terça-feira, 27 de maio de 2014

A POTÊNCIA DA IMAGEM EM OUTONO/O JARDIM PETRIFICADO, DE MÁRIO PEIXOTO E SAULO PEREIRA DE MELLO: PARTE II


Mário Peixoto

O conto Missa do Galo, de Machado de Assis, foi publicado em livro pela primeira vez em 1899, em Páginas Recolhidas, sete anos antes do lançamento de Relíquias de Casa Velha, em 1906. Páginas Recolhidas apresentava como epígrafe a seguinte frase de Montaigne, extraída do primeiro livro dos Essais: “Quelque diversité d´herbes qui´il y ayt, tout s´enveloppe sous le nom de salade”. A presença de Montaigne não é fortuita na obra. Ela se justifica na variedade do livro, uma espécie de “salada”, reunião de textos como crônicas, contos e novelas, muitos dos quais publicados inicialmente nas folhas de jornais da época, em datas diversas.
O contexto do qual participa a publicação do livro é de grande euforia no cenário cultural. No ano anterior, Machado fora eleito presidente da Academia Brasileira de Letras. Em 1900, a Garnier publica integralmente o romance Dom Casmurro. Acontecimentos como o suicídio de Raul Pompéia, em 1895, e o fim de Canudos, em 1897, ainda ressoavam enquanto se anunciava um novo Rio de Janeiro, que passaria por grandes transformações em sua reurbanização, iniciada em 1904, pelo prefeito Pereira Passos, uma espécie de Barão Haussmann dos trópicos. Brito Broca (1960), em A vida literária no Brasil - 1900, assinala que a transformação da paisagem urbana se refletia na paisagem social e igualmente no quadro de nossa vida literária. Tais mudanças anunciavam não apenas uma nova paisagem a ser descrita, mas principalmente novos modos de operar na literatura as complexas relações entre o homem e o mundo[1]. Na mesma época, José do Patrocínio traz da Europa para o Rio parisiense o automóvel, fazendo todo mundo correr espantado “para contemplar aquela máquina diabólica, de que se desprendia muita fumaça e um cheiro insuportável de gasolina” (BROCA, 1960). Entre a derrocada de um sistema messiânico, que resultaria na morte de Antônio Conselheiro, e o anúncio de um Brasil moderno, pautado pelo nascimento do século XX, uma Missa do Galo.


 Difícil dizer se a Conceição pintada por Machado seria uma femme fatale ou uma femme fragile; um tipo de personagem presente em outros textos do escritor, e que encontraria em Capitu sua fórmula máxima. É provável que essa margem de indecisão seja o fator primordial do fascínio da personagem de Missa do Galo em outros escritores. Não muito distante estaria Salomé, figura bíblica que inspirou várias representações na pintura, no cinema e na literatura, principalmente no século XIX. Salomé ora seria uma espécie de anjo, mesmo no momento em que pede a cabeça de João Batista, ora uma devassa, como fora representada na peça homônima de Oscar Wilde. É justamente por aparecer e desaparecer, como que escorregando para o vazio, delicadamente envolta em levíssima musselina de um amarelo junquilho pintalgado de preto, que Salomé, de Jules Laforgue, ganha contornos de um anjo que seduz ao mostrar e não mostrar ao mesmo tempo o seu corpo. Visão semelhante é a do narrador que contempla o “aparecer” e “desaparecer” do corpo de Conceição:

Pouco a pouco, tinha-se reclinado; fincara os cotovelos no mármore da mesa e metera o rosto entre as mãos espalmadas. Não estando abotoadas as mangas, caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos braços, muito claros, e menos magros do que se poderia supor (...).

Deu volta à mesa e veio sentar-se do meu lado, no canapé. Voltei-me, e pude ver, a furto, o bico das chinelas; mas foi só o tempo que ela gastou em sentar-se, o roupão era comprido e cobriu-as logo. Recordo-me que eram pretas (MACHADO DE ASSIS, 1959).

A frase bastaria para fundamentar a própria teoria implícita na produção imagética de Mário Peixoto, que, por sinal, era avesso a teorizações. Blanchot nos diz que ver supõe a distância, “a decisão separadora, o poder de não estar em contato e de evitar no contato a confusão” (1987). Se tomássemos esse contato meramente como um completo aparecimento, deveríamos concordar que tal experiência, mais do que trazer confusão, esvaziaria o próprio contato. Falemos então em aparecimento-desaparecimento. O que parece interessar a Mário é justamente o hífen (hímen), aquilo se apresenta como resto no jogo do aparecer e do desaparecer, um entre-lugar. Dessa maneira, o que vemos à distância pode também sugerir um tipo de “toque”. O hífen não seria mais que o erótico, fundamentando a lógica de suas imagens. Se fosse pornográfico, o excesso resultaria numa espécie de falta; não seria mais que um contato esvaziado pela própria presença. Questão semelhante nos é apresentada por Roland Barthes, um escritor que soube muito bem identificar na linguagem o que anteriormente chamamos de hífen:

O lugar mais erótico de um corpo não é lá onde o vestuário se entreabre? Na perversão (que é o regime do prazer textual) não há ‘zonas erógenas’ (expressão aliás bastante importuna); é a intermitência, como o disse muito bem a psicanálise, que é erótica; a da pele que cintila entre duas peças (as calças e a malha), entre duas bordas (a camisa entreaberta, a luva e a manga); é essa cintilação mesma que seduz, ou ainda: a encenação de um aparecimento-desaparecimento (BARTHES, 2002).

No roteiro, o jogo mostrar-não mostrar, criado por Machado, é mantido:

114. CORTE. MEDIUM CLOSE SHOT
(...) uma expressão de aborrecimento se desenha, e ela se inclina em direção ao chinelo que caiu. Ao fazê-lo, o pano da gola do robe, que bambeara, abre-se, revelando o começo dos seios e a separação entre eles (2000).
(...)
374. CORTE. CLOSE MEDIUM SHOT
do primeiro plano do joelho de Helena. Câmera baixa; ao fundo, Abel. Helena segura a bandeja. O robe começa a abrir.
375. CORTE. CLOSE MEDIUM SHOT
de Helena segurando a bandeja, com a mão em primeiro plano. Ao fundo o robe que acaba de abrir vendo-se a parte interna do joelho (2000).

Uma das diferenças significativas do roteiro em relação ao conto é que os personagens são apresentados com outros nomes: Conceição agora é Helena; Nogueira é Abel. Outro fator importante é que Helena possui uma feição sedutora mais nítida do que Conceição. Em vários momentos, impõe-se o desejo feminino como um dos motes que conduzem o encontro. Criar uma imagem que represente esse fato é uma das preocupações dos roteiristas, o que esclarecem numa das notas presentes no scenario: “A decisão de seduzir o rapaz deve expressar-se claramente – mas não é uma sensualidade puramente carnal: há uma certa espiritualidade nela, indefinível ternura, grande doçura e muita delicadeza” (2000). Essa delicadeza se apresenta de maneira contundente numa das cenas mais bonitas do roteiro, aquela em que o contato é traduzido em imagem, num crescendo que culmina no ato mínimo do gesto:

428. CORTE. MEDIUM CLOSE-UP
de Helena. Câmera aproxima-se dela. Pára. Mão de Abel entra em quadro pousa nos cabelos de Helena, acaricia-os, depois penetra por eles sob a cabeça e puxa para a objetiva até o máximo.
429. CORTE. CLOSE-UP
do rosto de Abel crescendo para a câmera até o máximo.
430. CORTE. EXTREME BIG CLOSE-UP
dos lábios. De lado: entram em quadro e lentamente se tocam – depois se unem -, se esmagam.
431. CORTE. EXTREME BIG CLOSE-UP
de pingo de água na janela – “explode” em luzes... (2000).
 
Julio Bressane, um cineasta que se interessou pela obra de Machado de Assis, e que criou uma versão de Memórias Póstumas de Brás Cubas, em 1985, observa que o que é fundamental nesse tipo de atividade é a tradução criativa, uma desleitura capaz de forçar os limites do meio traduzido: “tradução em cinema faz-se com luz-movimento-angulação-montagem” (BRESSANE, 2000). Essa espécie de tradução identificadora poderia ser pensada como uma espécie de profanação - tal como aquela desenvolvida pelo grupo de Osman Lins -, que não estaria preocupada nem em repetir o original, o que seria mesmo impossível; nem em destruí-lo, o que anularia a própria idéia de uma possível desleitura. Lembremos com Giorgio Agamben (2007) que profanar não significa destruir, mas aprender a fazer um uso novo do objeto profanado. O espaço profanador em que circula tal prática seria responsável por fundar uma maneira diferente de operar a própria noção de transformação:

Descobrir a luz, o ritmo, o fino fio de uma tradição de clichês cinematográficos que, transformados, transvalorados, recriados, reinventados, podem, de alguma maneira, nos sugerir, nos remeter, dar-nos uma idéia do formalismo do texto, do objeto, do humor, do mau humor, do original (BRESSANE, 2000).

Mario Peixoto e Saulo Pereira de Mello trabalharam em Outono/O jardim petrificado em prol da desleitura, o que faz com que o roteiro ganhe um traço poético fortemente marcado pela justaposição de planos sugeridos.
Julio Bressane, no artigo intitulado “Brás Cubas”, presente em Cinemancia, observa: “Brás Cubas filme começa por objetos sólidos, passa às águas de um poço e depois ao mar. De líquido torna-se fumaça, neblina, nuvem e termina no céu gasoso. De imagem saturada a imagem rarefeita. Do figurativo ao abstrato. De todas as cores ao branco” (2000). Essa valorização do branco, uma espécie de procura do Neutro, em que as imagens rarefeitas ganham força, já pode ser encontrada na definição apresentada por Saulo Pereira de Mello sobre o cinema de Mário Peixoto: “Em cinema tudo deve ser indireto. Esta formulação simples, como todas as de Mário Peixoto, resume, na verdade, toda a poética do cinema silencioso do qual seu filme Limite é a obra final, resumo e remate” (2001). Esse reino absoluto do indireto poderia ser lido como uma perversão da própria linguagem. Nesse reino, acredita-se na infinita possibilidade narrativa da imagem. 

(Fotograma da transcriação de Bressane para a obra de Machado de Assis)

É como se as imagens tivessem vida e pudessem se relacionar umas com as outras. Aliás, uma das cenas de Outono/O jardim petrificado nos faz lembrar uma das passagens de Dom Casmurro, aquela em que o narrador descreve os olhos de ressaca de Capitu: “442. CORTE. LONG SHOT de Helena – como no shot número 250. Onda se formando, erguendo-se – quebrando e correndo – câmera segue até que “explode” em rochedo. Ruído de mar” (2000). Esse parentesco entre passagens, seja do roteiro com outros textos, ou entre as próprias cenas, é um sintoma de imagens que funcionam como uma espécie de mônada leibniziana. Ou seja, em cada cena do roteiro estaria presente a dobra da cena anterior e o desdobramento da cena seguinte, ou mesmo todo o roteiro. Os corpos de Helena e Abel seriam também o espectro das duas estátuas que aparecem no início do texto, povoando o jardim petrificado, à espera de um incidente que possa mudar o seu estado de pedra, dar-lhe vida, permitir-lhe o amor. O incidente poderia ser uma folha que cai no outono. Poderia também ser o encontro enigmático entre um jovem e uma mulher casada, um encontro que transforma em imagem o gesto de um amor que não se realiza; o único amor que se concretiza aqui é entre o cinema e a literatura. Para finalizar poderíamos perguntar: “Por que dois títulos?” Outono é de Mário. O Jardim Petrificado é de Paulo. Talvez o conto de Machado de Assis nos responda.



[1] Talvez seja na modalidade da crônica que Machado apresente de maneira mais contundente os reflexos do processo de modernização do país. Não que seus romances não o façam, mas é por meio de uma literatura não institucionalizada como a da crônica produzida no final de século XIX que tais questões aparecem com mais freqüência. É o que Ana Luiza Andrade analisa em Transportes pelo olhar de Machado de Assis: “Machado de Assis foi um leitor de seu tempo e do nosso. De seu olhar transicional entre oitocentistas e novecentistas despontam radicais transformações, substituições e deslocamentos culturais, a partir da industrialização. No trânsito finissecular para a modernidade, coincidente com os inícios da reprodutibilidade técnica e com a chegada da imprensa de maior circulação, Machado se projeta, entre o feitiço do olhar e o fetiche do capital, sobre a crônica como metonímia abreviada e desligada de uma literatura institucionalizada” (1999, p.18).  

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