quinta-feira, 3 de setembro de 2020

“Poema para a catástrofe do nosso tempo”, de Alberto Pucheu: As ondas e o levante

 


O livro “Poema para a catástrofe do nosso tempo”, de Alberto Pucheu, acaba de ser publicado pela Editora Bregantini e disponibilizado em formato e-Book na Amazon, tendo sua verba de arrecadação destinada ao Observatório de Favelas, do conjunto das comunidades da Maré.  

 

Há um tempo de luto e um tempo de luta. Tanto em um como no outro, encontramos uma situação favorável à poesia, essa experiência que faz da linguagem escrita um instrumento de interrogação da vida, de criação de novas possibilidades de entendimento do ser individual e coletivo, sendo por isso um convite permanente à transformação. Há ainda um momento mais pungente, aquele que abarca um tempo de luto e luta simultaneamente. A luta, aliás, é quase sempre consequência de um luto. A humanidade atravessou inúmeras vezes esse período específico em que o choro pelos mortos e o pesar por uma condição adversa deu lugar à revolta, ao grito e ao levante. Esse acontecimento é mais recorrente do que imaginamos. Hoje, por exemplo, temos experimentado com uma força imensa a coexistência entre luta e luto. “Poema para a catástrofe do nosso tempo”, de Alberto Pucheu, é uma síntese de nosso triste presente que capta como um sismógrafo duas ondas sinistras que ameaçam o nosso país, lendo nossa particular tragédia à luz da catastrófica pandemia que já matou quase um milhão de pessoas no mundo.

O poema-livro dá continuidade à produção de alguns textos que tratam da história recente da política brasileira. O primeiro, “Poema para ser lido na posse do Presidente”, publicado em 2010, no dia anterior ao segundo turno da eleição que levou Dilma Rousseff ao poder. O segundo, “Para quê poetas em tempos de terrorismo?”, escrito enquanto ocorria o processo de impeachment que começou a desenhar o absurdo e triste cenário político atual de nosso país. O “Poema para a catástrofe do nosso tempo” começou a ser escrito um pouco antes do segundo turno da eleição de 2018 e foi finalizado há algumas semanas, no momento em que assistíamos (e ainda assistimos) à assustadora situação da pandemia no Brasil e no mundo, paralelamente a uma série de abusos, descasos, arbitrariedades e escândalos envolvendo o Governo que, por sinal, desde o início do surto da Covid-19, tem agido de forma irresponsável na condução de políticas que poderiam minimizar a contaminação e consequentemente as mortes em território nacional.


(Fonte: www.albertopucheu.com.br)

Daqui a alguns anos, as pessoas interessadas em compreender o que está acontecendo hoje no Brasil encontrarão no poema-livro de Alberto Pucheu uma lúcida, emocionada e apaixonante análise (o poema é bem mais que isso, no entanto), três qualidades que não são em nada contraditórias. O poeta, aliás, tem consciência disso e escreve quase no final de seu texto: “Que se tenha aqui em registro para que se possa, um dia, quem sabe, pelos sintomas narrados, investigar a doença maior de nosso tempo, ganhando antídotos sociais, vacinas políticas, curas históricas de modo que ela, em hipótese alguma, retorne”. As duas ondas, a da Covid-19 e a da insensatez política, no Brasil, são avassaladoras, tendo sua catástrofe dimensionada pelo atual Governo. No entanto, cumpre observar, as ondas com o tempo se dissipam ou pelo menos perdem potência, enquanto outras ondas se formam, muitas delas conscientes de nosso estado e capazes de interpretar, bem como de combater nossas misérias. O poema de Pucheu é uma dessas ondas que integrando um conjunto de outras, vai produzindo movimentos e choques capazes não apenas de sintetizar o nosso tenso tempo, mas de abrir brechas nos caminhos fechados por meio da poesia, afinal de contas, como escreveu Lindolf Bell, “o lugar do poeta é onde possa inquietar”. E mesmo confessando um estado de puro desencanto, não há um bom poema que não ilumine, mesmo que timidamente, a escuridão do nosso presente, ou de que pelo menos assinale essa treva, o que pode por sua vez estimular a abertura de uma fresta de luz. Se a onda das excepcionalidades políticas do nosso atual Governo, gestadas desde o impeachment, e a onda da Covid-19, amplificada pela irresponsabilidade do Estado, trouxeram desgraça ao nosso país, há uma onda contrária, então, que demarca um gesto de força no contexto de um luto pelas perdas – pouco sentidas, aliás, pelo alto escalão governamental, como podemos observar avaliando suas ações e discursos – e de uma luta contra nossa catástrofe política. 

A grande onda de Kanagawa, de Hokusai

Insisto na imagem das ondas. Ela encontra ressonância no ensaio “Ondas, torrentes e barricadas”, de Georges Didi-Huberman, publicado no Brasil recentemente pela Revista Serrote (nov. de 2019 – n. 33). No texto, o ensaísta francês compara os levantes às ondas do oceano. Para ele, a potência da onda passa despercebida até o momento de sua explosão: “É exatamente isso que os poemas, os romances, os livros de história ou de filosofia, as obras de arte sabem registrar, amplificando as coisas, dramatizando sob a forma de ficções, imagens de todos os gêneros”. Didi-Huberman analisa como a história e a arte ensinam que a revolta nasce do luto e se propaga em um turbilhão pessoal e, então, coletivo. O texto aponta como as grandes revoluções francesas do século XVIII e principalmente do XIX são representadas a partir de imagens que conjugam, na metáfora da catástrofe meteorológica, a onda, o ciclone, as tormentas, as tempestades, as efervescências climáticas, etc. São “imagens-sintomas” que traduzem um mal (mau) tempo. O céu fecha, o mar se agita e as ondas se levantam para se chocarem umas com as outras. Assim como Pucheu, Didi-Huberman nos fala em catástrofe. Assim como Didi-Huberman, Pucheu nos fala em ondas: “Estamos tristes, poeta, o mar da história é, de fato, agitado, atravessamos ameaças e guerras”. Isso sem contar a onda (nuvem) de gafanhotos e os vendavais no Sul do Brasil, surgidos depois do lançamento do livro. O poema e o ensaio, lidos em conjunto, convidam a uma minuciosa análise comparativa, que, infelizmente, não fazemos aqui por falta de espaço.


Ondas, de Robert Longo

("É preciso aprender a ficar submerso" é o nome de um sugestivo poema em que Pucheu explora a imagem da onda para falar de resistência. Aparece no livro "[Mais cotidiano que o cotidiano]", 2013, Azougue Editorial) 

O espectro que ronda o poema de Pucheu é o do mal tempo, em versos que enfatizam o tom de seu lamento: “Amanhã não será um dia melhor / do que hoje, que não é um dia / melhor do que ontem. Há um / sentimento fúnebre no ar (...)”. Um conjunto de palavras que se repetirá ao longo do livro. O poema aponta para o fato de não assustar mais ninguém com o seu berro: “São, eles, antes, os inassustáveis que diariamente nos assustam”. E esse é um grito de desesperança. Está logo no início do texto e revela a consciência trágica de sua contemporaneidade. Estamos dentro da onda. Há poucas semanas eram 10.000 mortos no Brasil, o poeta nos informa jornalisticamente. Agora, poucas semanas depois da publicação do livro, já são mais de 120.000. Enquanto a informação já envelhecida nos impressiona, colocando o livro no rol das obras do passado, tudo o mais que está ali é profundamente atual e ainda em movimento.

Para Pucheu, o poema não é uma arma contra o autoritarismo, mas o desejo de desarmar o autoritarismo. A viagem ao nosso passado recente, da ditadura de 64 ao processo de impeachment, bem como uma lúcida análise do Governo de Bolsonaro e o acontecimento da pandemia, traçam o pano de fundo da catástrofe de nosso tempo. A inserção de depoimentos de mulheres torturadas pelo Regime Militar e a reunião de frases proferidas nos últimos meses pelo presidente, ganham sentido e força ao serem inseridas no poema-testemunho, recuperando uma potência perdida no dia a dia pelo desenfreado e gasto vai e vem midiático. O poema de Pucheu parece produzir um “lirismo jornalístico”, sobre o qual nos fala Didi-Huberman, um lirismo que insere com propriedade o político na lógica do poético. Um dos pontos fortes que diz respeito a isso aparece na importante e bem elaborada resposta que Alberto Pucheu dá ao filósofo Giorgio Agamben, que recentemente causou polêmica ao questionar a imposição do confinamento por parte do Estado. Só esta passagem já vale a leitura do livro.

Nossa tragédia não é grega, sugere o poeta, mas o poema que aponta para o abismo é uma espécie de Tirésias, talvez o mais lúcido personagem de Sófocles. O poeta não é cego, e assim como Tirésias – que o era – vê: “Sou feito de nervos, carne, assombros / e muito do que olho me intoxica. / Nunca foi tão difícil olhar à minha / volta, mas muito mais difícil é ver / o que olho. Hospitais a cada dia / mais lotados, mortes, pânicos nos olhos / das pessoas, ameaças reais de mortes / por contágio familiar em muitos lares, / cemitérios cavando covas sem parar, / preços disparados do que se tornou / o mais necessário, decretos autorizando / demissões em massa, decretos autorizando / reduções da jornada de trabalho, decretos / autorizando cortes salariais de 30 a 50% / do funcionalismo público, decretos / para reduzir o isolamento, decretos / obrigando as pessoas a trabalharem (...)”. A lista segue adiante e vai longe. Tudo sob controle, só não sabemos de quem, como afirmou o vice-presidente. O poema nos ajuda a entender mais do que a nossa triste realidade. Ajuda-nos a constatar que mais importante do que enxergar, é preciso saber ver, algo fundamental quando diante de uma catástrofe e sem fé na luta, não nos resta muito mais do que levantar a luta. Continuar vivo e não perder a capacidade de ver, aliás, são os primeiros passos. Ao contrário do Governo, que tem revelado como nunca sua maquinaria biopolítica, ou melhor necropolítica, o poema em foco defende a vida e nos convida com presteza a ver. Apesar do desencanto que o move é um alento essa onda que se levanta.             


Caio Ricardo Bona Moreira

Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR).


Fragmento de "Poema para a catástrofe do nosso tempo", de Alberto Pucheu:

XVII

Como quem busca um mínimo
vestígio dos mortos, uma linha
que nos possibilite algum modo
de convívio, ainda que mínimo
e desigual, um horizonte qualquer
de memória, uma contemporaneidade,
um caminho que nos leve até eles
ou os traga até nós, de todo modo,
que não os permita ir completamente
embora, que não nos permita ficar
para sempre sem suas histórias,
sem seus afetos, sem o que
pensaram, sem o que sonharam,
sem o em nome de que e contra
o que lutaram, sem seus testemunhos,
procuro, sem as encontrar, listas
com seus nomes, levando-me a crer
que eles são a cada vez anonimizados,
desprezados, relegados imediatamente
ao esquecimento. Há milhares de nomes
que deveriam estar disponíveis
em algum lugar para sabermos
quem são os mortos diretos e indiretos
pelo vírus e, sobretudo, pelo presidente
que se aproveita do vírus para matar,
mas, além de não sabermos seus nomes,
não sabemos, tampouco, e menos ainda,
os nomes dos subnotificados, daqueles
que passam por fora dos dados
oficiais, daqueles que o governo
não testa e que, mesmo se os testasse,
esconderia os resultados de todos nós.


(Video-poema "É preciso aprender a ficar submerso"

https://www.youtube.com/watch?v=jGwY2daOJGs )

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