domingo, 7 de abril de 2019

Leminski e seu lance de ensaio: textualidades ninjas




(Arguição à Dissertação de Mestrado de Gabrielli Margarida Zanella defendida no dia 29 de março de 2019 no Programa de Pós-Graduação em Literatura na Universidade Federal de Santa Catarina)

Caio Ricardo Bona Moreira

Em uma recente antologia, A Hora da Lâmina, que recupera os últimos textos que Leminski publicou em jornal, numa coluna semanal na Folha de Londrina, entre abril e junho de 1989 (o texto que encerra a colaboração é veiculado cinco dias antes da morte do poeta), podemos encontrar uma série de textos que nos ajudam a compreender o motivo de Leminski tratar os textos que veiculava na imprensa como “textos-ninja”: “textos curtos, ligeiros, ácidos, ágeis, mas também ferinos ácidos, arrebatadores”, nas palavras de Felipe Melhado, organizador da antologia. Para ele, em seus textos derradeiros, “Leminski esboçava um verdadeiro elogio do conflito, lançando bases para um entendimento bélico da vida cotidiana” (2017, p. 10). Dos oito textos, os últimos quatro tratam da questão da luta e da guerra como experiência de vida[1]. No primeiro deles, Leminski observa que sua vida se rege por princípios estritamente militares, inspirado em Napoleão e na leitura do general von Clausewitz, general prussiano que para o autor é clássico máximo e “estudo obrigatório em todo Estado-Maior do mundo inteiro” (2017, p. 49). Com von Clausewitz, o escritor aprendeu: como atacar, como se defender se os víveres escasseiam, como conduzir com sucesso uma boa retirada. Leminski não tarda em alertar que não se trata de defender uma visão agressiva e feroz da vida, como desavisados poderiam pressupor. Trata-se de pensar na guerra não apenas como dor e destruição, perda e desgraça, crueldade e fim da inocência. Para o poeta-ensaísta, guerrear é “uma das coisas mais divertidas da vida”: “A guerra só é dolorosa quando você perde”, escreve ele. No texto de 12 de maio, o assunto é a Guerra do Contestado, sangrento episódio que aconteceu tão próximo de onde vivia. Uma semana depois, comenta o livro zen Discurso sobre a Arte dos Demônios da Montanha, do japonês Shissai Chozan, escrito no início do século XIX, e que trata da esgrima, o Ken-dô. Leminski escreve que o Ron de Chozan (ron, em japonês, quer dizer “argumento”, “tratado”, “ensaio”) tem um suporte ficcional:

O espadachim vai se isolar nas montanhas, consultar os tengu, os espíritos do céu, duendes de nariz comprido (no imaginário nipônico, os tengu são modelos de orgulho, força e sabedoria (...). Longo tempo, aos brados, o espadachim invoca a presença dos tengu. Até que eles aparecem, no alto de uma árvore. E começam a responder às perguntas do aprendiz. (2017, p. 62).

Nessa experiência do kendô, é fundamental o conceito de “naturalidade do coração”, ou seja, a prática da esgrima é uma libertação da intenção. Nesse sentido, os golpes devem acontecer sem a “interferência da vontade de um Ego”. Independente disso, na arte das espadas exige-se “a fusão da segurança técnica com entendimento espiritual”.
Leminski compreende então o gênero Ron de Chozan como uma espécie de ensaio. E por que não pensarmos aqui no ensaio na obra desse autor como uma espécie de prática cotidiana de luta, exercício marcial do confronto. Penso se não vai por aí um caminho que nos ajuda a pensar no ensaísmo leminskiano, como arena de combate, ringue de disputas, bem como lugar de entendimento, de experimentação da técnica, espaço de problematização da cisão palavra que na cultura ocidental, como observou Agamben, colocou a filosofia de um lado e a poesia de outro, impossibilitando ao mesmo tempo o conhecimento e o gozo. São questões que estão discreta ou explicitamente movendo ou sendo movidas pelo pensamento de Gabrielli Zanella em sua dissertação “A potência poética nos ensaios de Paulo Leminski”.
O ensaio, tal como praticado por Leminski, no interstício entre a crítica e a arte, entre a poesia e a filosofia, entre o jornalismo e a literatura, parece caminhar para aquela mitologia crítica que segundo Agamben (2005) já existe e que conclama os poetas a serem também filósofos (críticos) e os filósofos (críticos) a serem também poetas. Do caso de amor ou namoro entre essas instâncias parece brotar do ventre do poeta um rebento destinado ao saber e o sabor, simultâneos, um rebento que se depreende do ensaio, do texto-ninja, lugar em que poética e política parecem ser praticadas com entusiasmo.
Ensaio, texto jornalístico, anseio, crônica, crítica? Talvez não importe tanto a definição. O próprio poeta chegou a adotar os termos “reflexão”, “instruções” e “textos-ninja”, num ensaio destinado a pensar a Ruína. Diz ele: “Assim, o nome desta reflexão (odeio a palavra crônica, com que alguns costumam designar meus textos-ninja) era para ser instruções para a construção de uma ruína” (LEMINSKI, 2012, p. 174). Em uma carta a Haroldo de Campos, de 1976, usou a expressão “quase-ensaios”, ao se referir ao Catatau. Gosto de ensaio, porque sua liberdade entra em consonância com o que se percebe nessa textualidade jornalística selvagem do escritor de Catatau, que como bem analisou Gabrielli Zanela, em sua dissertação de Mestrado, soube trabalhar inventivamente seu pensamento no ensaio, inventariando a própria expansão de seu limite enquanto gênero.
Antonio Candido observava sobre Oswald de Andrade que ele renovou a prosa e a poesia rompendo a linha divisória entre a prosa e a poesia. Essa renovação pode ser entendida também no que se refere à mistura de gêneros, já sinalizada por Haroldo de Campos, como uma “técnica de descoberta criativa”. Fato semelhante se deu com o Leminski em relação principalmente a sua prosa poética de Catatau, suas cartas e seu ensaísmo explosivo. O tema foi bem abordado pela pesquisadora cuja dissertação é apresentada hoje.
Creio que as reflexões sobre a poetização da prosa ensaística de Leminski que Zanella apresenta a partir de uma sólida reflexão de Agamben e Alberto Pucheu são elucidativas e potencializam uma leitura talvez ainda pouco realizada na obra de Leminski. Rodrigo Garcia Lopes, por exemplo, que há alguns meses publicou um “Roteiro Literário” interessado em apresentar a obra de Leminski quase nem toca no assunto. Boa parte da fortuna crítica de Leminski também. Garcia Lopes em uma das poucas reflexões sobre esse lado ensaísta do poeta escreve: “Era no espírito da polêmica e em seus “ensaios-ninja”, como ele os chamava, que ele exercia seu pensamento selvagem, assistemático, sempre bem-informado e humorado. Num ambiente onde vinga o “bom-mocismo”, Leminski provocou e incomodou” (2018, p. 17).
Creio que Waly Salomão é um dos poucos poetas da geração de Leminski que desenvolveram uma escrita profundamente poética no âmbito da escrita ensaística, como podemos perceber ao lermos seu Armarinho de Miudezas (2005), cujos textos concentram uma força poética profundamente polissêmica e singular. Cacaso e Ana Cristina Cesar também são ótimos ensaístas a meu ver, mas com uma linguagem bem mais comportada, delimitando bem uma certa distância, com um direito a cerca ou muro, os domínios da ciência e da arte, do jornalismo e da literatura, da filosofia e da poesia. No caso de Leminski, em sua pororoca amorosa, o poeta parece pensar através dessa estrutura pautada pela cesura. Seu pensamento ágil, veloz, talvez não encontraria sentido na justa medida de uma escrita científica, acadêmica, de tratado, ou pretensamente objetiva e jornalística.  Essa pororoca que aparece com força também nas biografias-poético-ensaísticas que escreveu sob encomenda da editora Brasiliense, nos anos 80.
Para finalizar, destaco o ponto exato onde Zanella concluiu sua pesquisa, abordando as cartas como elementos textuais que fazem parte dessa potência poética. Por uma questão de acaso ou destino, guardo uma carta que Leminski enviou ao amigo Álvaro (talvez Álvaro Marins que organizou uma de suas antologias). Nela, Leminski pede para seu interlocutor relevar o fato dele “usar ainda esse código obsoleto que é o verbal”, dizendo que ele ainda é fundamental no processo de comunicação e construção de ideias, poéticas ou não, questionando, assim, um livro no qual Álvaro defende a poesia icônica num contexto de poema-processo. Depois de comentar sobre as revistas Polo e Raposa, que estava editando em Curitiba, o poeta aborda implicitamente o mesmo problema que já havia há alguns meses confessado para Regis Bonvicino em carta, ao informar que seu fígado havia dado um stop. Para Álvaro, Leminski é mais discreto:

O tempo já está triando inexoravelmente
E ficarão no final para a finalíssima
os produtos
Tomara que os nossos
Os teus
Os meus
E os dos nossos

Do seu Leminski
27/07/78

Na carta as mesmas cesuras que conferem ao texto seu ritmo poético. Com uma bela pesquisa já realizada por Solange Rebuzzi (2003) e publicada em livro: “Leminski, guerreiro da linguagem – uma leitura das cartas-poema de Paulo Leminski”, o assunto continua convidando a novas pesquisas, porque uma obra de referência, creio eu, sempre nos convida a lermos de formas diferentes os mesmos objetos.
Da UNESPAR para a UFSC, do Memórias Poéticas do Vale do Iguaçu ao Programa de Pós-Graduação em Literatura, do Caio a Susana (que salto e melhora significativa), cumprimento o trabalho da pesquisadora Gabrielli Zanella, alegrando-me com o resultado final, e desejando futuro auspicioso em outros mergulhos numa pororoca ensaística, namoros entre a crítica e arte, seus saberes e sabores, suas mitologias críticas, espaço também de luta e resistência em tempos tão sombrios: “A guerra só é dolorosa quando você perde”.

Referências:

AGAMBEN, Giorgio. Infância e História: Destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: UFMG, 2005.
GARCIA LOPES, Rodrigo. Roteiro Literário Paulo Leminski. Curitiba: Biblioteca Pública do Paraná, 2018.
LEMINSKI, Paulo. A hora da lâmina. Londrina: Grafatório Edições, 2017.
LEMINSKI, Paulo. Ensaios e Anseios Crípticos. 2 ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2012.
REBUZZI, Solange. Leminski: Guerreiro da linguagem: uma leitura das cartas-poemas de Paulo Leminski. Rio de Janeiro: 7Letras, 2003.
SALOMÃO, Waly. Armarinho de Miudezas. Ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.
ZANELLA, Gabrielli Margarida. A potência poética nos ensaios de Paulo Leminski. Florianópolis: UFSC, 2019. (Dissertação)  

Membros da Banca:

Jorge Hoffmann Wolff
Jair Tadeu da Fonseca
Rita Lenira de Freitas Bittencourt
Caio Ricardo Bona Moreira



[1] Lembremos que o assunto já aparece em Guerra dentro da Gente, livro infanto-juvenil que Leminski escreveu nos anos 80.

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