sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Qual é o limite entre o relato pessoal e a verdade?


Acabo de ler o mais recente livro de Beatriz Sarlo, que se especializou em crítica literária e cultural, foi professora de literatura na Argentina e nos Estados Unidos e dirige a revista Punto de Vista.
Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva apresenta uma reflexão sobre os limites entre o relato pessoal e a verdade. De Primo Levi a Benjamin e Agambem, de Bergson a Freud e Deleuze, Sarlo enfoca a história recente da Argentina, do golpe militar ao processo de redemocratização, observando que os depoimentos daqueles que sobreviveram à ditadura ajudaram a legitimar a democracia e a condenar os culpados. Mas a construção do passado nos relatos não é tão simples quanto parece, principalmente devido ao caráter ambíguo do tempo presente em relação ao passado. Que história devemos contar? Como contá-la? É possível contá-la? Quem pode contá-la, aquele vivenciou o horror? Mas quem vivenciou verdadeiramente o horror nunca voltou para contar. Os que voltaram da guerra estavam mudos, perderam o contato com a experiência, diria Benjamin, referindo-se à Primeira Grande Guerra. Essas questões importantes não são deixadas de lado por Beatriz Sarlo.
A condição ambígua presente-passado é apenas parte do problema. Na atualidade, a contemporaneidade é exaltada, fazendo com que se opere uma espécie de esquecimento ou mesmo recusa do passado. Talvez esquecer o horror fosse um caminho. Paradoxalmente, nessa mesma atualidade o passado é extremamente valorizado, basta visitar museus ou assistir a filmes sobre a Segunda Guerra, sobre a ditadura, sobre os dinossauros.
O livro critica a autoridade que o testemunho ganhou na segunda metade do século XX. De um lado, o sujeito é colocado em "xeque", seja nos trabalhos de Derrida, Deleuze ou Foucault. Do outro, um resgate do sujeito, presente fortemente no testemunho. É o surgimento da “guinada subjetiva”. A hipótese de Sarlo é a de que a história realizada pela universidade perdeu espaço para uma história mais comercial. Nessa transição, o relato pessoal ganha notoriedade: “Vivemos a época em que a primeira pessoa reclama para si uma legitimidade e uma verdade sustentadas pela idéia de que, se alguém viveu certo acontecimento, está em uma posição privilegiada para narrá-lo”, diz a autora. Mas até que ponto essa narração reconstitui a experiência? Quais são os seus limites? O depoimento guarda a intensidade do vivido, ou o que se relembra é só a lembrança posta em discurso?
Essa é a discussão principal do presente estudo de Sarlo. Poderíamos lembrar aqui das colocações de Benveniste, que aboliu a noção de "pessoa" em favor da idéia de um "sujeito" posto em discurso. Lacan, em 1949, na conferência "O estádio do Espelho" dessubstancializa o “eu”, agora fruto de um jogo.
A autora sugere que há outras maneiras de se trabalhar a experiência do passado, que não seja as o relato. É a passagem do narrativo para o sociológico e histórico, onde a teoria ilumina a experiência.
Talvez a autora esteja mais próxima de Benveniste do que da guinada subjetiva. O elogio final vai para a literatura, uma saída para as questões levantadas. Vale lembrar que na literatura o "eu" é sempre máscara. Nela, a narração adquire um estatuto bastante diverso da utopia do relato pessoal: “A literatura, é claro, não dissolve todos os problemas colocados, nem pode explicá-los, mas nela um narrador sempre pensa de fora da experiência, como se os humanos pudessem se apoderar do pesadelo, e não apenas sofrê-lo”.

c.moreira

Um comentário:

L. M. de Souza disse...

acho que é por isso que a gente escreve. por não suportar apenas viver, mas ter que guardar de algum modo, compreender de algum modo, estetizar de algum modo essa nossa incapacidade de apreender as coisas em si. por isso que eu digo: mentira ou verdade, cada qual com sua metade. abç