sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Coisa/di/vina: O texto que era para ser sobre Vinícius de Moraes

 


Minha relação com a poesia é religiosa, assim como minha ligação com a religião é poética. Não consigo conceber uma coisa sem outra. A religião sem magia, desprovida de encanto, música, ou da beleza da palavra, é no mínimo um abandono. Deus é uma arte! Não consigo também pensar na poesia como uma atividade desprovida do sagrado que existe neste mundo ou outros. Seria um disparate.  E não falo de uma transcendência desprovida da terra na qual somos plantados e onde plantamos nossas sementes em busca de uma fértil colheita. A poesia, por exemplo, pode muito bem e curiosamente conciliar o transcendentalismo cristão com o imanentismo pagão. Mas isso não vem ao caso. A religião e a arte são a poesia da vida, assim como o amor sua essência e seu onipotente tempero. Mistério há de não haver e sempre o de pintar por aí. Para Octavio Paz, que bem poderia ser um taumaturgo, a poesia é "pura e impura, sagrada e profana, popular e minoritária, coletiva e pessoal", sendo também entre tantas outras coisas, uma prece ao vazio, "oração ladainha, epifania, presença".

Os santos, não raro, foram poetas. São Francisco que o diga. Cristo foi uma poetaço. Suas parábolas, uma obra-prima. Seu discurso um primor carregado de sentido até o mais alto nível. Os “Versos de Ouro”, de Pitágoras, são belíssimos. Os versos de Buda também, assim como o “Mahabharata”. Na África, Xangô, a divindade do trovão e da justiça, era dono do axé da palavra. Os orikis que lhes eram dedicados são textualidades poéticas poderosas, capazes de evocar o próprio orixá, que é uma força primordial da natureza. Os Hinos de Rig-Veda, que são textos literários e ao mesmo tempo hinos de louvor, são dos mais antigos da humanidade, como o “Livro dos Mortos”, no Egito. São encantadores os cânticos astecas, em nahuatl, falando da vida, das flores, do Deus Quetzalcóatl, Xochipilli, Yacatecuhtli,  ou os cantos sagrados dos mbyá-guarani, em exaltação ao Deus Ñamandu. Quantas poéticas orais são oriundas do xamanismo e pajelança de tantos outros povos originários das florestas brasileiras ou de qualquer lugar do mundo. Certo dia, rabisquei ou cantei os seguintes versos: “Deus é música / alguém me contou / que conheceu e voltou para contar / cantou”. Os cantares sagrados são sempre liturgicamente poéticos.

Cabe considerar que a poesia não é apenas um conjunto de versos brancos ou rimados com a finalidade de produzir beleza. Um poema é uma materialidade textual com finalidades estéticas, mas a poesia, um espírito, uma energia, o transcende já que pode ser encontrada em outras moradas que não apenas a da palavra. Um sorriso, um abraço, uma onda, um beijo, um pôr do sol, uma centopeia, um prego, uma lua, uma grama, um ar, uma parede, uma estrela, um verme, um gol, um filme, uma dança, um desenho, tudo isso e tudo o mais que houver na vida podem ter também o seu quinhão de poesia. Percebê-la é uma das coisas mais fascinantes que podemos fazer nessa existência. Um sorriso de criança, por exemplo, pode ser só um sorriso de criança ou a própria ideia de felicidade encarnada em nós por meio do que nos captura um instante. E já não sabemos dizer se somos nós que tocamos essa beleza ou se é ela que nos olha, convocando-nos ao contato, tocando-nos, assim, com o olhar.

Não sei o que me trouxe até aqui. Acho que ando muito religioso. Era para ser um outro texto, um texto sobre Vinícius de Moraes que fez aniversário há pouco e que nos deixou há exatos quarenta anos. Eu escreveria sobre esse grande poeta e sua poesia que para mim é uma espécie divina de manifestação artística. Eu escreveria também sobre a essência religiosa de seu trabalho, seus primeiros poemas, profundamente metafísicos, esotéricos, até o seu mergulho nas religiosidades de matriz afro, na parceria com Baden no disco “Afrossambas”, passando por sua inserção nos candomblés da Bahia, quando casou com Gessy Gesse, e se mudou para a praia de Itapuã, em Salvador. Escreveria sobre a beleza de Vinícius viver a vida de forma nada pragmática, sendo entre nós o único que de fato viveu como poeta, como sugeriu Carlos Drummond de Andrade. Escreveria sobre a música que ele compôs com Jaime Lerner quando fez um show com Toquinho em Curitiba, no Teatro Paiol, nos anos 70. Escreveria principalmente sobre seu livro inacabado, o “Roteiro lírico e sentimental da cidade de São Sebastião, do Rio de Janeiro, onde nasceu, vive em trânsito e morre de amor o poeta Vinícius de Moraes” (Companhia das Letras, 2018). Trata-se de um livro que só foi publicado muitos anos depois de sua morte a partir de anotações deixadas pelo poeta. Eu acabara de ler a bela edição desse Roteiro organizada por Daniel Gil. Escreveria sobre a biografia desse poeta da paixão escrita por José Castello que eu acabara também de ler. Escreveria sobre um exemplar autografado de sua “Antologia Poética” que guardo como relíquia - ou uma espécie de fetiche por atribuir a ele poderes sobrenaturais ou mágicos. O poeta boemiamente assinou: “Ao Arnaldo, com o coração e o fígado de seu velho Vinícius”. Quem teria sido esse amigo de copo e de bar?  Escreveria sobre isso e outras coisas também. Mas enquanto escrevia, o texto começou a me escrever e foi me escrevendo ou se escreveu meio sozinho. Depois de falar sobre os santos que foram também poetas, eu escreveria sobre os grandes poetas que, por sua vez, são como deuses, ou santos, ou possuidores de grande axé, ou mesmo de uma existência divina: Di-vina (Vinícius, por sinal, era chamado pelos íntimos de Vina). Era aí que eu pensava em apresentar o Vinícius como uma espécie de Griô, ou um Mago, um Bruxo (como Clarice, Machado e Guimarães Rosa), um alquimista, um Sábio Ancestral de minha tribo imaginária, um senhor que viveu intensamente a vida, com suas dores e delícias, e que voltara para contar sua história em torno de uma fogueira. Reza a lenda – e é verdade -  que quando Vinícius visitava o Terreiro do Gantois, Mãe Menininha, a matriarca mais importante do candomblé brasileiro, não deixava que ele se sentasse no chão como os demais visitantes. Vinícius, filho de Oxalufã, o Oxalá velho, esse senhor da Criação, era por isso e por outros mistérios, recebido naquele espaço sagrado como uma figura de grande respeito, não por ser famoso – que a Ialorixá nem ligava pra isso -, mas por ser misteriosamente quem era. Lembro que Vinícius escreveu poemas sobre Xangô, sobre Jesus, São Francisco, e outros santos.  

O divino revela em Vinícius de Moraes a sua mais perfeita caracterização. Ali, o sagrado não está apenas na busca de Deus, mas na procura da mulher amada, na procura do amor como a essência própria do viver, na busca da amizade como um encontro religioso entre seres, no ato de fé na vida, na comunhão com a palavra e com a cidade e suas musas, que para ele eram como deusas, seja a Garota de Ipanema, ou alguma das várias com quem casou ou não. Aos poucos, Vinícius vai encontrando Deus no mundo. Sai de si e se reconcilia com o outro, começa a usar mais o pronome na terceira pessoa. E ao se encontrar com o mundo, faz desse idílio um bonito e profundo matrimônio. Vale lembrar que a poesia nasce com o sagrado e quando perde seu poder de constrangimento vira literatura. Em Vinícius, vejo também um momento contrário. Ela se reaproxima do sagrado em muitos sentidos. É, para mim, religiosa no seu perpétuo “religare”. Reconecta-nos com o divino do céu e da terra. Nos liga com a vida. Coisas de Vina, coisas divinas.













Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória - 11/2020 

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