sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

2019 foi um ano fantástico





2019 foi um ano fantástico, como num romance de realismo mágico em que tudo pode acontecer



2019 foi um ano fantástico. Daqueles dignos de um romance em que tudo pode acontecer. O realismo mágico – também chamado de fantástico – popularizou-se na América Latina principalmente nos anos 60 e 70 do século XX, período obscuro de nossa história, e acabou se transformando em um movimento literário de grande força que abarcou escritores como Alejo Carpentier, Gabriel Garcia Márquez, Júlio Cortázar, entre tantos outros. No Brasil, autores como Murilo Rubião e José J. Veiga dialogaram fortemente com essa corrente. Não chegando a formar uma escola, o realismo fantástico teve conotações políticas em sua intenção de dar verossimilhança ao fantástico e ao irreal, denunciando muitas vezes ditaduras e sendo uma afirmação artística diante da arte europeia.

No realismo fantástico mortos ressuscitam, como em “Incidente em Antares”, de Érico Veríssimo, ou chove durante quatro anos em Macondo, como podemos ler em “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel Garcia Márquez. Um grupo de invasores e seus ruminantes montam acampamento em uma cidade - que poderia ser nosso país - como vemos na obra de J.J.Veiga. Em um conto de Murilo Rubião os invasores são dragões. É o que temos visto na vida real. E aí já não sabemos dizer mais se encontramos a vida real no fantástico da literatura ou se estamos mesmo vivendo o impossível. Os jornais e telejornais assemelham-se a novelas intermináveis cujos mocinhos e bandidos mudam de lugar a todo momento. As teorias literárias da narrativa chamam essas personagens de complexas ou redondas. Geralmente, são as mais interessantes na literatura. Na vida real - pelo menos aquela que vivemos fora do texto - talvez não seja bem assim. Ingênuos ou pelo menos crentes em algum tipo de redenção, buscamos as páginas finais do livro ou os últimos capítulos da novela para ver se conseguiremos, depois de tanta encrenca, ser felizes para sempre. Os telespectadores – entre os quais me incluo - assistem à novela procurando descobrir, antes do “The End”, se o espetáculo bufo faz parte da trama ou é só uma estratégia para desviar a atenção do público; se vale a pena dar ibope a essa novela ou se não seria melhor pedir que a emissora termine a trama um pouco antes para que uma outra possa começar. O problema disso tudo é que o fantástico está na vida real. Tudo seria engraçado ou divertido – promovendo a catarse – não fosse o trágico da vida fatalmente agora. Mas assim como nem tudo são flores, nem tudo é assim escuridão, evocando aqui as palavras de Hilda Hilst.

2019 foi um ano de boas leituras. Emocionei-me lendo as “Ilhas” e “Cristal”, de Wilson Bueno, a “Trilogia do Adeus”, “Catálogo de Perdas” e “Elegia do Irmão”, de João Anzanello Carrascoza, bem como “Juan Darién”, de Horácio Quiroga. Protestei com Georges Didi-Huberman lendo “Levantes” e “Remontagens do Tempo Perdido”. Lutei ao lado de Carlos de Assumpção, lendo “Protesto e outros poemas”. Lamentei o destino das mulheres africanas em “As alegrias da Maternidade”, de Buchi Emecheta.  Vivi meu devir índio lendo “Traduções Canibais”, de Álvaro Faleiros, “Curare”, de Ricardo Corona, “Totem”, de André Vallias, e “Ideias para Adiar o Fim do Mundo”, de Ailton Krenak. Saravei o Brasil de Luiz Rufino e Luiz Antonio Simas, lendo “Flecha no Tempo”. Matei a saudade de Raúl Antelo lendo “Ruinologia”, “Paraná”, e “Por que o Nu masculino com bastão de Eliseu Visconti é uma tela moderna”. Surpreendi-me com a escrita experimental de Gramiro de Mattos ao ler “Conspiração de Búzios”. Matei a saudade de Vinícius de Moraes com “100 Vinícius 100”, de Alex Solnik. Reencontrei João Cabral de Melo Neto nas páginas de “O Homem sem Alma”, de José Castello. Adentrei “A casa do Rio Vermelho”, de Zélia Gattai, para visitar Jorge Amado. Em “Uma arquiduquesa imperial entre nós”, de Franklin Cunha, lamentei o destino de Maria Antonia, a princesa austríaca que morreu pobre e esquecida no Sul do Brasil. Surpreendi-me com a literatura de Katherine Funke, Eduardo Silveira e Maria Cecília T. Koerich, lendo seus livros editados pela Micronotas. Descobri a rica obra do paranaense Ladislau Romanowski apreciando “Ciúme da Morte”. Lamentei o destino do Brasil do presente lendo “Essa Gente”, de Chico Buarque. Celebrei mais uma vez a poesia de Nicolas Behr em seu livro de poemas eróticos “Meio Seio”. Para não perder o costume, li o “Prins”, de César Aira. Apreciei os pequenos filmes literários do Gonçalo Tavares, em “Short Movies”. Celebrei a obra de Alejandra Pizarnik devorando “A Condessa Sangrenta”. Apreciei com muita curiosidade as revistas “Documents”, reunidas em livro pela editora Cultura e Barbárie, em seus textos de Georges Bataille e Carl Einstein. Comemorei a vida e obra de Paulo Leminski, lendo o “Roteiro” escrito por Rodrigo Garcia Lopes, editado pela Biblioteca Pública do Paraná.
Está aí uma mostra do meu 2019. São livros fantásticos. E o fantástico do texto tem sido bem mais interessante do que o realismo mágico a que temos assistido nos telejornais, diga-se de passagem. Mas não percamos a ternura, muito menos a capacidade de enxergar. Que 2020 nos traga bons livros! Notícias melhores! Para que tudo seja mais feliz e menos fantástico.

  

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