segunda-feira, 10 de setembro de 2012
breves apontamentos sobre "História e Narração em Walter Benjamin", de Jeanne Marie Gagnebin
Na introdução de História e Narração em Walter Benjamin, Jeanne Marie Gagnebin relembra a aventura de Ulisses na viagem-escritura de Odisséia. Observa que a narração do herói estaria atravessada por dois grandes gestos praticamente paradoxais: de um lado, a necessidade de Ulisses retornar a sua casa; de outro, a necessidade de diferir esse retorno para poder viver a Odisséia e realizar o relato. A narração ocidental se constituiria a partir da rememoração, da “retomada salvadora pela palavra de um passado que, sem isso, desapareceria no silêncio ou no esquecimento”. Narrar seria, assim, uma forma eficaz de lutar contra o esquecimento, contra a morte. É esse elo que parece aproximar a literatura da história. Ambas são movidas pelo ímpeto de narrar com o objetivo de não esquecer. Gagnebin lembra que ainda hoje literatura e história enraízam-se no cuidado de lembrar. No entanto, nem por isso a narração deixa de ser atravessada pelo esquecimento, pela morte: “esquecimento que seria não só uma falha, um branco de memória, mas também uma atividade que apaga, renuncia, recorta, opõe ao infinito da memória a finitude necessária da morte e a inscreve no âmago da narração”. Curiosa questão: Na morada de Calipso, Ulisses esquece. Em outra passagem, Ulisses dorme, enquanto os tripulantes abrem a bolsa de Éolo, provocando a tempestade. Assim, não podemos deixar de considerar que desde a origem da narrativa ocidental, memória e esquecimento formam os dois lados de uma só moeda, ou o mesmo lado de duas moedas diferentes. Jacyntho Lins Brandão observa que as Musas, filhas de Mnemosyne, são também filhas do esquecimento: “Se as Musas fossem só memória, sem o esquecimento e a pausa, não deixariam de ser o mesmo que representam as Sereias e acabariam por tornar-se fatais. Ora, ao unir-se a Memória a Zeus, mesclando-se com ele, na própria lógica da metáfora sexual, introduz-se nela algo diferente, algo que, tratando-se de uma divindade cujo nome revela um atributo unívoco bem estabelecido, só pode ser não-memória. As Musas, portanto, não são exclusivamente memória, mas memória e não-memória (expressa esta última como esquecimento, pausa)”.
O fato é mote para Gagnebin começar a pensar em uma série de questões abordadas pelo filósofo Walter Benjamin. Noções como a de origem, original, tradução, alegoria, morte e modernidade fazem parte do labirinto construído pelo autor de Origem do Drama Barroco alemão, livro aliás fartamente discutido no estudo de Gagnebin.
A idéia benjaminiana de “salvação” percorre o texto de Gagnebin, que a todo momento não se esquece de lembrar de esquecer. Se por um lado a idéia de “salvação” pode ser lida como uma fidelidade ao passado, isso não significa que represente uma infidelidade ao presente. Esquecer pode representar uma “resposta ativa ao apelo do presente e à promessa do futuro”. Por isso, não devemos ver em Benjamin a figura do arqueólogo que escava apenas para colecionar fósseis, trapeiro da memória, para lembrarmos de um dos poemas de As Flores do Mal, de Charles Baudelaire. Como ele mesmo (Benjamin) disse em um dos fragmentos de Rua de Mão Única, no ato de uma exploração cuidadosa, se ilude quem só faz o inventário dos achados, não sabendo assinalar no terreno de hoje o lugar no qual é conservado o velho. A contribuição do filósofo parece ser a de demonstrar que as verdadeiras lembranças devem proceder informativamente menos do que indicar o “lugar exato” onde o investigador se apoderou delas. Talvez por isso a opção de Benjamin pela alegoria. Em uma das passagens de seu ensaio sobre Goethe, “As afinidades eletivas”, ele contrapõe a figura do Comentador, que seria uma espécie de químico, interessado apenas na composição dos objetos, ao Crítico, uma espécie de alquimista, interessado na vida que há nesses mesmos objetos. E se o símbolo pressupõe um fundo, um referente apaziguador, a alegoria prefere os sustos, a transformação, a reinvenção da própria história, da própria narração.
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