segunda-feira, 16 de abril de 2018

Pequeno ensaio sobre os vaga-lumes e a prisão de Lula




Eu estava preparando para este jornal um texto sobre o poeta japonês Matsuo Bashô quando, no meio do caminho, um acontecimento político desviou a minha rota. E para meus filhos e netos não dizerem no futuro que me calei sobre esse episódio e para a minha consciência continuar como está e para os leitores não pensarem que a política brasileira está agora mais limpa resolvi, então, escrever sobre vaga-lumes.
Sejamos contemporâneos, enxerguemos na escuridão. Giorgio Agamben escreveu em seu belo ensaio “O que é o contemporâneo?” que “todos os tempos são, para quem deles experimenta contemporaneidade, obscuros”. E ser contemporâneo, para ele, é justamente ser capaz de ver essa obscuridade, ser capaz de escrever “mergulhando a pena nas trevas do presente”. Para o filósofo italiano, contemporâneo é aquele que “mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro”. Eu acrescentaria a este argumento a ideia de que contemporâneo é também aquele capaz de iluminar, mesmo que com uma discreta luz de vaga-lume, as trevas de seu tempo. Para esta conclusão, inspiro-me no livro “Sobrevivência dos Vaga-lumes”, de Georges Didi-Huberman. Lanço aqui alguns lampejos do quebra-cabeça, na expectativa de que o leitor junte suas peças.
No livro, Didi-Huberman - depois de evocar uma imagem do “Inferno”, de Dante, que diz respeito à aparição de uma pequena luz de vaga-lumes a revelar com seu fulgor os “conselheiros pérfidos” -, relembra de uma carta de Pier Paolo Pasolini encaminhada a seu amigo Franco Farolfi no auge da 2ª Guerra, na qual celebra a amizade e descreve uma noite em que vislumbrou, em Pieve del Pino, uma revoada de vaga-lumes. Em pleno conflito, esses pequenos insetos preencheram a escuridão com seu voo amoroso e luzidio. A irradiação de sua luz, mesmo que frágil e fugaz, seria uma alternativa aos “tempos muito sombrios ou iluminados do fascismo triunfante”. E a arte com sua luz de vaga-lume nos ajuda a pensar e entender melhor a vida quando o mundo escurece.


Algumas décadas depois, Pasolini - associando o momento trágico do pós-guerra, bem como a sobrevivência do fascismo, ao desaparecimento dos vaga-lumes - publicou um artigo no qual refletiu sobre o vazio do poder na Itália, bem como o comportamento imposto pelo poder do consumo a remodelar e deformar a consciência do povo italiano. O cineasta denunciou não apenas a violência policial do período, mas também um genocídio cultural e o desprezo pela Constituição.



Hoje, mais de quarenta anos depois do trágico e brutal assassinato de Pasolini, vivemos ainda um tempo em que “os conselheiros pérfidos estão em plena glória luminosa”. E ao invés de protestar contra a prisão de Lula – questão complexa que tomaria muitas páginas -, prefiro perguntar: “Por que a parcela de brasileiros que teve uma catarse com a prisão de Lula não reivindica com o mesmo afinco o julgamento e a condenação de tantos outros - os quais sabemos – que livres, blindados e tranquilos estão?” Não sou a favor de corrupção, nem de impunidade, muito menos engajado em querelas partidárias e é justamente por isso que me sinto à vontade para escrever sobre isso, não com imparcialidade (sabemos que ela não existe no âmbito das ideias), mas com parcimônia. Como escreveu meu amigo Luisandro Mendes de Souza, “se a sociedade acha que depois da segunda instância o réu deve ser preso, que se mude a Constituição. Mas enquanto isso, o réu pode recorrer em liberdade enquanto tiver chance de recurso. Se assassino pode recorrer em liberdade, porque alguém acusado de corrupção não poderia?”. Por que é o Lula? Não se trata de partidarismo, mas de uma questão legal.


Denunciando uma assimilação (total) ao “modo e à qualidade de vida da burguesia”, Pasolini nos convida a tomar consciência da tragédia. E qual seria ela? A de que “não existem mais seres humanos; só se veem singulares engenhocas que se lançam umas contra as outras”. Não é a isso que temos assistido dia após dia nas redes sociais? O povo, em meio a mil e uma manipulações midiáticas, vai perdendo a capacidade de ler e refletir sobre as coisas. Isso de todos os lados, da esquerda à direita, do popular ao erudito, do rico ao pobre. Não precisamos abrir mão de nossas paixões para avaliar com mais clareza uma determinada situação. No entanto, a catarse a que estamos assistindo – com direito a fogos de artifício pelas cidades, performances bizarras no hotel mal-afamado de Oscar Maroni e slogans como “leva e não traz nunca mais” - escancara a velha e já conhecida história: somos apresentados a um vilão, a um antagonista e torcemos para que ele sofra, morra ou apodreça na cadeia no último capítulo da novela, enquanto os outros personagens, na igreja, assistem ao casamento da mocinha e do mocinho e todos ficam, assim, felizes para sempre. E outra novela começa. Essa é a forma mais fácil e automática de ler, enxergando a vida como quem assiste a uma novela, geralmente global. E se alguém é associado a um dos lados, já vem milhares do outro com pedras na mão. Só que a vida não é uma novela. O jeito é virar vaga-lume.  


Vaga-lumes são aqueles que não se deixam cegar pela luz total dos projetores de shows políticos ou dos palcos de televisão, bem como aqueles que, em meio às trevas do tempo, não deixam de emitir sua luz, seus sinais, seus lúcidos pensamentos. Aliás, a expressão “lucidus”, do latim, deriva de luminoso, ou seja, aquele que é provido de luz. Vaga-lumes são aqueles seres desassossegados que leem com atenção e que, desconfiando das verdades absolutas ou impostas, enxergam melhor no escuro, ou seja, resistem. Aos poucos, pequenas luzes de vaga-lumes vão se unindo, formando uma constelação capaz de iluminar toda uma noite.
Certa vez, Roland Barthes escreveu que o Poder, seja qual for, por ser violência, nunca olha: “se olhasse um minuto a mais (um minuto demais), perderia sua essência de poder”. Para ele, o artista, ao contrário, para e olha demoradamente. E isso é perigoso, pois “olhar mais tempo do que o solicitado (...) desarranja todas as ordens estabelecidas, sejam elas quais forem”. Até porque o próprio tempo do olhar é controlado pela sociedade. Os vaga-lumes, param, olham e, dessa forma, iluminam. Precisamos deles para entender melhor o que está acontecendo. Que a arte e a política nos convidem também a este voo. Aprendamos a ler melhor.

Publicado originalmente no jornal Caiçara,
em União da Vitória, PR, 
em 14 de abril de 2018

Um comentário:

L. M. de Souza disse...

Bela reflexão! Eu ando bem desanimado com tudo isso. Pior é que nesse jogo todo nem dá pra saber se o homem de fato é culpado ou não, porque há tanto ódio e desinformação misturados. Construiu-se a narrativa da culpa, e depois tudo que apareceu foi sendo somado para se criar a sensação de justiça, ou de que "a lei é para todos".