(Arguição à
Dissertação de Mestrado de Gabrielli Margarida Zanella defendida no dia 29 de
março de 2019 no Programa de Pós-Graduação em Literatura na Universidade Federal
de Santa Catarina)
Caio Ricardo Bona Moreira
Em
uma recente antologia, A Hora da Lâmina,
que recupera os últimos textos que Leminski publicou em jornal, numa coluna
semanal na Folha de Londrina, entre abril e junho de 1989 (o texto que encerra
a colaboração é veiculado cinco dias antes da morte do poeta), podemos
encontrar uma série de textos que nos ajudam a compreender o motivo de Leminski
tratar os textos que veiculava na imprensa como “textos-ninja”: “textos curtos,
ligeiros, ácidos, ágeis, mas também ferinos ácidos, arrebatadores”, nas
palavras de Felipe Melhado, organizador da antologia. Para ele, em seus textos
derradeiros, “Leminski esboçava um verdadeiro elogio do conflito, lançando
bases para um entendimento bélico da vida cotidiana” (2017, p. 10). Dos oito
textos, os últimos quatro tratam da questão da luta e da guerra como experiência
de vida[1]. No
primeiro deles, Leminski observa que sua vida se rege por princípios
estritamente militares, inspirado em Napoleão e na leitura do general von
Clausewitz, general prussiano que para o autor é clássico máximo e “estudo
obrigatório em todo Estado-Maior do mundo inteiro” (2017, p. 49). Com von
Clausewitz, o escritor aprendeu: como atacar, como se defender se os víveres
escasseiam, como conduzir com sucesso uma boa retirada. Leminski não tarda em
alertar que não se trata de defender uma visão agressiva e feroz da vida, como
desavisados poderiam pressupor. Trata-se de pensar na guerra não apenas como
dor e destruição, perda e desgraça, crueldade e fim da inocência. Para o
poeta-ensaísta, guerrear é “uma das coisas mais divertidas da vida”: “A guerra
só é dolorosa quando você perde”, escreve ele. No texto de 12 de maio, o
assunto é a Guerra do Contestado, sangrento episódio que aconteceu tão próximo
de onde vivia. Uma semana depois, comenta o livro zen Discurso sobre a Arte dos Demônios da Montanha, do japonês Shissai
Chozan, escrito no início do século XIX, e que trata da esgrima, o Ken-dô.
Leminski escreve que o Ron de Chozan (ron, em japonês, quer dizer “argumento”,
“tratado”, “ensaio”) tem um suporte ficcional:
O espadachim vai
se isolar nas montanhas, consultar os tengu, os espíritos do céu, duendes de
nariz comprido (no imaginário nipônico, os tengu são modelos de orgulho, força
e sabedoria (...). Longo tempo, aos brados, o espadachim invoca a presença dos
tengu. Até que eles aparecem, no alto de uma árvore. E começam a responder às
perguntas do aprendiz. (2017, p. 62).
Nessa
experiência do kendô, é fundamental o conceito de “naturalidade do coração”, ou
seja, a prática da esgrima é uma libertação da intenção. Nesse sentido, os
golpes devem acontecer sem a “interferência da vontade de um Ego”. Independente
disso, na arte das espadas exige-se “a fusão da segurança técnica com
entendimento espiritual”.
Leminski
compreende então o gênero Ron de Chozan como uma espécie de ensaio. E por que
não pensarmos aqui no ensaio na obra desse autor como uma espécie de prática
cotidiana de luta, exercício marcial do confronto. Penso se não vai por aí um
caminho que nos ajuda a pensar no ensaísmo leminskiano, como arena de combate,
ringue de disputas, bem como lugar de entendimento, de experimentação da
técnica, espaço de problematização da cisão palavra que na cultura ocidental,
como observou Agamben, colocou a filosofia de um lado e a poesia de outro,
impossibilitando ao mesmo tempo o conhecimento e o gozo. São questões que estão
discreta ou explicitamente movendo ou sendo movidas pelo pensamento de
Gabrielli Zanella em sua dissertação “A potência poética nos ensaios de Paulo
Leminski”.
O
ensaio, tal como praticado por Leminski, no interstício entre a crítica e a
arte, entre a poesia e a filosofia, entre o jornalismo e a literatura, parece
caminhar para aquela mitologia crítica
que segundo Agamben (2005) já existe e que conclama os poetas a serem também
filósofos (críticos) e os filósofos (críticos) a serem também poetas. Do caso
de amor ou namoro entre essas instâncias parece brotar do ventre do poeta um
rebento destinado ao saber e o sabor, simultâneos, um rebento que se depreende
do ensaio, do texto-ninja, lugar em que poética e política parecem ser
praticadas com entusiasmo.
Ensaio,
texto jornalístico, anseio, crônica, crítica? Talvez não importe tanto a
definição. O próprio poeta chegou a adotar os termos “reflexão”, “instruções” e
“textos-ninja”, num ensaio destinado a pensar a Ruína. Diz ele: “Assim, o nome
desta reflexão (odeio a palavra crônica, com que alguns costumam designar meus
textos-ninja) era para ser instruções para a construção de uma ruína” (LEMINSKI,
2012, p. 174). Em uma carta a Haroldo de Campos, de 1976, usou a expressão
“quase-ensaios”, ao se referir ao Catatau.
Gosto de ensaio, porque sua liberdade entra em consonância com o que se percebe
nessa textualidade jornalística selvagem do escritor de Catatau, que como bem
analisou Gabrielli Zanela, em sua dissertação de Mestrado, soube trabalhar
inventivamente seu pensamento no ensaio, inventariando a própria expansão de
seu limite enquanto gênero.
Antonio
Candido observava sobre Oswald de Andrade que ele renovou a prosa e a poesia
rompendo a linha divisória entre a prosa e a poesia. Essa renovação pode ser
entendida também no que se refere à mistura de gêneros, já sinalizada por
Haroldo de Campos, como uma “técnica de descoberta criativa”. Fato semelhante
se deu com o Leminski em relação principalmente a sua prosa poética de Catatau,
suas cartas e seu ensaísmo explosivo. O tema foi bem abordado pela pesquisadora
cuja dissertação é apresentada hoje.
Creio
que as reflexões sobre a poetização da prosa ensaística de Leminski que Zanella
apresenta a partir de uma sólida reflexão de Agamben e Alberto Pucheu são
elucidativas e potencializam uma leitura talvez ainda pouco realizada na obra
de Leminski. Rodrigo Garcia Lopes, por exemplo, que há alguns meses publicou um
“Roteiro Literário” interessado em apresentar a obra de Leminski quase nem toca
no assunto. Boa parte da fortuna crítica de Leminski também. Garcia Lopes em
uma das poucas reflexões sobre esse lado ensaísta do poeta escreve: “Era no
espírito da polêmica e em seus “ensaios-ninja”, como ele os chamava, que ele
exercia seu pensamento selvagem, assistemático, sempre bem-informado e
humorado. Num ambiente onde vinga o “bom-mocismo”, Leminski provocou e
incomodou” (2018, p. 17).
Creio
que Waly Salomão é um dos poucos poetas da geração de Leminski que
desenvolveram uma escrita profundamente poética no âmbito da escrita
ensaística, como podemos perceber ao lermos seu Armarinho de Miudezas (2005),
cujos textos concentram uma força poética profundamente polissêmica e singular.
Cacaso e Ana Cristina Cesar também são ótimos ensaístas a meu ver, mas com uma
linguagem bem mais comportada, delimitando bem uma certa distância, com um
direito a cerca ou muro, os domínios da ciência e da arte, do jornalismo e da literatura,
da filosofia e da poesia. No caso de Leminski, em sua pororoca amorosa, o poeta
parece pensar através dessa estrutura pautada pela cesura. Seu pensamento ágil,
veloz, talvez não encontraria sentido na justa medida de uma escrita
científica, acadêmica, de tratado, ou pretensamente objetiva e
jornalística. Essa pororoca que aparece
com força também nas biografias-poético-ensaísticas que escreveu sob encomenda
da editora Brasiliense, nos anos 80.
Para
finalizar, destaco o ponto exato onde Zanella concluiu sua pesquisa, abordando
as cartas como elementos textuais que fazem parte dessa potência poética. Por
uma questão de acaso ou destino, guardo uma carta que Leminski enviou ao amigo
Álvaro (talvez Álvaro Marins que organizou uma de suas antologias). Nela, Leminski
pede para seu interlocutor relevar o fato dele “usar ainda esse código obsoleto
que é o verbal”, dizendo que ele ainda é fundamental no processo de comunicação
e construção de ideias, poéticas ou não, questionando, assim, um livro no qual Álvaro
defende a poesia icônica num contexto de poema-processo. Depois de comentar
sobre as revistas Polo e Raposa, que
estava editando em Curitiba, o poeta aborda implicitamente o mesmo problema que
já havia há alguns meses confessado para Regis Bonvicino em carta, ao informar
que seu fígado havia dado um stop. Para Álvaro, Leminski é mais discreto:
O tempo já está
triando inexoravelmente
E ficarão no
final para a finalíssima
os produtos
Tomara que os
nossos
Os teus
Os meus
E os dos nossos
Do seu Leminski
27/07/78
Na
carta as mesmas cesuras que conferem ao texto seu ritmo poético. Com uma bela
pesquisa já realizada por Solange Rebuzzi (2003) e publicada em livro:
“Leminski, guerreiro da linguagem – uma leitura das cartas-poema de Paulo
Leminski”, o assunto continua convidando a novas pesquisas, porque uma obra de
referência, creio eu, sempre nos convida a lermos de formas diferentes os
mesmos objetos.
Da
UNESPAR para a UFSC, do Memórias Poéticas do Vale do Iguaçu ao Programa de
Pós-Graduação em Literatura, do Caio a Susana (que salto e melhora
significativa), cumprimento o trabalho da pesquisadora Gabrielli Zanella,
alegrando-me com o resultado final, e desejando futuro auspicioso em outros
mergulhos numa pororoca ensaística, namoros entre a crítica e arte, seus
saberes e sabores, suas mitologias críticas, espaço também de luta e
resistência em tempos tão sombrios: “A guerra só é dolorosa quando você perde”.
Referências:
AGAMBEN,
Giorgio. Infância e História: Destruição
da experiência e origem da história. Belo Horizonte: UFMG, 2005.
GARCIA
LOPES, Rodrigo. Roteiro Literário Paulo Leminski.
Curitiba: Biblioteca Pública do Paraná, 2018.
LEMINSKI,
Paulo. A hora da lâmina. Londrina:
Grafatório Edições, 2017.
LEMINSKI,
Paulo. Ensaios e Anseios Crípticos.
2 ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2012.
REBUZZI,
Solange. Leminski: Guerreiro da
linguagem: uma leitura das cartas-poemas de Paulo Leminski. Rio de Janeiro:
7Letras, 2003.
SALOMÃO,
Waly. Armarinho de Miudezas. Ed.
revista e ampliada. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.
ZANELLA,
Gabrielli Margarida. A potência poética nos ensaios de Paulo Leminski.
Florianópolis: UFSC, 2019. (Dissertação)
Membros da Banca:
Jorge Hoffmann Wolff
Jair Tadeu da Fonseca
Rita Lenira de Freitas Bittencourt
Caio Ricardo Bona Moreira
[1] Lembremos que o assunto já
aparece em Guerra dentro da Gente, livro
infanto-juvenil que Leminski escreveu nos anos 80.
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