Michel Foucault, no texto “Por Trás da Fábula”, observa que em toda obra narrativa é preciso distinguir fábula e ficção. A fábula se refere ao que é contado, episódios, personagens, funções que eles exercem na narrativa. A ficção, por sua vez, está ligada aos diversos regimes segundo os quais ela é narrada. Ou seja, a fábula está diretamente ligada ao que é contado; a ficção, ao modo como se narra, aos procedimentos de escrita. Assim como a fábula está ligada à cultura, a ficção está ligada à língua. Foucault ainda observa que nenhuma época utilizou simultaneamente todos os modos de ficção que podem se definir no abstrato: “deles se exclui sempre alguns que são tratados como parasitas; outros, em compensação, são privilegiados e definem uma norma”. Essas observações talvez nos ajudem a pensar melhor o livro “Conversas apócrifas com Enrique Vila-Matas” (2011), de Kelvin Falcão Klein, publicado recentemente pela editora Modelo de Nuvem. Vejamos.
Já no início do livro o autor (usemos ainda essa palavra alegro ma non troppo) afirma: “Este livro foi construído de forma parasitária”. Se por um lado essa forma está ligada ao fato do livro nutrir-se daquilo que absorve de outros livros, “lendo as leituras que esses livros fizeram de outros livros ainda mais distantes”, por outro, está ligada à noção de “ficção” apresentada por Foucault. É parasita porque se aloja no texto do outro, ou melhor, porque aloja o outro, antropofagicamente, em si. Os limites se embaraçam. As fronteiras se diluem. E é parasita, no sentido foucaultiano, porque trabalha com restos, aparas, produzindo um bazar de variedades, um armazém de pegadas: “Em toda escritura há sempre um resto, algo que não é digerido e que deve ser retomado inúmeras vezes, e que, retornará sempre, oscilando na lacuna que define a diferença e a repetição”.
As duas formas parasitárias, a de Foucault e a de Kelvin Klein, penso, estão intimamente ligadas. O “autor” das Conversas Apócrifas coloca mais um tijolo na construção literária, quase gaudinesca, de Enrique Vila-Matas. Ou melhor, coloca mais combustível na máquina mitológica desse escritor catalão, doente de literatura. Isso por que ele não fala “de fora” daquilo que pretende analisar (a própria noção de análise, aqui, entra em torvelinho, pois estamos diante de uma traça que ao roer as páginas de um Livro, re-traça, recorta, reinventa).
A palavra análise vem do grego “análusis”, quer dizer dissolução, método de resolução. O verbo “analúo” significa desligar, dissolver, soltar, separar. Pressupõe a separação de um todo em seus elementos, o estudo pormenorizado de cada parte de um todo. A expressão parece estar ligada a uma tradição hermenêutica que, segundo Vicent Jouve, guarda para a leitura o princípio de coerência, já que acredita ser possível relacionar a obra com uma intenção, uma origem, que garante sua unidade de sentido. Herméneutikos significa “fazer conhecer”, “traduzir”, “interpretar”. O procedimento de escrita, praticado por Klein parece estar distante desses princípios, filiando-se muito mais a um procedimento de desconstrução que, ao invés de procurar uma coerência, pode se preocupar em “jogar com as oposições e contradições de um texto”. Não há interpretação, mas interferência. As traças de biblioteca não sobrevivem fora dos livros.
O desconstrucionismo derridiano, nas palavras de Jouve, inaugura uma leitura disseminadora e centrífuga. Barthes, que aliás é citado algumas vezes no livro de Klein, percebeu com inteligência que “interpretar um texto não é dar-lhe um sentido (mais ou menos fundamentado, mais ou menos livre), é ao contrário apreciar de que plural é feito” (S/Z). É exatamente esse tipo de perspectiva que parece se depreender do texto caleidoscópico de “Conversas Apócrifas”. Kelvin consegue trilhar o caminho que vai da obra ao texto, do autor ao leitor apaixonado, passando por uma escrita que torna impossível a existência de uma estabilidade discursiva. Estamos diante de um ensaio – se é que ainda possamos conferir aqui um gênero - que toma a crítica e a criação como um par indecidível. A primeira parte do livro poderia figurar como um sub-capítulo de sua tese acadêmica.
Interessa-lhe perceber de que plural é feito o(s) texto(s) literário(s). Trata-se de mergulhar o olhar em uma “galáxia de significantes”, para usar ainda uma expressão de Roland Barthes, devolvendo um novo uso aos objetos profanados. É claro que aqui estamos diante de uma profanação da profanação. Não é à toa que Francine Weiss, no texto Longe do Sagrado (jornal Rascunho, junho/2011), tenha percebido que o resultado obtido por Klein não aspira ao autêntico, “do que pode ser chancelado pela univocidade do divino”. Vale lembrar que apócrifos são os textos que apesar de pleitearem um caráter de sagrado, não são aceitos como canônicos. Isso porque o que está em jogo é a sua autenticidade. Os dois sentidos, o da autenticidade posta em corda bamba e o da marginalidade instaurada pelo seqüestro do sagrado, fazem do livro de Klein uma interessante máquina de produzir deslizamentos e erupções que abalam os limites entre o ficional e o não-ficional. De um lado, o gênero “entrevista” é posto em xeque – as conversas são montadas e remontadas a partir também de fragmentos dos livros de Vila-Matas - de outro, o projeto intelectual passa a ser entendido como algo que “só se realiza quando está disperso, quando aponta para várias direções, quando está disseminado”.
Kelvin é aquele que monta por meio do conhecimento e da imaginação. Por meio do caos e da experiência. E esse procedimento não está implícito em seus jogos de cena, mas é afirmado pelo próprio escritor: “Este livro também se posiciona na perspectiva de que, no mundo da palavra, não há nada de próprio ou exclusivo, somente recorte ou montagem”. Em outro momento: “A literatura estranha do presente captura o que está dado, o que está entregue como mercadoria corrente, e, a partir disso, faz montagem”. O que demonstra que não estamos apenas diante de um livro sobre Vila-Matas. Trata-se de um livro com Vila-Matas.
Kelvin produz fissuras, repetições, diferenças, cortes, costuras, armando um discurso tão parasitário quanto aquele exercitado pelo entrevistado. Para isso, ele mimetiza (no melhor sentido da palavra) os procedimentos de escrita do autor de Dublinesca, procedimentos que levam adiante a escrita vertiginosa com a qual decidiu con-versar. Francine Weiss, no artigo já citado pergunta: O entrevistador reduplicaria em seus apócrifos, o projeto ficcional de seu mentor? Creio que sim. O livro poderia funcionar como nota de rodapé da obra de Vila-Matas, ou é a obra de Vila-Matas que recheia as notas dessas Conversas Apócrifas? Para chegar a esse resultado, Kelvin pagou um preço. Transformou-se em um doente de citações, como Montano. Suas conversas estão "recheadas" de falas alheias. Se elas iluminam ou escurecem nossa leitura de Vila-Matas, aí é outra história.
O livro explora com criatividade os procedimentos que são recorrentes nos livros do homenageado, o esfumaçamento das fronteiras entre criação e crítica, entre leitor e escritor, entre leitura e escrita, entre o original e a cópia, entre a morte e a vida do literário, entre a saúde e a doença da escritura. Por trás da fábula, das conversas apócrifas, do chiste, dos jogos armados por um hábil admirador, há uma séria brincadeira que nos permite ler o livro de várias maneiras. Como fábula, como ficção, ou mesmo como ficção da ficção, a mais pura verdade.
Kelvin Klein, assim como Vila-Matas, faz antropofagia por meio da amizade. “Amigos” é o título da primeira sessão das entrevistas: “Eu deixo o outro viver em meu texto para que ele se transforme, efetivamente, em uma parte de mim, sem que perca, com isso, suas feições”. Aqui, Kelvin é Vila-Matas. E não é também. Ser amigo é ceder lugar ao outro em si. É fazer de si o outro e vice-versa. Para Agamben, no texto “O amigo”, o termo “amigo” pertence “àquela classe de termos que os lingüistas definem como não-predicativos, isto é, termos a partir dos quais não é possível construir uma classe de objetos na qual inscrever os entes a que se atribui o predicado em questão”. Se a amizade não é uma propriedade ou uma qualidade de um sujeito, isso se dá por que ela é a instância de um “com-sentimento da existência do amigo no sentimento da existência própria”. A amizade, por si, já seria a denominação dessa política da “condivisão”. Não se trata, como sugere Agamben de afirmar uma intersubjetividade, mas de aceitar o amigo como “um outro si”. Essa amizade se materializa no livro a partir do ready-made, assimilado pelo autor por meio principalmente das leituras de Vila-Matas, em Vila-Matas. E é aqui que as fronteiras se tornam mais rarefeitas ainda. Isso por que, se a escrita de Vila-Matas produz leituras de leituras, o livro de Kelvin exercita amorosamente a leitura de uma leitura de uma outra leitura. Ou como ele mesmo diz, o livro é um “longo inventário das evidências da sedução ativa de uma série de textos sobre o leitor”.
Voltemos ao ensaio de Foucault. Para ele, depois que novos modos da ficção foram admitidos na obra literária, “linguagem neutra falando sozinha e sem lugar, em um murmúrio ininterrupto, palavras estranhas irrompendo do exterior, marchetaria de discurso, cada um tendo um modo diferente), torna-se novamente possível ler, de acordo com sua arquitetura própria, textos que, povoados de discursos parasitas, teriam sido por isso mesmo expulsos da literatura”. É o que essas Conversas Apócrifas afirmam: a possibilidade de continuar lendo.
(Perdoem-me por este texto meio parasita)
Obs: Esse meu texto é intitulado Jogo de Cena numa franca alusão a um dos curiosos trabalhos de Eduardo Coutinho. Quem se atreve a enxergar em seu filme os discursos parasitas de Kelvin? Ou vice-versa?
c.moreira
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