quarta-feira, 22 de agosto de 2007

Do pé às estrelas: sobre a exposição de Carlos Kussik

Pé: Substantivo masculino.
Extremidade do membro inferior
abaixo da articulação do tornozelo
e terminada pelos artelhos

O escritor Georges Bataille, no texto O dedão do pé, dizia que o dedo do pé é a parte mais humana do corpo humano. O homem, com a cabeça elevada ao céu, olha com descaso para o pé, como se este estivesse próximo das trevas, e a cabeça, próxima do paraíso. Diz Bataille: “O pé humano é comumente submetido a suplícios grotescos que o tornam disforme e raquítico”. Em algumas sociedades, ao homem não é permitido olhar para o pé de uma mulher. No entanto, não há nada que aproxime mais o corpo do chão do que o pé. Lembrei de Bataille no momento em que visitei a primeira exposição de Carlos Kussik, organizada pela Fundação de Cultura de Porto União, no Castelinho. Curiosamente, foram os pés pintados por Kussik que chamaram a minha atenção. E não foi à toa que tal apreciação me remeteu a outros artistas que fizeram do pé algo mais do que um mero ornamento, um suporte do corpo, um simples pedaço, um suplemento. Em Le modèle rouge, de René Magritte, os pés-sapatos são os personagens principais do quadro.


(R. Magritte) (F. Kahlo) (T. do Amaral)

No Abaporu, de Tarsila, os pés são maiores que a cabeça. Em Lo que el agua me dio, de Frida Kahlo, os pés que estão na parte central do quadro chamam mais a atenção do que as cenas pintadas na superfície da água, na banheira. É claro que a arte de Kussik não é somente pés, é bem mais. As cores de seus quadros, segundo o artista, ganham nova força, dependendo da incidência de luz. E é por valorizar mais a força do que a forma que seu trabalho, ao meu ver, se aproxima significativamente da perspectiva expressionista. E o que vale mais, a forma ou a força? Fico pensando o que diria Monteiro Lobato sobre os quadros de Kussik. Talvez seu trabalho fosse condenado como foi o de Anita Malfatti, na exposição de 1917. No artigo Paranóia ou mistificação?, o autor de Urupês dizia que há duas espécies de artistas. Uma composta dos que vêem normalmente as coisas. Esses fazem arte pura. A outra espécie é formada pelos que vêem anormalmente a natureza. Para Lobato, ela é fruto do cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência. O que Lobato estava querendo era “alfinetar” a arte de vanguarda. Provavelmente, ele não percebeu que a segunda espécie de artistas, na qual encontro Kussik, Di Cavalcanti, Portinari, entre outros, não enxerga anormalmente a realidade. É que a realidade, em si, não é normal. A segunda classe não quer “copiar” o mundo na arte, pois sabe que entre os dois limites há um abismo que os separa. Por isso, está preocupada em construir o mundo na arte. Mais do que pensar a arte como forma, está pensando em arte como força. A realidade só poderia ser pensada por meio da imago (imagem). Essa é a potência de que fala o poeta cubano José Lezama Lima, um escritor apaixonado pela pintura: “A potência ao aplicar-se sobre um ponto ou atuar na extensão, o faz sempre acompanhada da imago, a mais profunda unidade conhecida entre o estelar e o telúrico”. E é na potência dessa coragem, a de transformar o mundo em imagens, unindo cabeça e pés, terra e estrelas, que a arte se reconcilia com a experiência. Bastaria citar o quadro intitulado “730”, de Kussik, para perceber que essa desconstrução da realidade, traduzida na pirâmide de humanos, consegue fazer com que estejamos mais próximos dela. Tudo isso permeado pelo elogio do corpo, como é o caso da valorização dos pés e da figura feminina, constante no trabalho do artista. Outra imagem forte é a de uma mulher que segura o filho desnutrido no colo. Como em Pietá, de Michelangelo, em que Maria segura Cristo, naquele momento apenas um filho. Paradoxalmente, a mulher do quadro de Kussik esbanja uma grande sensualidade. De um lado, a imagem de um mundo destroçado e miserável, do outro, a figura erótica da mãe que, ambivalente, oscila entre um estado de extrema passividade e de efusiva insatisfação. No canto esquerdo, entre a dor e o prazer, a bandeira do Brasil.

(publicado originalmente no jornal Caiçara, 2007)


(C. Kussik)

5 comentários:

disse...

Belo texto. E que bom que foi publicado também num jornal. O trabalho do Cacá deve ser divulgado, ainda mais com um ótimo texto como esse.

As pessoas tinham que aprender a conhecer e valorizar mais os talentos daqui da cidade.

abraço!

Anônimo disse...

se alguém quiser ver alguns quadros do pai, tem uns aqui: http://flickr.com/photos/cakussik/

L. M. de Souza disse...

valeu postar os quadros, eu fiquei curioso mesmo com a sua resenha. e é muito show as pinturas. a tua resenha revela mesmo essa impressão dos pés, e senti uma ponta também de portinari ali. abç

Isaac Nogueira disse...

dae brow, ótimo te ver escrevendo por aqui novamente, tá linkado, e no mais positividade pra todos aí!

Anônimo disse...

Caio, nao sei como me referir a alguem que soube captar e sentir em alguns de meus quadros exatamente aquilo que eu senti, fico feliz em ver que esse trabalho externou um pouco de minha alma, só tenho medo que tenha sido assim tão escancarado. acho que isso é arte, não tem como escapar dessa verdade que se expoe. Quando li esse comentário pela primeira vez fiquei emocionado, principalmente pela sintonia. muito obrigado. grande abraço. Carlos.