quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Daniel Galera e o livro ensopado de crítica


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De todos os livros do Daniel Galera que li, “Barba Ensopada de Sangue” foi o que mais me chamou a atenção. Seguido de “Cordilheira”, este parece ser o seu romance mais bem acabado. Em apenas um mês depois de ser lançado (novembro de 2012), já recebeu o elogio reverencial de muitos jornais e revistas, chegando a despertar o interesse em países como Alemanha, Estados Unidos, Inglaterra e Itália, que compraram os direitos de publicação. Um longo trecho do romance foi apresentado na Granta, uma revista norte-americana dedicada a ficcionistas brasileiros.

Curiosamente, na mesma semana em que ganhei o livro, encontrei ao acaso num lapso de apenas um dia, três críticas a ele dedicadas. Uma na Cult, e as outras na Piauí e na Bravo! (Isso sem contar as inúmeras que ainda não vi). Protelei a leitura das resenhas com a finalidade de alcançar antes disso o ponto final de “Barba Ensopada de Sangue”. Independente do livro já ser considerado um clássico por boa parte dos críticos que escreveram sobre ele até agora, eu o leria, porque desde que me debrucei sobre “Até o dia em que o cão morreu” apreciei o estilo oscilante, entre o direto e o indireto, que caracteriza a prosa de Galera. Há algum tempo venho chamando a atenção dos meus alunos e dos meus amigos para o trabalho deste jovem escritor gaúcho, discípulo das oficinas de literatura de Luiz Antonio de Assis Brasil.

Apesar de todo o meu interesse pela obra de Galera (ele tem quase a minha idade), confesso que me senti um pouco perturbado com a quantidade de comentários que vieram à tona com seu novo livro. Como disse, encontrar um artigo no mesmo dia, sobre o mesmo livro, em três grandes revistas nacionais me fez lembrar imediatamente da conhecida frase de Nelson Rodrigues, “toda unanimidade é burra”. É claro que ela não vale para o talento de Galera, mas admito que me incomodou o fato de concentrarem o olhar com veemência em um mesmo livro no momento em que outros bons escritores estão publicando no país. A também gaúcha e grande escritora Veronica Stigger, no mesmo fim de ano (antes do Especial do Roberto Carlos), lançou o livro “Delírio de Damasco” e até agora não recebeu nenhuma atenção por parte da grande mídia. Terá sido pelo fato do livro sair pela “Cultura e Barbárie”, pequena grande editora da ilha de Florianópolis? Se fosse pela Companhia das Letras, teria sido diferente?

O fato de Galera despertar tanto a atenção me fez pensar: o que o livro tem de tão bom?

Eu já estava na página 128 das 422 e ainda não tinha encontrado a resposta para a pergunta. O fato do escritor arriscar mais de 400 páginas em uma carreira que nunca passou das 180 demonstra que está buscando alguma coisa realmente diferente. É claro que a questão pode ser pensada de outra maneira. Talvez não se trate de um objetivo que se propôs a cumprir, mas sim uma necessidade singular deste e não daquele livro. Como se o livro pedisse um tamanho e não outro. É assim com outros escritores. Guimarães Rosa, por exemplo, começou com narrativas menores até chegar no Grande Sertão, para depois disso voltar a escrever narrativas menores, chegando aos atos mínimos narrativos de Tutaméia. Aliás, o pesquisador italiano Ettore Finazzi-Agrò já tinha chamado a atenção para esse fato curioso na obra de Guimarães. A quantidade das páginas de “barba ensopada de sangue” não é um problema. Até aquilo que aparentemente é acessório faz sentido, contribuindo para dar uma densidade à obra que parece ter o tamanho exato, nem uma página a mais nem uma a menos.

Depois da metade do livro, comecei a ser absorvido pela narrativa. Antes disso, já tinha percebido que o livro tateava e lapidava com grande presteza sua prosa narrativa, alternando dois níveis de escrita, como apontou barthesianamente Francisco Bosco: “A um tempo engenhoso e desprendido, alternando entre o grau zero e o alto grau da escrita, um romance de aventura e mistério sobre a tenacidade dos homens, dos animais e da natureza”. No entanto, depois da metade, o autor parece caminhar com mais segurança pela trama, ou talvez sejamos nós que começamos a passear com maior intimidade no universo do livro.

                                              (foto publicada na revista Piauí (novembro 2012)

Muitas coisas me chamaram a atenção na obra. Gostaria de apontar algumas aqui:

- A ternura presente no contato do protagonista com a cachorra Beta, herdada depois que seu pai se suicidou. O pai, que comunicara ao jovem suas intenções de praticar a ação nefasta, havia pedido que o jovem sacrificasse o animal depois do suicídio, o que não aconteceu. Mario Sergio Conti, no ensaio “A hora e a vez do homem sem nome”, publicado na revista Piauí (Novembro de 2012), observou que desde Vidas Secas “um cão não tinha tanta proeminência num romance nacional”.

- Galera equilibra com eficiência as ações do livro, as reflexões do protagonista, e as descrições minuciosas da paisagem praieira de Garopaba. Nesse sentido, está interessado tanto nos fatos contados quanto nos procedimentos de escrita, agregando a eles a dimensão da lenda, que gira em torno do desaparecimento do avô naquela praia há algumas décadas. O acontecimento lhe fora contado pelo progenitor. É em torno desse mistério que gira o seu enredo, mas não é só ele o responsável pela qualidade do livro. O fato de produzir descrições bastante poéticas e minuciosas da praia faz com que o livro ponha em funcionamento uma espécie de “realismo íntimo”, para usar uma expressão de Karl Erik Shollhammer. No artigo “Barbas de Molho”, publicado na Cult (novembro 2012), o pesquisador escreve que Galera cria “um realismo peculiar e sensível pela densidade que consegue dar ao cotidiano sem excessos de gordura descritiva”. Trata-se de um realismo íntimo, em que “a intimidade não provém dos sentimentos nem das meditações psíquicas e diálogos interiores do protagonista senão da precisão descritiva dos cenários escolhidos e da empatia que sempre expressa com os humores do personagem”. Ainda sobre os procedimentos de Galera, vale lembrar de uma questão que faz de “Barba ensopada de sangue” um livro que merece ser lido. Galera articula com eficiência três outros caminhos, já apontados pelo crítico Vinícius Jatobá, em “Prosa Suja” (Bravo – Novembro 2012): “o caminho investigativo, em que o protagonista busca respostas para o desaparecimento do corpo do avô; o intimista, que tenta desvendar a mente alheia e fugidia do protagonista, revelada conforme ele encontra outros personagens; e o da narrativa de costumes, em que o cotidiano da cidade, com seu tempo moroso, é dissecado”. Misturar todas essas coisas sem perder o “fio da meada” é algo que faz de Galera um dos grandes jovens escritores do país. Talvez a influência da literatura de língua inglesa não seja fortuita em sua obra, que é também a de um tradutor (recentemente, Galera publicou uma tradução de David Foster Wallace).

O romance é sobre muitas coisas e sobre nenhuma ao mesmo tempo, como nenhum é o nome do protagonista (quero dizer, ele não é nomeado), como nenhum é o rosto do qual ele se lembra (O protagonista sofre de uma doença rara em que o rosto das pessoas nunca é memorizado). O livro é sobre a reinvenção de um homem, sobre a perda do amor, sobre o valor da amizade, sobre o amor por um cão, sobre a busca sem sentido das origens, sobre a relação do homem com o mundo, sobre as transformações de si oriundas de uma busca, sobre uma nova vida em uma outra cidade, sobre o arrependimento e o perdão, sobre o acerto de contas com o passado, sobre a consciência trágica da morte. Sobre outras coisas mais. E sobre nenhuma ao mesmo tempo. É por essas e outras que o livro me chamou tanto a atenção. Mas ainda preciso de um tempo para saber a dimensão exata das minhas impressões (isso aqui são só impressões: acendamos uma vela à crítica impressionista). Não é o melhor romance brasileiro da década, mas com certeza é um deles.

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