possíveis e que serão captados pela máquina é justamente a espontaneidade do cotidiano, fruto talvez de um “satori urbano”.
O interessante entre esse misturar poemas e fotos, que acontece de uma maneira quase mística, é o elo criado entre o mundo da foto e o mundo da imagem, pois cada um criou seu texto na solidão de quem não sabe aonde esse trabalho chegaria. As fotos parecem indicar para mim um certo apoio mágico para os poemas e estes parecem interferir em meu olhar sobre a foto, como se o poeta, mesmo sem saber, assoprasse um sentido. Buscá-lo só pode ser uma aventura.

REFERÊNCIAS

BARTHES, R. A Câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
______ A preparação do romance I. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
LEMINSKI, P.; PIRES, J. Quarenta clics Curitiba. 2 ed. Curitiba: Etcétera, 1990.
VAZ, T. Paulo Leminski – o bandido que sabia Latim. Rio de Janeiro: Record, 2001.

(Este texto é parte do artigo: "Quarenta Clics em Curitiba: entre a poesia e a fotografia, o Dia do Juízo", publicado originalmente em "FACE em Revista", nº9, em 2006)

Um comentário:

Lorenza Murió disse...

hola, estoy buscando el libro "Quarenta clics em Curitiba" para hacer un trabajo para la facultad, ¿sabes si está digitalizado?
muchas gracias,