domingo, 11 de maio de 2008

JOÃO GILBERTO: UM ROTEIRO QUE NUNCA SERÁ FILMADO... PORQUE O FILME JÁ EXISTE




Talvez fosse possível escrever um roteiro poético sobre uma cena de cinema. Lembro-me de algumas cenas que são antológicas, como a dança ingênua de Fred Astaire e Cyd Charisse, em A Roda da Fortuna, ou mesmo o nascimento de Macunaíma, protagonizado pelo grande Grande Otelo, na belíssima adaptação (ou melhor trans-criação) de Joaquim Pedro de Andrade. Outras são menos conhecidas, mas não menos interessantes: o momento em que um anjo ganha cor, quando resolve se tornar um humano por causa de uma paixão pela bailarina do circo, em Asas do Desejo de Wim Wenders. A serenata que Vadinho faz para Dona Flor, cantando Noite Cheia de Estrelas, de Vicente Celestino: “Noite Alta, céu risonho...”.
Há uma linda e comovente interpretação de João Gilberto, cantando “Estate”, na Itália. Geralmente um roteiro deve ser escrito antes da filmagem. Neste caso, tomei a liberdade de inventar um depois de assistir ao filme “Bahia de todos os sambas”, de Leon Hirzman e Paulo César Saraceni, gravado em Roma, em 1983. O filme registra um dos maiores shows de MPB que já aconteceu na Europa. Eu, com apenas dois anos na época, nem sonhava com aquilo: “O que é que a baiana tem?”. E o show não era apenas musical. A Bahia baixou em Roma – com seus atabaques e pais-de-santo, suas rezas, acarajés, danças e candomblés. Um encontro para gringo nenhum botar defeito. O encontro foi organizado por Gianni Amico, um italiano que juntou figuras como Caetano Veloso, Dorival Caymmi, Gal Costa, Moraes Moreira, Naná Vasconcelos e o grande João. O roteiro poético que segue não tem pretensão alguma de aproximar-se do formato oficial – até porque nunca será filmado, como o roteiro esquecido de Mário Peixoto, “Outono – jardim petrificado”. Por isso poético. Instruções: Para ser lido ao som de “Estate”.

CENA 1 (Plano de conjunto)
Noite. Um palco, pouca luz, um banquinho, um violão e João Gilberto. O suficiente. Terno azul-cinza, paletó aberto. João olha para o violão. Atrás dele, uma orquestra. Começa.
“Estate sei calda come i baci che ho perduto
sei piena di un amore che è passato
che il cuore mio vorrebbe cancellare”

CENA 2 (corte para Plano médio)

João balança a cabeça. Toda a história da Bossa Nova se resume nesse breve movimento de João, como que hesitando entre uma voz e um olhar, ou mesmo expressando a letra por meio do gesto. Seria o lamento de um brasileiro ou um italiano? João frisa a testa, talvez para alcançar a precisão. Não, seria a perfeição:
“Estate il sole che ogni giorno ci scaldava
che splendidi tramonti dipingeva
adesso brucia solo con furore”

João olha para o céu. Não, olha para cima. Não, olha para cima, mas para lugar nenhum. Um lugar, sim. Só ele pode saber. Torna a olhar para o violão. Quase fecha os olhos. J.Joyce, em Ulysses,diria: “Fecha os olhos e vê”:

“Tornerà un altro inverno
cadranno mille petali di rose
la neve coprirà tutte le cose
e forse un po' di pace tornerà”

Os pitagóricos acreditavam (e acreditam) que o segredo do universo estaria explicado na matemática. A precisão dos números revelaria a ordem de todas as coisas. A música, por incrível que pareça, está mais próxima da matemática do que se pode supor. Se a música pode ser registrada numa partitura é porque sua matemática de tempos e de tons a permite. João volta a olhar para o céu. É, agora é para o céu. Talvez sua partitura esteja registrada na ordem das estrelas.:
“Estate che hai dato il tuo profumo ad ogni fiore
l'estate che ha creato il nostro amore
per farmi poi morire di dolore”

CENA 3 (Zoom-in no rosto de João. Plano de detalhe)
A cena é comovente. Agora, o que se vê é uma seqüência de alguns minutos no rosto de João. Sua testa sua. Seu olhar é suave e contínuo, feito fio de água antes de explodir em rio. O pai da Bossa Nova olha para o violão como quem a ninar o primeiro filho. Como quem olha apaixonado a amada ainda sem saber se tem também o seu amor. Como quem abraça um triste amigo, feliz por sabê-lo um dos seus. Levemente, sorri. E esse sorriso é para o violão, como a agradecê-lo por não estar sozinho. Todo o mistério de João se revela nessa seqüência. E toda a potência de seu comedimento também. João repete a letra. No entanto, sabe que toda repetição traz em seu bojo a força de uma diferença. João nunca repete. Bossa-cancione sempre outra a mesma.
CENA 4 (Zoom-out do rosto de João. Volta para Plano médio)
A música termina. O menino levemente sorri. As luzes se apagam...

(Dedicado ao Mestre J. Gilberto)
Caio Ricardo Bona Moreira

2 comentários:

Anônimo disse...

que gênero é este que criaste!
heheheehhe
roteiratura?

Deusa Odoyá disse...

OI meu novo amigo.
Seu blog é muito interessante nos faz ver a roda do mundo musical, até os animais , mais primitivos que existiram.
Interessante sua descoberta.
gostei e voltarei sempre para prestigiar.

beijos da sua nova amiga.

Regina CoeliFique na paz.

te aguardo no meu cantinho viuuu.