quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Chico: entre a música e a literatura... sofrendo de palavras



Há uma tendência na crítica em “planificar” a obra dos artistas que costuma avaliar. O que é lamentável. Na música, quanto mais plural é a produção de um compositor, mais ele é vítima da própria obra, que acaba sendo julgada com base na tradição que ele próprio constituiu para si. Um exemplo: Chico Buarque.

Depois de lançar o requintado disco “Chico”, em julho de 2011, o autor de “Roda Viva”, ou é louvado ou execrado. Marcelo Moutinho, no texto “Chico versus Chico" (Bravo! agosto 2011), observou que a cada novo disco, “um espelho se ergue diante de Chico Buarque”: “Porém, como um Dorian Gray às avessas, é a imagem do artista jovial e engajado da década de 1970 que se reflete no aço”. O crítico ainda escreve: “Nesse confronto consigo mesmo – promovido não pelo cantor, mas por parte do público e da crítica -, o gongo costuma soar rápido: vitória por nocaute do Chico de outrora”. Moutinho foi muito feliz ao levantar a questão.

O público, muitas vezes, acaba imaginando um compositor ideal que, se não for coerente com os procedimentos musicais que lhe renderam os louros, acaba sendo açoitado, como aquele escravo que é o narrador de boa parte da música “Sinhá”, que integra o novo disco. Os ouvintes mais boçais talvez digam: “Chico não é mais o mesmo”. Claro. Concordo. Mas pergunto: Deveria ser diferente? Que artista queremos? Aquele que repetirá sempre as mesmas fórmulas de sucesso, ou aquele que tem um compromisso, antes de tudo, com a sua própria obra, e não com o mercado? Se o Chico produzia um tipo de música na época da ditadura isso não significa que ele deva, depois de 30 ou 40 anos, escrever as mesmas coisas. A liberdade deve ser o princípio constitutivo de toda obra. O mundo mudou e não mudou. A música de Chico mudou e não mudou. É assim com todos os artistas.

Parece-me que a relação entre a literatura e a música, em Chico, está cada vez mais próxima. É o próprio autor que aponta essa aproximação. O narrador de “Querido Diário”, que abre o disco, é um sujeito desterritorializado, que faz lembrar alguns de seus personagens da literatura: “Há algo de incômodo nesse personagem, talvez ele pertença mais ao mundo da literatura que ao da música popular, a exemplo do narrador de O Estorvo. De certa forma, me identifico com tipos assim”, diz Chico Buarque em um depoimento para a Folha de São Paulo (15 de julho de 2011 - Ilustrada). Esse namoro entre música e literatura aparece em vários momentos do disco. Aliás, um outro namoro inspira o novo álbum. Trata-se da parceria entre o autor e Thais Gulin. Basta ouvir a música “Essa pequena”, que tematiza o romance entre o homem mais velho e a mulher mais nova. Aliás, Thais participa do disco, dividindo o vocal de “Se eu soubesse”.


Minhas duas canções prediletas já estão escolhidas: “Sou eu”, cantada com Wilson das Neves, e a já citada “Sinhá”, composta com João Bosco. A primeira é um bonito samba – alegre e engraçado - que repete a parceria entre Chico e Wilson (ambos haviam composto anteriormente Grande Hotel). A música relata a história de um homem que vai com sua amada a um baile, uma gafieira, uma gandaia, seja lá o que for. Ela dança com vários, joga charme para todos, mas o homem está seguro, pois sabe que quem a levará para casa “sou eu”, ou seja, ele.

A segunda merece um comentário mais acurado. Chico e João Bosco já haviam composto uma música a algumas décadas. Voltaram a escrever juntos e assim nasceu “Sinhá”, talvez a canção mais refinada do disco. A canção é narrada inicialmente em primeira pessoa por um escravo que pede clemência ao seu senhor depois de ser flagrado próximo ao açude em se encontrava a “sinhá”, mulher do “sinhô”. O escravo será açoitado por supostamente ter visto a mulher tomando banho nua. O canto é de desespero e mimetiza o lamento dos escravos banzando nas senzalas. A primeira parte da música é executada em acordes menores, com o objetivo de criar um ambiente de lamentação. Em um segundo momento, a fala do escravo dá voz a um outro narrador – talvez o próprio Chico – que confessa ser herdeiro tanto do escravo sarará quando do senhor. Para chamar a atenção para esse outro narrador, Chico cria uma modulação, levando a música para acordes maiores. A belíssima música acaba sendo um retrato do Brasil. Chico é um legítimo Buarque de Holanda. O que seu pai fez no âmbito teórico ele faz na arte.

Lembremos que em “Leite Derramado”, o racismo é tematizado e a questão da mestiçagem também. Mais um elo entre a música e a literatura de Chico. Há um detalhe em "Sinhá" que eu não havia percebido até que um amigo, apaixonado por Chico, apontou-me. Trata-se do pronome de tratamento que o escravo dirige ao senhor. O mesmo pronome é usado de três maneiras diferentes. Inicialmente “vosmecê”, na seguida, “vosmincê”, e, então, “vassuncê”. A transformação não é fortuita. É como se a palavra se modificasse a cada chicotada; como se o vocábulo, como o negro, sofresse e se despedaçasse. É possível que um quadro de Debret traduzisse essa história, colocando mais feijão nessa feijoada. O Chico chegou a falar sobre o assunto no site que criou para revelar os bastidores do disco. Incrível! Aqui a história do Brasil acompanha a história da língua. Mais literário impossível!



c. moreira

veja a letra e o vídeo de Sinhá:
http://letras.terra.com.br/chico-buarque/1932795/

Trata-se de uma transmissão para a internet que foi feita ao vivo há alguns dias do apartamento do Chico, no processo de divulgação do disco.

Um comentário:

...Drika disse...

"Sofrendo de palavras".... e quem nãos as sofre? Falando, ouvindo, calando ou escrevendo... elas tem esse poder =)

Gostei do blog, Caio =)
Bjss!