2019 foi um ano fantástico, como num romance de realismo mágico em que tudo pode acontecer
2019 foi um ano fantástico. Daqueles
dignos de um romance em que tudo pode acontecer. O realismo mágico – também
chamado de fantástico – popularizou-se na América Latina principalmente nos
anos 60 e 70 do século XX, período obscuro de nossa história, e acabou se
transformando em um movimento literário de grande força que abarcou escritores
como Alejo Carpentier, Gabriel Garcia Márquez, Júlio Cortázar, entre tantos
outros. No Brasil, autores como Murilo Rubião e José J. Veiga dialogaram
fortemente com essa corrente. Não chegando a formar uma escola, o realismo
fantástico teve conotações políticas em sua intenção de dar verossimilhança ao
fantástico e ao irreal, denunciando muitas vezes ditaduras e sendo uma
afirmação artística diante da arte europeia.
No realismo fantástico mortos
ressuscitam, como em “Incidente em Antares”, de Érico Veríssimo, ou chove
durante quatro anos em Macondo, como podemos ler em “Cem Anos de Solidão”, de
Gabriel Garcia Márquez. Um grupo de invasores e seus ruminantes montam
acampamento em uma cidade - que poderia ser nosso país - como vemos na obra de
J.J.Veiga. Em um conto de Murilo Rubião os invasores são dragões. É o que temos
visto na vida real. E aí já não sabemos dizer mais se encontramos a vida real
no fantástico da literatura ou se estamos mesmo vivendo o impossível. Os
jornais e telejornais assemelham-se a novelas intermináveis cujos mocinhos e
bandidos mudam de lugar a todo momento. As teorias literárias da narrativa
chamam essas personagens de complexas ou redondas. Geralmente, são as mais
interessantes na literatura. Na vida real - pelo menos aquela que vivemos fora
do texto - talvez não seja bem assim. Ingênuos ou pelo menos crentes em algum
tipo de redenção, buscamos as páginas finais do livro ou os últimos capítulos
da novela para ver se conseguiremos, depois de tanta encrenca, ser felizes para
sempre. Os telespectadores – entre os quais me incluo - assistem à novela
procurando descobrir, antes do “The End”, se o espetáculo bufo faz parte da
trama ou é só uma estratégia para desviar a atenção do público; se vale a pena
dar ibope a essa novela ou se não seria melhor pedir que a emissora termine a
trama um pouco antes para que uma outra possa começar. O problema disso tudo é
que o fantástico está na vida real. Tudo seria engraçado ou divertido –
promovendo a catarse – não fosse o trágico da vida fatalmente agora. Mas assim
como nem tudo são flores, nem tudo é assim escuridão, evocando aqui as palavras
de Hilda Hilst.
2019 foi um ano de boas leituras. Emocionei-me
lendo as “Ilhas” e “Cristal”, de Wilson Bueno, a “Trilogia do Adeus”, “Catálogo
de Perdas” e “Elegia do Irmão”, de João Anzanello Carrascoza, bem como “Juan
Darién”, de Horácio Quiroga. Protestei com Georges Didi-Huberman lendo
“Levantes” e “Remontagens do Tempo Perdido”. Lutei ao lado de Carlos de
Assumpção, lendo “Protesto e outros poemas”. Lamentei o destino das mulheres
africanas em “As alegrias da Maternidade”, de Buchi Emecheta. Vivi meu devir índio lendo “Traduções Canibais”,
de Álvaro Faleiros, “Curare”, de Ricardo Corona, “Totem”, de André Vallias, e
“Ideias para Adiar o Fim do Mundo”, de Ailton Krenak. Saravei o Brasil de Luiz
Rufino e Luiz Antonio Simas, lendo “Flecha no Tempo”. Matei a saudade de Raúl
Antelo lendo “Ruinologia”, “Paraná”, e “Por que o Nu masculino com bastão de
Eliseu Visconti é uma tela moderna”. Surpreendi-me com a escrita experimental
de Gramiro de Mattos ao ler “Conspiração de Búzios”. Matei a saudade de
Vinícius de Moraes com “100 Vinícius 100”, de Alex Solnik. Reencontrei João
Cabral de Melo Neto nas páginas de “O Homem sem Alma”, de José Castello.
Adentrei “A casa do Rio Vermelho”, de Zélia Gattai, para visitar Jorge Amado.
Em “Uma arquiduquesa imperial entre nós”, de Franklin Cunha, lamentei o destino
de Maria Antonia, a princesa austríaca que morreu pobre e esquecida no Sul do
Brasil. Surpreendi-me com a literatura de Katherine Funke, Eduardo Silveira e
Maria Cecília T. Koerich, lendo seus livros editados pela Micronotas. Descobri a
rica obra do paranaense Ladislau Romanowski apreciando “Ciúme da Morte”.
Lamentei o destino do Brasil do presente lendo “Essa Gente”, de Chico Buarque.
Celebrei mais uma vez a poesia de Nicolas Behr em seu livro de poemas eróticos
“Meio Seio”. Para não perder o costume, li o “Prins”, de César Aira. Apreciei
os pequenos filmes literários do Gonçalo Tavares, em “Short Movies”. Celebrei a
obra de Alejandra Pizarnik devorando “A Condessa Sangrenta”. Apreciei com muita
curiosidade as revistas “Documents”, reunidas em livro pela editora Cultura e
Barbárie, em seus textos de Georges Bataille e Carl Einstein. Comemorei a vida
e obra de Paulo Leminski, lendo o “Roteiro” escrito por Rodrigo Garcia Lopes,
editado pela Biblioteca Pública do Paraná.
Está aí uma mostra do meu 2019. São
livros fantásticos. E o fantástico do texto tem sido bem mais interessante do
que o realismo mágico a que temos assistido nos telejornais, diga-se de
passagem. Mas não percamos a ternura, muito menos a capacidade de enxergar. Que
2020 nos traga bons livros! Notícias melhores! Para que tudo seja mais feliz e
menos fantástico.
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