Que poemas ainda podemos escrever em
nosso tempo? Que livros de poesia ainda temos tempo de publicar? Que pode ainda
o poeta em seu tempo de poetar? Que vida é aquela que vemos no avesso do tempo
do verso? Que tempo teima tanto e ainda na poesia?
Os poemas que integram o livro "Na
franja dos dias" (7 Letras, 2012), de Marcelo Sandmann, estão manchados de tempo. O próprio
título assume o seu traçado. Que tempos manchados são esses? As manchas,
sabemos, possuem muitos sentidos. Seja como uma obra do acaso ou fruto de uma
ação planejada, elas inserem sempre uma diferença. Com o tempo, as manchas do
corpo ou das roupas, ou mesmo aquelas do café derramado sobre o papel, ganham
uma tonalidade nova e, à medida que os dias correm, vão passando de uma cor a
outra como que esboçando uma outra semântica, uma outra sintaxe. Barthes, em A Câmara Clara, definia o punctum como picada, pequeno burado, pequeno corte, mas
também como pequena mancha, ou seja um lance de dados. Se o punctum é um pequeno
detalhe que chama a atenção, aquilo que atinge o olhar, inserindo uma diferença,
poderíamos tratar as manchas de Sandmann como pontos, pequenas imagens, que nos
olham à medida que as olhamos, como o mar de estrelas no teto, pés bonitos nas
sandálias, o brilho daquela janela, o cheiro de éter no corredor, ruídos de
talheres no apartamento contíguo, um sonho lúcido sem mácula, WTC ainda não
construído. Outras manchas são filhas do tempo e do espaço: um soneto que volta
estropiado como ruína, o poeta suicida servido ao molho pardo, Dalton, Catulo,
Leminski, Marcos Prado, Zappa, etc.
A ação do tempo faz da mancha uma marca
que é vestígio de algo que passou. O isso-foi de que nos fala ainda Barthes, como nas fotografias. Como ruína de outro tempo, a mancha é
também a prova de que o passado pervive de alguma forma no corpo, na roupa, no
papel. Apagar a mancha, alvejá-la, nunca é destruí-la, mas apenas obliterá-la,
ou agir sobre sua cor, dando-lhe outra. Tapa-se a mancha (tatuagem) com outra
mancha. Sobre poemas, escrevemos outros poemas. E só!
No livro de Sandmann, o interesse pelo
tempo aparece antes mesmo dos textos em uma pequena e curiosa nota
"explicativa" que antecede o sumário, e cuja autoria nos é vedada:
"Com este seu terceiro livro - rebatizado Na franja dos dias para trazer à tona um de seus temas principais,
o tempo que nos foge - e trazendo sempre o inesperado na ponta da língua (ou do
lápis), Marcelo Sandmann confirma a sua trajetória como um dos poetas mais
originais da atualidade". O tempo foge, mas as manchas, os rastros, as
pistas perduram.
Como em um fenômeno da mancha cega, as
imagens da tradição, nos poemas de Sandmann, são fantasmáticas. São ruínas que
sobrevivem, marcando a passagem do tempo, bem como a sua suspensão, um evento que faz do poema um corpo entre
corpos, um tempo entre tempos, um incidente ou uma singularidade. Escrever hoje
é retraçar, é recortar, fazer cut-and-past.
É o que Sandmann demonstra no poema "Rua Real Grandeza (compacto
simples)", sobre Jards Macalé e Waly Salomão, a partir de versos
"recortados" de canções da dupla. Como não lê-lo sem ouvir a
dissonância produzida pela junção dos fragmentos musicais? Quem conhece as
músicas, inevitavelmente, relembra suas passagens tendo a impressão de ler e
ouvir ao mesmo tempo o poema de Sandmann e
as canções de Waly e Macalé, bem como visualizar um quadro intersemiótico
cubista por excelência: "vou-me embora, embromadora / vou tomar aquele
velho navio / se me der na veneta, eu vou // oh! sim, eu estou tão cansado /
anjo exterminado / sou um cara sem saída (...)". Trata-se de um im(puro)
movimento dialético (poético).
Já não podemos dizer se as letras musicais, aqui, são
manchas no poema, ou se as canções foram por ele manchadas. Aliás, este é
apenas um dos poemas que estão interessados no universo musical. Sandmann, que
além de professor e poeta é também compositor, faz da música uma órbita sobre a
qual se move o livro. No entanto, a música não inspira apenas temas para os
poemas, pois estamos diante de uma obra - ou álbum - cuja linha está sustentada
também pela musicalidade. Diz, ainda, a já citada nota "explicativa": "Não
se engane o leitor: aqui ele vai encontrar muito mais do que poesia. O título
original, Allegro ma non troppo (lira dos
cinquent'aninhos), dá algumas pistas da musicalidade que conduz o andamento
da leitura, bem como do toque de humor que tempera as riquezas vocabulares e
temáticas, desconstruindo as profundezas poéticas (ainda assim presentes) em
fluências que cabem até numa conversa de bar".
©iStockphoto.com/Renee Lee
Penso que é no diálogo interessante e inteligente com a tradição que se encontra o seu teor de presente. Seu universo é da ordem do "inatual", para usar uma expressão de Agamben, ou de Alberto Pucheu lendo Antonio Cicero. Vale lembrar que Cláudio Daniel, no prefácio da antologia de poesia contemporânea Na Virada do Século, observa que a poesia do presente não pretende exorcizar o passado, "com furor iconoclástico", nem praticar a "necrofilia dos gênios tutelares/tumulares". A principal característica de nossa in(atual) poesia seria a de produzir uma "conversa inteligente entre poéticas de diferentes tempos históricos". Giorgio Agamben, no ensaio O que é o contemporâneo?, com outras palavras, mas em um sentido semelhante, escreve: "Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e aprender o seu tempo". Marcelo Sandmann ouve Padre Vieira assoprando em seu ouvido: "Há que se estar apartado dos olhos para poder ver".
Re-ler é também manchar um corpo,
inserindo nele outros tempos, outros compassos, outras marcas, outros ritmos. Para
conquistar essa potência só mesmo vivendo um sonho lúcido.
Penso que um dos poemas do livro, intitulado "Salomé Revisitada (sexta-feira 13)", podemos encontrar a materialização desse procedimento de leitura criativa da tradição e mais especificamente de uma ideia que fazemos da modernidade. Diz o texto: "Quando adentrou / o recinto do rei, // trazia nas mãos / uma bandeja, // e na bandeja / minha cabeça // o coração / enfiado na boca // e os cabelos guarnecidos / de cerejas." O poema parece estar atravessado por uma linhagem da poesia moderna - e mais especificamente por aquela que inaugura uma certa modernidade - na qual o poeta abre mão de sua cabeça como forma de sacrifício. Abrir mão de sua cabeça no sentido de produzir uma despersonalização, tal como a discute Hugo Friedrich, em "Estrutura da Lírica Moderna", ao propor uma reflexão sobre o conceito de poesia para Edgar Alan Poe, Charles Baudelaire, Fernando Pessoa, Rimbaud, entre outros.
Penso que um dos poemas do livro, intitulado "Salomé Revisitada (sexta-feira 13)", podemos encontrar a materialização desse procedimento de leitura criativa da tradição e mais especificamente de uma ideia que fazemos da modernidade. Diz o texto: "Quando adentrou / o recinto do rei, // trazia nas mãos / uma bandeja, // e na bandeja / minha cabeça // o coração / enfiado na boca // e os cabelos guarnecidos / de cerejas." O poema parece estar atravessado por uma linhagem da poesia moderna - e mais especificamente por aquela que inaugura uma certa modernidade - na qual o poeta abre mão de sua cabeça como forma de sacrifício. Abrir mão de sua cabeça no sentido de produzir uma despersonalização, tal como a discute Hugo Friedrich, em "Estrutura da Lírica Moderna", ao propor uma reflexão sobre o conceito de poesia para Edgar Alan Poe, Charles Baudelaire, Fernando Pessoa, Rimbaud, entre outros.
Poema e ilustração do simbolista Jonas da Silva sobre Salomé para o livro Ulanos(1902).
No desenho, a cabeça do próprio poeta é servida em um prato,
como em um ritual de sacrifício, ou de abandono de si para o surgimento do outro. Ecos de Rimbaud: "Je est un autre"
No desenho, a cabeça do próprio poeta é servida em um prato,
como em um ritual de sacrifício, ou de abandono de si para o surgimento do outro. Ecos de Rimbaud: "Je est un autre"
Com o advento da modernidade (refiro-me a uma modernidade específica, como aquela do século XIX, oriunda da Segunda Revolução Industrial) a poesia deixa ser entendida como linguagem em estado de ânimo. Não estamos mais diante da embriaguez do coração, mas da construção sistemática de uma arquitetura. O poeta passa a ser um operador da língua, um operador de própria tradição (o poeta reinventa a própria tradição, no sentido borgeano), ou seja, é também o operador de uma máquina de produzir imagens. Abrir mão da cabeça, dessa maneira, equivale também a adotar uma outra experiência poética, abandonando uma ideia de literatura entendida como expressão de um sujeito. Sandmann é nesse sentido um fingidor. Feito um João Batista curitiboca (a expressão é carinhosa), entrega a cabeça como forma de redenção. Qualquer semelhança com a capa das revistas do grupo Acephale, liderado por Bataille, não é mera coincidência.
Abrir mão da cabeça significa compreender que a literatura nasce da morte e da sobrevivência da tradição. Nasce também para devolver vida para os mortos, como Sandmann fez com Sá-Carneiro. Para César Aira, a literatura nasce do abandono. Devemos abandonar para poder criar. No entanto, o próprio abandono deve ser abandonado, o que significa que ser inatual é ser contemporâneo. Mr. Sandmann sabe. Todas essas questões nos levam a vislumbrar um diálogo muito sugestivo entre Sandmann e os poetas simbolistas (Curitiba é o epicentro do simbolismo brasileiro). Essa concepção poética lhe chega também pelas vias desse movimento. Não significa que Curitiba adora cultuar fantasmas, vampiros, mas que sabe ler de forma criativa a própria tradição que inventou.
CENA DE JORNAL TRIBUNA: Depois de perder a cabeça, ocorpo do poeta foi encontrando ainda vivo. O sangue que jorrava ia manchando os papéis que ainda segurava na mão. Ao lado, fazendo careta, como o João Batista de Laforgue, a cabeça, depois de rolar, sangrava cerejas!
Capa da Revista Acephale, de Bataille
Abrir mão da cabeça significa compreender que a literatura nasce da morte e da sobrevivência da tradição. Nasce também para devolver vida para os mortos, como Sandmann fez com Sá-Carneiro. Para César Aira, a literatura nasce do abandono. Devemos abandonar para poder criar. No entanto, o próprio abandono deve ser abandonado, o que significa que ser inatual é ser contemporâneo. Mr. Sandmann sabe. Todas essas questões nos levam a vislumbrar um diálogo muito sugestivo entre Sandmann e os poetas simbolistas (Curitiba é o epicentro do simbolismo brasileiro). Essa concepção poética lhe chega também pelas vias desse movimento. Não significa que Curitiba adora cultuar fantasmas, vampiros, mas que sabe ler de forma criativa a própria tradição que inventou.
CENA DE JORNAL TRIBUNA: Depois de perder a cabeça, o
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