terça-feira, 2 de agosto de 2011

Vila-Matas de novo! considerações sobre o romance "Se um de nós dois morrer", de Paulo Roberto Pires



André Nigri, no texto “Defunto Brincalhão” (Bravo! junho 2011) afirmou que o romance “Se Um de Nós Dois Morrer”, de Paulo Roberto Pires, é, desde já, um dos romances mais cativantes, engenhosos e bem escritos do ano. Raquel Cozer (Estadão, 27 de junho de 2011), analisando o lançamento do mesmo livro e a proliferação da publicação de “romances de editor” no Brasil perguntou: “O que leva um editor, ciente das dificuldades de vender livros num mercado saturado, a publicar seu próprio romance?”. A meu ver, a importância do livro de José Roberto Pires suplanta o fato de ter sido produzido por um empresário do mercado editorial. Creio que Pires, antes de editor, deve ser considerado como escritor. A leitura, se de um lado pressupõe a inteligência e a curiosidade de um leitor para fatos da vida literária ou da vida do autor, de outro, exige um certo grau de inocência. Blanchot dizia que “a leitura é uma felicidade que exige mais inocência e liberdade do que consideração”. Portanto, lemos o livro porque ele existe e não apenas por ele ter sido escrito por um renomado editor. Devemos ler com inocência e alma aberta. Deixemos de lado a consideração.
A pergunta de Raquel Cozer poderia ser reformulada: “o que leva o ser humano, ciente das dificuldades de vender livros num mercado saturado, a publicar seu próprio romance?”. Mas essa não é uma questão que pretendo desenvolver. Quero pensar o mais recente livro de Paulo Roberto Pires sem levar em conta o fato de ter sido criado por um editor.
Este livro não é um livro de editor. É o livro de um leitor. Do leitor de um leitor, ou seja de um leitor de Vila-Matas. É o livro de um apaixonado, como o de Kelvin Falcão Klein. Aliás, coincidentemente, li o livro de Pires, o de Klein e o “Dublinesca”, de Vila-Matas, quase que simultaneamente. O exercício não foi planejado, mas foi bem curioso, por dois motivos. Primeiro, porque os acasos e os jogos do destino fazem parte do imaginário de Vila-Matas. Encontros inesperados, relações impensadas, transações inauditas, curiosidades, inventadas ou não, são, para o autor, bem mais que fatos fortuitos. Segundo, porque essa leitura quase simultânea permitiu que os textos viajassem no mesmo barco, dialogando entre si e permitindo o intercâmbio de uma experiência literária que diz respeito a um dos grandes escritores contemporâneos. Ou seja, as três leituras permitiram que os três livros ganhassem novos sentidos por meio desse passeio geminado. Não quero compará-los aqui. Já escrevi sobre um deles. Escrevo sobre o outro. E sobre o terceiro talvez nem escreva, quem saberá? Mas há algo que chamou a minha atenção. Os três livros foram publicados no mesmo mês. Terá sido essa uma coincidência daquelas tão caras a Vila-Matas? (“Dublinesca” já havia sido publicado no ano passado na Espanha, mas só agora foi traduzido e editado pela Cosac Naify).



Impressiona-me o fato de Vila-Matas despertar tanta curiosidade em outros escritores a ponto de levá-los a escrever livros que o elevam à categoria de personagem. Esse talvez seja um dos maiores prêmios que um escritor pode conquistar. Mas há algo mais interessante ainda. É o fato de o acontecimento exercitar aquela característica da literatura apresentada por Borges em “Sete Noites”: “A literatura não é esgotável, pela simples razão que um livro não o é. Ele é um ente comunicável: uma relação, um eixo de infinitas relações”.
Certa vez, José Castello, em um belíssimo ensaio sobre Raduan Nassar, intitulado “Segredos Íntimos”, escreveu que “livros não existem para o entendimento, mas para a invenção. Inventamos novas maneiras de ler os mesmos livros. Sobre livros, abrimos outros livros, e nada mais”. A frase cai como uma luva. Ler os livros de Vila-Matas significa abrir outros livros, ler os livros sobre Vila-Matas, como é o caso de Paulo Roberto Pires, significa abrir um livro de outros livros de outros livros de outros livros. Estamos diante do eixo de infinitas relações a que se refere Jorge Luis Borges. Estamos dentro da biblioteca de Babel. Estamos dentro do livro que está dentro do livro que está dentro da biblioteca de Babel que está dentro do livro. Um livro - lembrando da Maria, de Padre Vieira no “Sermão Nossa Senhora do Ó” - é o imenso maior que o imenso, por isso “imensíssimo”. Isso porque dentro do livro está toda a biblioteca. E não se trata de entendê-la, mas de inventar uma forma sempre diferente de lê-la.
André Nigri, apesar de escrever sobre o livro no mesmo espaço que, costumeiramente, Paulo Roberto Pires escreve – na Bravo! (amigos de verdade gostam de falar bem de amigos) – estava certo ao afirmar que “Se Um de Nós Dois Morrer” é um dos grandes livros do ano. Creio que foi até agora um dos melhores livros que li em 2011.


Paulo Roberto Pires

Théo, o protagonista, é um escritor que sofre daquele Mal criado em laboratório (escritório) por Vila-Matas, o Mal de Montano. Sofre do excesso de leituras e da falta de um livro. Trata-se de um distúrbio “lítero-psiquiátrico” que poderia chamar-se “síndrome de Vila-Matas”. Antes de morrer, Théo organiza em envelopes todos os fragmentos de um livro inexistente e incumbe a ex-namorada Sofia de entregar seu “legado de angústias” a Vila-Matas. Pede também algo bem mais esquisito. Que suas cinzas sejam espalhadas por ela em vários pontos estratégicos de Paris. Depois de viajar a França e entregar os restos mortais do escritor quase desconhecido aos ares da capital do século XIX, Sofia inicia a busca de Vila-Matas.
Entre o recebimento das instruções e o desfecho do livro, deparamo-nos com belíssimas ilustrações, com os fragmentos desse material inédito - que inclui cartas, apontamentos, confissões – com os passos de Sophia. Os textos de Théo, ao contrário do que poderiam parecer em um primeiro momento, não tornam o livro enfadonho. Pelo contrário. São eles que impulsionam aquele deslocamento narrativo tão presente nos livros do próprio Vila-Matas. “Doutor Pasavento” talvez seja um bom exemplo.



Em um livro que trata da busca do desaparecimento o que vemos é justamente o contrário, nada desaparece. Pasavento está fadado a não desaparecer, sua escritura também. O livro é um dos mais longos do escritor. Tudo aparece, as ruas de Paris, os hotéis, a Patagônia argentina, Robert Walser, a literatura. As divagações do narrador são tão interessantes quanto o enredo do livro. Trata-se de um deslocamento narrativo, como falamos, que, mesmo sendo, às vezes, demasiado longo, não faz da leitura um fardo que lamentamos carregar. É assim como os “pedaços de obra” que compõe a pasta literária de Théo. Nela, encontramos, por exemplo, “Treze instruções para Montano (e para mim mesmo)”; “A arte de abandonar livros”; projetos abortados; cartas; diários de Paris. Vila-Matas bem poderia aproveitar esses “restos” e fazer deles uma obra. Ou não. Poderia apenas constatar que o Mal de Montano e o Mal de Bartleby atinge mais pessoas do que parece. Diz Théo em uma carta dirigida ao autor de “Dublinesca”: “Você não tem o direito de tornar tudo isso seu, de beber a minha bebida, de beber até demais, de dedicar seus livros a Paula, de ter uma Paula como a personagem principal do único livro que publiquei, o único que saiu destes dedos sem o medo de fazer o já feito, de ser afogado pela falta de originalidade do mundo. E que mesmo assim naufragou, ainda que no reconhecimento dos críticos”. Théo odeia Vila-Matas (o que talvez não seja muito diferente de amá-lo). A relação de um leitor-escritor com sua influência pode ser de amor e ódio, de admiração e inveja. Somos todos um pouco donos daquilo que amamos. Sempre achei amor de fã um dos mais passionais da humanidade. Se de um lado a literatura de Vila-Matas lega a Théo uma maldição, a do escritor afogado pela falta de originalidade do mundo – como escrever aquilo que seu mentor já escreveu? -, por outro, é ela que permite a existência do livro, mesmo que imaginário, o livro virtual pressuposto pelo conjunto de fragmentos. Sem Vila-Matas, quem seria Théo?

Os relatos de Théo são pulsações vivas de um morto. Como em “Trapo”, de Cristóvão Tezza, em que um jovem poeta – “marginal, solitário, apaixonado e suicida” – lega ao mundo um envelope com a obra que nunca publicou. O material chega às mãos de um professor aposentado (se não me falha a memória de Linguística), por meio da dona da pensão onde o jovem morreu. Aos poucos, o professor vai mergulhando no universo de Trapo, sendo transformado pela sua presença – ausente - nos textos. É o que acontece com Sophia, no livro de Pires. Ambos os livros são retratos de dois mortos, de dois suicidas, de duas escritas que poderiam ter sido e não foram... mas que são. Nada mais justo do que celebrar a vida que se depreende de seus textos.

c.moreira

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