sábado, 10 de maio de 2008

CANTA, CANDEIA


(É assim que o filme começa)
Enquanto o partideiro dá uma aula de samba, o sambista-bailarino ensaia a cadência, demonstrando passos variados e arrastando a faca no prato para marcar o compasso. Quem consegue fazer isso com um prato? -talvez João da Baiana. O partideiro não samba com os pés. Samba com a voz e com o coração. E comove. Não porque está numa cadeira de rodas. Um bom sambista nunca aceitaria a comoção fortuita de alguém que o veja simplesmente como um deficiente: “Pois tristeza feia o poeta não gosta”. A eficiência no samba não se faz só com as pernas. Aos lamentos o poeta responde com um “surdo marcando choro de cuíca”. Comove pelo partido. É que um bom samba é forma de oração. Falo de um poeta. Falo de Candeia.

Um dos mais bonitos registros cinematográficos sobre o samba é o filme "Partido Alto", de Leon Hirszman, de 1982, filmado em 16mm e com 22 minutos de duração. O cineasta subiu o morro para registrar o encontro descontraído de sambistas e cabrochas numa roda bem tradicional. Paulinho da Viola é um dos jovens que aparece tocando cavaquinho e dividindo a cerveja com os irmãos do samba. Paulinho sabia onde estava. À medida que dá uma aula sobre o partido alto - ao lado de três lindas morenas que, com as mãos na cintura, “balançam as cadeiras” e abrem um sorriso como quem sabe que o céu não é longe dali -, Candeia apresenta pérolas como o “Testamento do Partideiro”. Só para citar alguns versos:

“Pra minha mulher deixo amor, sentimento, na paz do Senhor
E para os meus filhos deixo um bom exemplo, na paz do Senhor
Deixo como herança, força de vontade, na paz do Senhor
Quem semeia amor, deixa sempre saudade, na paz do Senhor
Pros meus amigos deixo meu pandeiro, na paz do Senhor
Honrei meus pais e amei meus irmãos, na paz do Senhor
Ao fariseu não deixarei dinheiro, na paz do Senhor
É, mas pros falsos amigos deixo o meu perdão, na paz do Senhor”

O partido alto poderia ser considerado uma das formas autênticas do samba. Nele, impera a improvisação, mas não uma improvisação qualquer. Os partideiros têm a liberdade de inventar os versos no momento em que estão cantando. Em torno de um refrão os participantes da roda alternam-se na cantoria, o que faz com que o gênero transforme-se provavelmente na manifestação mais “democrática” do samba, já que se rarefaz a própria noção de autoria.

O autor do partido alto é toda a roda. Cada membro festeja a sua participação na comunidade. Não há tempo para que esse poeta pense duas vezes antes de colocar as palavras na roda. A palavra, assim, vem do “burio do coração”, usando aqui uma expressão de Lindolf Bell. Diante de um livro, talvez se calasse com medo de que suas palavras ficassem trancafiadas, sem o direito de banharem-se ao sol. Talvez o outro poeta, aquele que pensa antes de sentir e cantar, ficasse calado no meio da roda. Talvez sambasse. Talvez sentisse. (É assim que o filme termina)

Caio Ricardo Bona Moreira

Um comentário: